Meio ambiente

Final feliz para novela da cobrança pelo uso da água?

Rita Casaro

 

Recuperação das bacias hidrográficas paulistas, investimentos em obras de saneamento básico e, principalmente, maior conscientização e ações efetivas para redução do consumo de água e da poluição, assegurando quantidade e qualidade de recursos hídricos. Essas são as expectativas com o estabelecimento da cobrança pelo uso da água, regulamentada pelo Decreto 50.667, de 30 de março último, e prevista na Lei 12.183, aprovada em dezembro de 2005. O ato encerra mais um capítulo da longa novela sobre o tema, que se arrasta desde 1998, quando a matéria chegou à Assembléia Legislativa.

De acordo com a recente lei paulista – desde 1997 existe similar federal para recursos hídricos provenientes de rios que atravessem mais de um estado –, a água passa a ser reconhecida como um “bem público de valor econômico”, devendo os usuários pagarem por ela (atualmente, arca-se apenas com os custos dos serviços de captação, tratamento e distribuição). Como orientação geral, desembolsa mais quem consome e polui mais; faz jus a benefícios quem conserva.

Objeto de inúmeras emendas e substitutivos enquanto tramitava no Legislativo, tal proposta jamais teve adversários declarados, mas gerou acirrada polêmica. A principal dizia respeito a como seriam cobrados e aplicados os recursos oriundos do uso da água – de forma centralizada pelo Daee (Departamento de Águas e Energia Elétrica) ou por bacia hidrográfica. A disputa terminou, prevalecendo a lógica da descentralização. “Houve o entendimento de que isso era o correto, tendo em vista que não se trata de imposto, mas de preço público. É como uma cobrança condominial, em que os usuários de uma certa região se cotizam para investir nela própria”, defendeu Luiz Roberto Moretti, do Comitê da Bacia Hidrográfica dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. Sua expectativa é que, com a cobrança estadual, os recursos para o local aumentem em R$ 20 milhões por ano.

Após estar plenamente implantada no Estado, a cobrança pode render ao Fehidro (Fundo Estadual de Recursos Hídricos) até R$ 400 milhões por ano. Porém, chegar a isso levará tempo e demandará várias providências, avisa o coordenador de Recursos Hídricos da Secretaria de Energia, Recursos Hídricos e Saneamento, Rui Brasil Assis. “Em termos práticos, pode começar a partir de janeiro de 2007, mas várias etapas precisam ser cumpridas até lá.”

 

Fases pendentes
A primeira tarefa, informa ele, é a consolidação de um cadastro de usuários, indicando volume captado, consumido e lançado, assim como a carga poluidora. Primeiramente, o levantamento incluirá as indústrias e os serviços de abastecimento (a Sabesp, os autônomos municipais e os privados). Ficam para um segundo momento os usuários rurais, que ganharam carência até 2010 para começar a pagar.

Depois, o CRH (Conselho Estadual de Recursos Hídricos) deve estabelecer “limites e condicionantes” à cobrança, conforme previsto na lei, a partir dos quais os comitês vão definir seus preços de acordo com estudos técnicos e negociados com os diversos setores representados nos comitês. Cada bacia deverá ainda fazer um plano quadrianual para o uso dos recursos e apresentar um anual de investimentos, especificando obras necessárias e custos. Depois, o pacote precisa ser aprovado pelo CRH e sacramentado por decreto do governador.

Tendo em vista a complexidade da tarefa, Assis duvida que todas as 22 bacias dêem conta do recado ainda neste ano. “Talvez a de Piracicaba e do Paraíba do Sul, nas quais já há cobrança federal e experiência acumulada”, pondera. Outro fator a retardar a vigência efetiva da nova lei será a grande dose de negociação necessária: “Do ponto de vista filosófico, quando se faz a discussão pública, todo mundo é a favor da cobrança. No entanto, quando se trata de calcular a própria conta, todos acham que devem ser isentos e cada um tem seus motivos.”

Confirmando a tese, o diretor de Meio Ambiente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Nelson Pereira dos Reis, foi taxativo: “A água é o recurso natural mais importante, fundamental à vida e utilizada em quase todos os processos industriais. A cobrança é um instrumento importante de conscientização para o uso racional. Contudo, é preciso que os valores sejam razoáveis e haja limites.”

Satisfeito com o que foi aprovado na legislação, que limita a cobrança a 0,001078 Ufesp (Unidade Fiscal do Estado de São Paulo), equivalente a R$ 0,01 por metro cúbico de água captada, ele manifesta preocupação quanto à definição de critérios para a cobrança, tendo em vista a composição dos comitês de bacias: um terço de representantes das prefeituras, um terço do governo estadual e um terço da sociedade civil. “Nas bacias federais, os usuários detêm 40% da representação. Achamos que é o modelo mais adequado”, propõe Reis. O temor, segundo ele, é que o que considera uma super-representação do poder público dê margem a uma sanha arrecadatória. “O espírito da lei está correto, mas a cobrança não pode se transformar numa fonte de recursos extraordinários. Deve ser feita onde precisa de investimentos para se garantir disponibilidade e, sobretudo, qualidade da água, mas, teoricamente, pode até ser dispensada em bacias nas quais não haja problemas”, avalia.

Mesmo quem não começa a pagar no ano que vem se precavê contra aumento de gastos. “Nós, da área rural, estamos discutindo e preocupados com o custo para o pequeno produtor; deve ser definido adequadamente quanto será o consumo insignificante (que não será cobrado). Mesmo para os grandes, deve haver limites para que o setor agrícola, que já passa por dificuldades, não seja prejudicado”, afirmou José Rodolfo Penatti, representante do Sindicato Rural de Piracicaba no comitê da bacia da região.

 

Sem medo da conta
Menos motivos de aflição têm, por ora, os usuários domésticos, que podem não sofrer grandes impactos. “Isso vai depender de cada comitê, mas o custo pode até ser assimilado pela concessionária. A Sabesp, por exemplo, não repassou a cobrança federal referente aos rios Piracicaba e Paraíba do Sul”, lembra Assis, da Secretaria de Recursos Hídricos. Hugo Marcos Piffer Leme, representante da Assemae (Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento), vai na mesma linha: “Quando estiver 100% implantada, juntamente com a federal, a cobrança deve representar cerca de 2% das despesas. Numa conta mínima, isso corresponderá a R$ 0,20 e pode não ser repassado pelo serviço municipal.” Estão isentos por lei de eventual acréscimo aqueles que fazem jus à tarifa social ou estão inscritos em algum dos programas governamentais, como o bolsa-família.

 

 

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