Opinião

Não francês reacende chama da Europa Social

Antonio Martins

 

Entregues à tentação antidemocrática, políticos e jornalistas derrotados pelo non francês de 29/5 ao Tratado Constitucional europeu (e pelo nee holandês de 1/6) foram ágeis em desqualificar o resultado da consulta popular. O voto popular “colocou a Europa em xeque”, alardeou em manchete a Folha de S.Paulo, poucas horas após o referendo. Em geral mais refinado, o parisiense Le Monde descreveu o resultado como “o impasse”.

Com soberba, o texto sugere que teria sido melhor não consultar a sociedade. Vê, na transferência da decisão ao povo, o destampar de um caldeirão de sentimentos baixos, como nacionalismo e dogmatismo. Num único trecho, o artigo reconhece que o eleitorado pronunciou-se contra os aspectos do tratado que abrem brechas para a transferência de empresas em busca de mão-de-obra mais facilmente espoliável e maior permissividade fiscal e ambiental, concorrência entre os trabalhadores, a redução dos direitos sociais e mais desemprego.

Voilà la différence! A disputa concentrou-se precisamente nesse ponto. Quem examinar o confronto verificará com facilidade que o não jamais significou repúdio ao projeto europeu. Os franceses acreditaram apenas que “uma outra Europa é possível”, como dizia textualmente boa parte da propaganda afixada nas paredes de suas cidades, e recusaram uma constituição que tornaria permanentes as políticas de redução de direitos sociais, esvaziamento da democracia, predomínio das finanças e ataque ao mundo do trabalho1. Como se não bastasse, neutralizaria o poder da Europa na luta contra a guerra – exatamente onde se concentrou, nos últimos anos, seu poder de rebeldia e criação.

Para rechaçar esse tratado, a França viveu uma pequena revolução, cujos protagonistas principais foram organizações da sociedade civil. A partir de setembro de 2004, as críticas evoluíram para iniciativas de mobilização social em favor da vitória do não. Numa consulta feita pelo Conselho de Administração do Attac França (Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos), os militantes da organização majoritariamente defendiam o não ao Tratado Constitucional e o engajamento do grupo nesse debate. Em novembro de 2004, a Fundação Copérnico, uma instituição político-cultural, deu um passo a mais e construiu a ponte que uniu, em favor do não, os novos movimentos sociais e os partidos políticos de esquerda. Surgiu daí a idéia dos coletivos pelo não, que no caso francês tiveram papel relevante.

Se o não obteve 55% dos votos, num plebiscito do qual participaram 70% dos eleitores, foi porque a mobilização dos coletivos esteve associada a uma enorme batalha intelectual. A imprensa tradicional evitou, desde o início, debater o conteúdo do tratado, procurando reduzir o plebiscito a um voto contra ou a favor da Europa. A análise do texto constitucional, e de suas conseqüências, foi feita pelas organizações envolvidas na campanha pelo não. Elas produziram dezenas de trabalhos, que examinaram o documento e cada um de seus aspectos principais.
Falou-se em alternativas. Um dos documentos centrais do Attac intitulava-se, por exemplo, “21 exigências para o Tratado Constitucional”. Não havia ali propostas dogmáticas. Propunha-se, entre outros pontos, que a solidariedade fosse considerada um valor e norma mais importante que a competição; que a igualdade entre homens e mulheres se transformasse em objetivo permanente para a União Européia; que os serviços públicos fossem reconhecidos como algo que merece ser defendido pela Europa; que o “livre” comércio fosse considerado insuficiente para assegurar relações de troca internacionais justas.

A formação da União Européia é, há pelo menos duas décadas, um dos episódios mais marcantes no cenário político mundial. Por isso, o vendaval que sacudiu a França terá repercussões de longo alcance. Derrotado pelos eleitores de dois países, o Tratado Constitucional está moribundo. Os líderes dos grupos políticos europeus tradicionais parecem confusos. Rechaçam, por enquanto, a solução natural: debater, de forma democrática, uma nova Carta.

Mas o resultado do plebiscito reacende a chama da Europa Social. Seria absurdo pensar num continente regido por outras políticas? Direitos sociais, reinvenção da democracia, cultura da paz, respeito à diversidade, proteção do ambiente, solidariedade com o Sul são valores que animam as organizações responsáveis pela campanha em favor do não na França. Visto sem os preconceitos do pensamento único, ele revela-se um poderoso sim, pronunciado em um dos países mais capazes de influir no panorama internacional. Sim a uma sociedade livre da ditadura dos mercados. Sim a um mundo em que a política, hoje local opaco onde se validam os privilégios do poder econômico, se transforme, finalmente, no espaço onde todos constroem, em igualdade, o futuro comum.

 

Antonio Martins é membro do Attac Brasil e do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial

1 Para um exame detalhado, vale a pena consultar o site do Attac França (www.france.attac.org)

 

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