Amauri Pollachi*
Há um consenso entre defensores e opositores da Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020: ela altera radicalmente a prestação dos serviços de saneamento básico em favor do interesse do setor privado em dominar amplamente o setor.
As principais inovações do novo marco legal do saneamento são: (i) uniformidade da regulação, atribuindo à Agencia Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) a instituição de normas para regular os serviços de saneamento básico (cálculo tarifário, padrões de contratos, metas, etc.); (ii) regionalização da prestação de serviços, sob condições constitucionalmente discutíveis; (iii) proibição de contratos de programa e obrigação de licitação para prestação de serviços, reduzindo a gestão associada entre entes federativos; (iv) metas para abastecer 99% da população e esgotar 90% até 2033.
Vetos presidenciais ao texto original serão analisados pelo Congresso, com destaque ao Art. 16, que permitia regularizar ou prorrogar contratos de programa até 31 de março de 2022, para garantir um período de transição às companhias estaduais.
É inegável que ainda há milhões de brasileiros sem acesso a serviços de esgotamento sanitário, mas também é inegável que a Lei nº 11.445/2007, surgida após vinte anos sem diretriz política, permitiu avanços expressivos em todos os indicadores do saneamento e ampliou o atendimento para mais de 30 milhões de pessoas até 2017.
Para alcançar a universalização, o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), de 2019 aponta a necessidade de investimentos de R$ 357 milhões, que, corrigidos pelo IGP-M, correspondem a R$ 430 bilhões (jun/2020), valor muito abaixo dos R$ 700 bilhões falaciosamente divulgados pelo governo. O PLANSAB indica que a expansão de sistemas de saneamento deverá atender as regiões e os locais de mais difícil acesso e a população de renda mais baixa, sob uma equação financeira de elevado investimento com pequeno ou nenhum retorno. A Sabesp é um bom exemplo desse quadro, pois alcançou a universalização em cerca de 300 municípios dos 375 operados, restando atender áreas com maior complexidade de ocupação que exigem soluções integradas com outras políticas públicas.
Os defensores da nova lei argumentam, inclusive com dados manipulados, que os problemas no saneamento residem na prestação de serviços por entes públicos. Por outro lado, dissimulam os nefastos desempenhos do setor privado em Tocantins, Itu e Manaus.
A Lei 14.206/2020 não traz o necessário apoio técnico e financeiro para elaboração do planejamento e a operação dos sistemas. Tampouco soluciona a inconcebível ausência para o setor de saneamento básico de um fundo nacional de universalização e subsídios diretos à população carente e mais vulnerável, a exemplo de outros setores.
Essencialmente, a nova lei cria o monopólio privado para a água e o esgoto no País, alavancando a privatização sobre a parcela superavitária dos municípios com serviços prestados por empresas estaduais. Quase onipresentes em mídia e videoconferências, gestores do governo federal e analistas econômicos afirmam que há elevado interesse de grandes fundos de investimentos internacionais no saneamento brasileiro, uma oportunidade global única ofertada ao “apetite do mercado”, que certamente não será saciado por abastecer os rincões do sertão ou sanear as favelas das metrópoles.
O processo de privatização é visto como alternativa para obtenção de receitas extraordinárias para o Tesouro e desoneração da obrigação de investimento estatal. A expansão das atividades do capital privado em atividades diretamente ligadas às políticas públicas sociais ocupa, portanto, o espaço da retração intencional da presença do Estado nas três esferas da administração pública nacional.
No saneamento, o objetivo maior dos investidores é obter o controle acionário de empresas superavitárias e assentadas sobre uma base consolidada por contratos de longo prazo. Será um negócio estimado em dezenas de bilhões de reais e financiado por nosso patrimônio público administrado pelo BNDES, que não trará um real para o saneamento, pois será destinado a cobrir déficits das contas públicas dos estados. Portanto, recursos para alcançar a meta de universalização somente advirão por meio de sensível elevação de tarifas, preservada a máxima distribuição de dividendos aos acionistas.
A defesa da prestação de serviços públicos de saneamento está longe do corporativismo, mas sim, está muito perto do atendimento com água boa para toda a população, independentemente de sua condição social. Excluir as empresas e as associações de estados e municípios não é a solução para a universalização de água e esgotos a preços compatíveis com as diferentes condições regionais e sociais da população brasileira.
Em recente artigo, Bresser-Pereira opinou que a privatização de serviços públicos monopolistas é um sinal de “burrice nacional”. Podemos somar à burrice, a ingenuidade por acreditar que o grande capital eliminará esgotos de pés infantis nas periferias urbanas.
*Amauri Pollachi é mestre em Planejamento e Gestão do Território na Universidade Federal do ABC. Graduado em Engenharia Mecânica e História pela Universidade de São Paulo.