Saneamento

Seminário discute diretrizes e expõe divergências e restrições a financiamento público

Rita Casaro

 

Diagnóstico do Ministério das Cidades sobre o saneamento ambiental apresenta uma realidade alarmante: 83 milhões de pessoas não são atendidas por sistemas de esgotos; 45 milhões carecem de serviços de distribuição de água potável e quase 60% dos esgotos de todo o País são lançados nos mananciais sem tratamento.

O mesmo estudo mostra as conseqüências da ausência ou precariedade do serviço, responsável por 65% das internações hospitalares de crianças de zero a cinco anos. Os dados foram apresentados pelo presidente do IPPC (Instituto de Políticas Públicas das Cidades), Carlos Zarattini, na abertura do seminário “Saneamento ambiental – perspectivas para o setor”, realizado em conjunto com o SEESP, na sede dessa entidade, em 4 de julho.

Com a participação de especialistas e autoridades, a atividade debateu o Projeto de Lei 5.296/2005, que institui o PNS (Plano Nacional de Saneamento Básico). Responsável pela apresentação do novo marco regulatório, o secretário Nacional de Saneamento, Abelardo de Oliveira Filho, defendeu a proposta, hoje tramitando no Congresso. Entre suas virtudes, segundo ele, estão a garantia do direito à salubridade ambiental a todos os cidadãos e a definição das obrigações dos entes federados, ressaltando a competência regulatória da União. Introduz ainda um conceito mais amplo de saneamento, entendido como abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e de águas pluviais. Cada um desses itens é considerado “uma natureza dos serviços de saneamento”, não um serviço em si, podendo, portando, ser dividido em etapas, como adução e distribuição, a serem executadas por diferentes prestadores.

O PNS inclui na gestão do saneamento o planejamento, a regulação a fiscalização e a prestação dos serviços. Para garantir o interesse da população, segundo Oliveira, “sempre que houver delegação da prestação dos serviços deverá haver contrato, sendo proibido o uso de instrumentos precários, como convênios ou termos de cooperação.A celebração de contratos está condicionada à elaboração de plano de saneamento ambiental e à vigência de norma local de regulação dos serviços. As minutas de edital de licitação, ou de termos de dispensa ou inexigibilidade, bem como de contrato, serão apresentadas em audiência e submetidas a processo de consulta pública”. O projeto prevê ainda a gestão associada entre os diversos entes da federação que poderão se valer da Lei 11.107/2005, que normaliza os consórcios públicos.

 

Disputa – A primeira polêmica gerada pelo projeto diz respeito ao fim do subsídio cruzado externo a município, consórcio, região metropolitana, microrregião, região integrada ou aglomeração urbana. Assim, a Sabesp, por exemplo, não poderá mais simplesmente utilizar os recursos arrecadados numa cidade para investir em outra, considerada deficitária. Essa possibilidade continua existindo, desde que haja concordância de um município em subsidiar outro. Nesse caso, os recursos irão para um fundo específico. Para Mauro Arce, secretário de Energia, Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de São Paulo, na prática, isso equivale a acabar com o mecanismo. “Se não for compulsório, não haverá por cooperação. Do jeito que está no projeto, é inviável”, afirmou. O representante da Aesbe (Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais), Walder Suriani, seguiu a mesma lógica. “Embasar o projeto de lei em solidariedade é um risco”, advertiu.

 

Poder concedente – Na outra ponta desse embate, Carlos Pedro Bastos, presidente da regional São Paulo da Assemae (Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento), festejou o que considera um equilíbrio de forças. “As relações com as companhias estaduais são muito difíceis, essas têm muitos direitos, enquanto os municípios têm muitos deveres”. Esse também foi o protesto do prefeito de Lins, Waldemar Casadei, que negocia a renovação da concessão à Sabesp com vencimento para este ano. “A Prefeitura deve participar da gestão e da discussão sobre estrutura tarifária e é preciso controle social dos serviços”, afirmou.

O prefeito linense tocou na outra grande disputa dessa questão: quem detém a titularidade dos serviços. Segundo a Constituição Federal, essa é da localidade. No entanto, sobram dúvidas quando se trata das regiões metropolitanas, freqüentemente atendidas em conjunto por companhias estaduais. Nesses casos, há quem defenda que o poder concedente é o Estado, interpretação do Tribunal de Justiça de São Paulo, segundo Arce. A questão aguarda sentença do Supremo Tribunal Federal. Por conta da polêmica, informou Oliveira, o projeto não entra na discussão e “sustenta-se seja qual for a decisão do Judiciário”.

Independentemente do resultado da briga entre “municipalistas” e “estadualistas”, serão necessários recursos vultosos para vencer o déficit no setor – o acesso a verba da União depende de adesão ao Sisnasa (Sistema Nacional de Saneamento). Segundo Oliveira, atingir a meta de universalizar os serviços de água, esgoto e resíduos sólidos nos próximos 20 anos demanda investimentos de R$ 185 bilhões. A idéia, segundo o Secretário, apostando-se que o País cresça 4% ao ano, é destinar para essa área 0,45% do PIB (Produto Interno Bruto) – R$ 6 bilhões em 2004, chegando a R$ 12 bi em 2024. “Como o PPA (Plano Plurianual) prevê investimentos federais da ordem de R$ 4,5 bilhões anuais, restariam R$ 1,5 bilhão para serem financiados pelos operadores, governos estaduais e municipais”, ponderou.

Na vida real, no entanto, os planos podem não se confirmar. Em 2003 e 2004, o montante destinado ao saneamento ficou em R$ 6,1 bilhão. Os chamados recursos não-onerosos (previstos no orçamento da União) somaram cerca de R$ 2 bilhões e os onerosos – financiados pela CEF (Caixa Econômica Federal), BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e outras instituições financeiras –, aproximadamente R$ 4 bilhões. No entanto, apenas R$ 1,54 bilhão foi de fato desembolsado, já que os operadores não foram capazes de fazer contratações.

 

Saídas privatizantes – A primeira dúvida diz respeito ao próprio desempenho da economia brasileira, cuja expansão está comprometida pela política monetária. A segunda é se o que está previsto no PPA será de fato respeitado, tendo em vista o contingenciamento orçamentário e as novas propostas de desvinculação de verbas para perseguir o déficit nominal zero. O terceiro ponto é saber se estados e municípios, sem capacidade de endividamento e submetidos à Lei de Responsabilidade Fiscal, terão acesso ao dinheiro. Isso coloca em risco inclusive a execução integral dos R$ 6,1 bilhões programados para 2005.

Esse quadro cria a situação bizarra na qual bilhões de reais sobram nos cofres dos bancos, mas não podem chegar aos municípios que precisam de dinheiro para construir redes de água e esgoto. “Não faltam recursos para o setor, pelo menos o BNDES está à disposição. Este ano, estimava emprestar R$ 3 bilhões ou R$ 4 bilhões para o setor, mal conseguiu contratar R$ 400 milhões por falta de projetos com viabilidade”, desabafou o gerente do Departamento de Desenvolvimento Urbano do banco, Mario Miceli. “Não se pode financiar o setor público. Para conseguir operar, temos que fazer essas engenhocas financeiras, como uma operação privada para uma companhia estatal”, completou.

Miceli referia-se às modalidades apresentadas por seu colega da CEF, Rogério de Paula Tavares. Como alternativa às restrições ao financiamento público, esse sugeriu as operações estruturadas (que incluem locação de ativos construídos pela iniciativa privada, concessão privada e operações de mercado de capital, como Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios e Fundo de Investimento em Participação) e as PPPs (Parcerias Público-Privadas).

Questionado sobre as amplas margens abertas à privatização no setor, evidenciada pelos agentes financeiros, Oliveira preferiu não se comprometer. “Isso é uma decisão do poder concedente, estados ou municípios”, afirmou. Esses, como se vê, podem não ter muita saída além de entregar seus serviços ao mercado, em geral mais interessado em lucros que no bem-estar da população.

 

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