O Brasil pode voltar a ficar no escuro?
O maior blecaute registrado na
história do Brasil, em 11 de março último, que desligou o sistema interligado
do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, atingindo dez estados e o Distrito Federal,
abriu precedentes para aprofundar a discussão sobre o Sistema Elétrico
Brasileiro, embora a versão oficial ainda insista nas causas naturais. O ONS
(Operador Nacional do Sistema), que desde 1º de março assumiu a operação do
sistema interligado brasileiro, informou no dia seguinte que o apagão que
atrapalhou a vida de milhões de brasileiros, por mais de quatro horas,
aconteceu devido a um relâmpago na subestação da Cesp (Companhia Energética
de São Paulo), em Bauru. Mais tarde, após a população da cidade jurar não
ter visto raio algum e os equipamentos não apresentarem qualquer vestígio do
acidente, o governo afirmou que o problema foi numa linha de transmissão. A
Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) responsabilizou a Cesp pelo
desligamento do sistema devido à demora na solução de um curto-circuito, mas
sustenta a explicação do mau tempo.
Quase dois meses após o
episódio, continua a controvérsia. A versão oficial foi contestada pelo
vice-diretor da Coppe/UFRJ (Coordenação de Programa de Pós-Graduação em
Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro), Luiz Pinguelli Rosa, em
relatório entregue à Comissão de Infra-Estrutura do Senado Federal.
Basicamente, em sua avaliação, ele afirma que um raio não seria suficiente
para causar o blecaute.
Modelo
A polêmica trouxe à tona a discussão
sobre a eficácia e a vulnerabilidade do atual Sistema Elétrico Brasileiro, que
começou a ser implantado em 1995, no início do primeiro mandato de Fernando
Henrique Cardoso. À frente da Secretaria Nacional de Energia desde então até
março último, Peter Greiner teve papel fundamental nessa
formulação. O projeto foi desenvolvido pela consultora inglesa Coopers
& Lybrand, que importou modelo adotado em seu país, baseado na competição
dos sistemas de geração de base termoelétrica. O desenho teve de ser adequado
à energia hidroelétrica, predominante no parque gerador nacional, e às demais
disparidades entre os dois países, como mercado consumidor e características
geográficas. O trabalho, que contou com o envolvimento de 150 técnicos
brasileiros, prevê a efetivação de um mercado livre e competitivo para as
empresas de geração, transmissão e distribuição. O governo, através do
CNPE (Conselho Nacional de Políticas Energéticas), dará as grandes diretrizes
para o País e o braço executor continuará sendo a Eletrobrás. À Aneel
caberá regular e fiscalizar a prestação dos serviços públicos, fixar
tarifas, licitar, dar e cassar concessões e punir pelas falhas. A sua
responsabilidade também será regulamentar o MAE (Mercado Aberto de Energia),
em que as distribuidoras comprarão a energia produzida pelas geradoras. O ONS,
entidade privada que assumiria no dia 26 de maio as funções do GCOI (Grupo
Coordenador de Operações Interligadas), só o fará em 2000. Continuará,
contudo, sendo responsável pela operação. O GCOI é subordinado à
Eletrobrás, que tem manifestado disposição de continuar participando do
sistema, contribuindo com as empresas já privatizadas.
Segundo Greiner, como o modelo deveria se
adequar à agenda macroeconômica brasileira, que inclui a privatização das
empresas energéticas do País, o primeiro resultado foi um relatório de
referência, com necessidade de ajustes a serem feitos quando da sua implementação.
Na opinião do ex-secretário, para garantir o funcionamento do sistema, o
governo precisará concentrar esforços para pôr em prática o que está no
papel, até para tranqüilizar o investidor. "Há uma certa desconfiança
de como irá funcionar o mercado, daí a urgência da implementação, para
tirar dúvidas e antecipar informações."
Um ponto crucial desse novo
modelo é que não se sabe quanto a iniciativa privada está disposta a investir
no sistema. Segundo Greiner, 90% das usinas hidroelétricas no mundo inteiro, e
mesmo nos Estados Unidos, foram construídas pelo Estado. "Será
necessário incentivo do governo para que realmente se execute o programa.
Existem problemas de fundo que devem ser resolvidos com empenho, rapidez e
objetividade. Ao contrário, o prejuízo para o Brasil será grande",
advertiu.
Sob controle
Na opinião do secretário de
Energia do Estado de São Paulo, Mauro Guilherme Jardim Arce, a situação está
sob controle. Conforme ele, qualquer sistema elétrico interligado, no Brasil ou
no Primeiro Mundo, está sujeito a blecautes, como o de março último. "A
probabilidade de ocorrer é muito baixa, mas a possibilidade sempre existe, por
mais que se invista." Na avaliação do secretário, o sistema hoje é
melhor do que era em 1997 e em 1998, mas ainda há pontos que estão sendo
reforçados, como o terceiro circuito de corrente alternada de Itaipu, obras em
andamento e interligações, "sempre com o intuito de melhorar e reduzir a
probabilidade de ocorrência de blecautes".
Para garantir a eficiência de um modelo
energético, Arce defende que haja órgãos reguladores com poder para
fiscalizar e punir, além de regras bem-definidas. No âmbito estadual, foi
criada, mas ainda está sendo implementada, a CSPE (Comissão de Serviços
Públicos de Energia). Para o secretário estadual, a Aneel tem atuado cada dia
melhor. "Os contratos atuais são bem mais rigorosos que aqueles celebrados
com as primeiras empresas privatizadas, como Light e Escelsa", assegurou.
Racionamento
Não está tão confiante na
eficácia do modelo o gerente do Departamento de Planejamento da Cesp, Dorel
Soares Ramos, para quem o sistema está no limite. "Hoje, dependemos muito
de Itaipu, que tem que despachar o máximo de energia na hora de pico. A reserva
está no limite do admissível, qualquer imprevisto pode causar um corte de
carga localizado", advertiu. Assim, é preciso fazer investimentos tanto em
geração quanto em transmissão.
Ele informou que o governo
federal está pensando em tomar medidas emergenciais para estimular novas
plantas termoelétricas. "O Plano Decenal da Eletrobrás mostra que nos
próximos dez anos temos que aumentar o sistema em 40 milhões de megawatts, o
que significa 4 mil megawatts ao ano, uma taxa média de 4,8%" , avaliou
Ramos.
Se a oferta não alcançar a demanda, só resta a
solução do racionamento. A hipótese está descartada para este ano, mas não
para os próximos. Segundo Ramos, para o ano 2000 a probabilidade de
racionamento é de 10%. Para o gerente da Cesp, na transmissão,
especificamente, são necessárias medidas emergenciais, como aumentar a
segurança em pontos nevrálgicos e melhorar a proteção do sistema. Por tudo
isso, ele considera que será fundamental o papel dos órgãos de regulação ou
fiscalização. Ou seja, será crucial a Aneel e a CSPE de fato funcionarem para
que os brasileiros não corram o risco de se ver às escuras novamente.
SEESP questiona incertezas quanto à
privatização da CESP
A privatização da Cesp
(Companhia Energética de São Paulo) foi adiada por tempo indeterminado, em 20
de abril último. Diretores do SEESP receberam a notícia do próprio
secretário de Energia Mauro Guilherme Jardim Arce, durante audiência. O
governador do estado, Mário Covas, tomou a decisão devido à pressão de
deputados, prefeitos e sindicalistas, que apontaram diversos problemas no
processo de venda da estatal. A mobilização teve início em 6 de abril, na
Audiência Pública da Privatização, na Bolsa de Valores de São Paulo,
ocasião em que foi formada uma comissão de parlamentares para acompanhar a
discussão e tentar esclarecer as dúvidas.
Integrando o movimento, o SEESP
encaminhou documento à direção da Cesp, às Secretarias de Governo, à Aneel
e ao Ministério de Minas e Energia apontando problemas tanto em relação à
geração, quanto à transmissão. A análise antevê conseqüências do modelo
de privatização adotado pela Cesp, considerado inviável e precipitado por
falta da regulamentação do Governo Federal. O projeto determina a divisão em
quatro empresas, três de geração e uma de transmissão, ficando essa última
sob controle do Estado.
Na avaliação do SEESP, mesmo
vendendo as geradoras de energia, o Estado não se exime de responsabilidade
pelo abastecimento da energia. Até porque, caso haja falhas nesse serviço, o
próprio crescimento do consumo de energia — estimado em 5% ao ano — estará
comprometido, com a redução do potencial de investimentos privados e o aumento
do desemprego. Além disso, causará queda da arrecadação do Estado, a
ampliação das despesas de custeio, novos passivos e ainda prejudicará a
programação do governo de equilíbrio fiscal.
Frente a isso, é fundamental que
se estabeleça clara e formalmente quem estará encarregado de garantir o
aumento da oferta de energia. A Aneel não definiu a quem caberá executar as
obras de expansão do sistema de transmissão de pequeno e médio porte. A Cesp
venderá as usinas hidroelétricas sem nada exigir como investimentos dos
futuros controladores, que não terão que pagar pelo uso da água e quedas
naturais dos rios. O justo é que sejam exigidos investimentos que assegurem o
fornecimento de energia, como o governo federal que, na privatização de suas
empresas, ligadas ao Grupo Eletrobrás, exigirá no edital de venda que os
interessados se comprometam com o aumento de 25% da capacidade instalada, nos
próximos cinco anos.
A receita definida pela Aneel
para a nova empresa de transmissão, que permanecerá estatal, é de R$ 320
milhões por ano, cifra insuficiente para as obras necessárias à expansão do
sistema elétrico e até à própria manutenção do existente. Não bastasse
isso, o ONS (Operador Nacional do Sistema) está subtraindo das empresas de
transmissão R$ 60 milhões por ano, referentes à diferença entre o que
pagará a elas e o que receberá das distribuidoras pela energia transmitida,
comprada das geradoras da Cesp.
Pairam também indefinições quanto às
hidrovias e as bacias dos rios. Entre os vários questionamentos levantados pelo
SEESP, estão: como serão operadas as eclusas; a possibilidade de aumento dos
custos dos fretes com a nova empresa; a participação do Dersa na operação
das hidrovias; a manutenção das comportas dessas; o nível de urgência para o
dono da usina ao efetuar um conserto necessário que esteja impedindo a
navegação; e o destino dos programas de preservação e recuperação do meio
ambiente desenvolvidos pela Cesp.
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