"Estamos vivendo a cura da ressaca
provocada pela queda do Muro de Berlim. É a primeira vez que vejo tanta
gente progressista olhando para a frente." A afirmação, com a qual o
escritor Frei Betto abriu, em 26 de janeiro, um dos painéis que fizeram
parte da extensa programação do Fórum Social Mundial, é provavelmente o
melhor retrato do evento.
A idéia de que "um outro mundo é possível" poderia ser apenas
um slogan bem-bolado, mas ganhou corações e mentes em toda parte,
entre os dias 25 e 30 de janeiro, período em que o FSM 2001 aconteceu em
Porto Alegre. Superando as expectativas da organização, o Fórum reuniu 10
mil pessoas oriundas de 120 países, que participaram das cerca de 400
oficinas (leia reportagem sobre a realizada pelo SEESP), assistiram a
16 conferências, testemunhos de personalidades e presenciaram ou promoveram
manifestações diversas.
O evento não coube nas instalações da PUC-RS e foi necessário utilizar
salas da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Além disso,
estava espalhado por toda a capital gaúcha em atividades culturais, como a
exposição "Davos? Tô Fórum!". Promovida pela Associação dos
Cartunistas do Rio Grande do Sul, a iniciativa ganhou os muros da cidade e
circulou pelas ruas em painéis de ônibus.
O apoio da população e a diversidade do evento ficaram evidentes durante a
"Marcha contra o Neoliberalismo e pela Vida", no dia 25, após a
abertura solene do Fórum. Aproximadamente 13 mil homens e mulheres,
trabalhadores, estudantes, gays, punks, anarquistas, artistas
e militantes dos mais diversos movimentos sociais saíram do centro de Porto
Alegre e, apesar de uma dissidência temporária de 200 manifestantes que
fizeram um desvio para protestar em frente a uma loja do McDonald’s,
chegaram juntos ao Anfiteatro Pôr do Sol, bem a tempo de ver o famoso cair
da tarde às margens do Rio Guaíba.
ALTERNATIVA REAL
Se, há alguns meses, a proposta poderia ser tomada por um mero espernear
dos descontentes que tentariam atingir as alturas de Davos com pedregulhos
impotentes, ao final de janeiro foi preciso reconhecer sua relevância e
seriedade. Um sintoma do sucesso foi a disputa em torno do local em que se
realizaria o próximo Fórum, assunto sobre o qual o comitê organizador se
viu obrigado a debruçar na madrugada que antecedeu o encerramento. Ao
final, venceu o sentimento geral entre o público e o FSM 2002 acontecerá
em Porto Alegre. O anúncio arrancou aplausos das 3 mil pessoas que lotaram
o Centro de Eventos da PUC para se despedir do FSM. Também ficou a proposta
de realização de fóruns paralelos em outros locais.
Organizado por Le Monde Diplomatique, Attac-Brasil (Ação pela Tributação
das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos), Ibase, Associação de
Empresários para a Cidadania, Comissão de Justiça e Paz da CNBB, MST,
CUT, Associação Brasileira de ONGs, Justiça Global, além dos governos de
Porto Alegre e Rio Grande do Sul, o evento aglutinou forças progressistas
dispersas pelo mundo e proporcionou uma articulação internacional entre
elas. O caráter de protesto ao Fórum Econômico Mundial, que se reunia
simultaneamente na Suíça, foi muito além da gritaria e traduziu-se em
propostas consistentes formuladas sobretudo durante as conferências que
compuseram os quatro eixos: "A produção de riquezas e a reprodução
social", "Acesso às riquezas e à sustentabilidade",
"Afirmação da sociedade civil e dos espaços públicos" e
"Poder político e ética na nova sociedade".
Ainda na véspera do início do Fórum, a idéia básica que permearia as
discussões era enunciada por Bernard Cassen, presidente da Attac da França
e diretor geral do jornal Le Monde Diplomatique: o atual processo de
globalização, que trouxe lucros fantásticos às grandes corporações e
aos especuladores financeiros, com o conseqüente empobrecimento dos
trabalhadores, é plenamente reversível. "Há banqueiros e economistas
que temem pela globalização porque sabem que a situação não pode
continuar assim por muito tempo. Os protestos estão se avolumando e se
tornarão cada vez mais fortes. O Fórum Social Mundial é um grande
indicador dessa tendência. Isso mostra que o neoliberalismo já está
perdendo terreno."
Na opinião de Cassen, isso já ocorreu no campo intelectual, com a derrota
do chamado pensamento único, restando apenas que se passe ao campo das
decisões políticas."Há um hiato entre os anseios da opinião
pública e as posições adotadas porque, em países como Brasil e
Argentina,os governos consideram que não servem a seus próprios povos, mas
a outros interesses, como os do Banco Mundial."
Um grande exemplo do desastre em que se configurou o neoliberalismo seria
justamente o resultado das privatizações. "Trata-se de um processo de
entrega de um bem comum a interesses econômicos particulares, porque não
há nenhuma necessidade de desestatizar empresas públicas. Muitas vezes é
apenas uma maneira de enriquecer amigos do poder que compram por preços
baixos o que vale muito mais." O presidente da Attac francesa também
rechaçou a necessidade de se conseguir recursos para arcar com a dívida
externa como justificativa para as privatizações. "Atualmente o que
se paga é o serviço da dívida, porque essa já foi quitada. Interromper
esse pagamento é uma medida de justiça elementar a todo o Terceiro Mundo e
em particular ao Brasil."
TECNOLOGIA EM DEBATE
Num mundo de frenéticos avanços
tecnológicos, boa parte dos debates do FSM foi dedicada ao tema da ciência
e tecnologia. Um dos pontos de consenso nessa área foi o repúdio aos
alimentos transgênicos, que mereceram até uma ação paralela na cidade de
Não-me-toque.Nessa localidade, uma caravana de líderes camponeses de todo
o mundo, liderada por José Bové, presidente da Confederação Nacional de
Camponeses da França e dirigente da Via Campesina, promoveu no dia 26 de
janeiro a destruição de dois hectares de soja transgênica plantada no
centro experimental da Monsanto. O ato rendeu a Bové, na noite de 29 de
janeiro, uma notificação da Polícia Federal para que deixasse o Brasil em
24 horas, anulada por um habeas corpus concedido pela Justiça, o qual
permitiu a ele permanecer no País até o dia 31, data em que pretendia
partir.
Se a manifestação dos camponeses serviu para chamar a atenção para o
assunto, a discussão realizada em 26 de janeiro — "Como traduzir o
desenvolvimento científico em desenvolvimento humano?" — deu a
idéia da problemática apresentada pela ciência dissociada do que deveria
ser sua finalidade. "Está em formação no mundo um controle global
verdadeiramente tecnoditatorial, que quer nos fazer crer, primeiro, que
ciência nada tem a ver com ética, moral e religião e, depois, que é
igual a tecnologia", apontou o ecologista José Lutzemberger,
representante da Fundação Gaia. Segundo ele, nada mais equivocado, já
que, enquanto a ciência baseia-se numa decisão ética, onde não haveria
lugar para a mentira, a tecnologia, a política da técnica, estaria cheia
de trapaças. "São políticas de obsolescência planejada, como a que
leva as pessoas a trocarem de carro a cada ano. Isso não atende a
necessidades humanas, mas a interesses econômicos."
Exatamente para mudar esse rumo, o biólogo Jacques Testart, diretor de
pesquisa do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França e
presidente da Comissão Francesa de Desenvolvimento Duradouro, propôs o
controle do avanço da tecnociência. O caminho seria a formação das
"Conferências de Cidadãos", em que pessoas não-especializadas
recebem capacitação e podem confrontar cientistas nas diversas questões
de interesse público. Esse instrumento seria bastante útil, acredita
Testart, num caso como o dos transgênicos, em que as multinacionais estão
cientes de que há riscos, mas o saber que os cientistas detêm ainda não
é suficiente para determinar o perigo real, ficando os consumidores reféns
dos interesses de uns e da ignorância de outros.
O tema foi também tratado pelo italiano Ricardo Petrella num dos painéis
que ocorreram em 27 de janeiro. "Se queremos mesmo um novo mundo,
devemos construir um que seja global, baseado numa sociedade que viva em
conjunto e na qual todos tenham acesso às riquezas." Falando a um
auditório lotado no Teatro da PUC, o conselheiro do Comitê Europeu e
professor da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, propôs mudar
radicalmente o conceito de política científica e tecnológica, recusando
que essa seja um instrumento para aumentar a competitividade da economia
nacional e das empresas, mas gerando o bem-estar social. "Devemos
abandonar a lógica da substituição dos bens por outros mais baratos, se
esses destroem o ambiente. O que é mais vantajoso para o capital não é
melhor para a população."
POLÍTICA DA DISTRIBUIÇÃO
Outro ponto central para o FSM 2001
era justamente desenhar as propostas alternativas ao neoliberalismo e a base
foi dada pelo economista francês René Passet, presidente do Conselho
Científico da Attac. "Chegou a hora de partilhar e a distribuição
deve ser feita entre os povos no mundo, entre as classes sociais dentro dos
países e entre os seres humanos através das gerações", declarou.
Para que isso seja posto em prática, é preciso, segundo ele, anular a
dívida internacional, reduzir jornadas de trabalho para que haja mais
empregos e se administre o Planeta de modo a conservar seus recursos
naturais.
Passet fez a crítica da chamada racionalidade neoliberal, que "só
sabe produzir riquezas destruindo a quem essas seriam destinadas, mas por
trás das mercadorias devemos ver as pessoas que as fazem, em que
condições trabalham e vivem". O economista ressaltou que a
implicação concreta da distribuição é subordinar as trocas comerciais
ao respeito às normas sociais e ambientais. "Isso significa submeter
as forças do dinheiro e colocá-las no seu devido lugar, a serviço da
humanidade", sentenciou, defendendo a criação da Taxa Tobin sobre o
capital financeiro.
Se o discurso sobre a distribuição poderia parecer um tanto abstrato, o
assunto ganhou substância após a intervenção da representante do Cosatu
(Congresso de Sindicatos Sul-Africanos), Joyce Phekane, que trouxe à tona
um tema doloroso ao mundo: a Aids na África. "Há quatro milhões de
infectados na África do Sul e eles estão morrendo porque não temos acesso
aos medicamentos que curam as doenças oportunistas." Resta confiar nas
esperanças do delegado do Burundi, país africano, que, no encerramento do
Fórum, afirmou convicto: "Um outro mundo é possível, porque a roda
da História gira e, por mais escura que seja a noite, um novo dia
chegará."
O FÓRUM, SEGUNDO DELEGADOS DO SEESP
EM PORTO ALEGRE
"Quando nossa esperança de um
modelo de desenvolvimento estava restrita a uma pequena chama interna e
vivíamos a imposição do pensamento hegemônico, surgiu em Porto Alegre o
Fórum Social Mundial. Esse encontro mostrou que podemos ter divergências
em como lutar por um mundo mais solidário, mas o centro
da questão é o
homem."
João Paulo Dutra – diretor-tesoureiro
"Nossa participação foi
bastante importante e coerente, pois têm sido pauta constante do Jornal
do Engenheiro os efeitos do neoliberalismo no País. Os contatos
mantidos com inúmeras organizações nos possibilitarão ampliar as ações
futuras, inclusive fora do Brasil, garantindo nossa integração e
participação em todos os movimentos de lutas internacionais contra, por
exemplo, o monopólio privado na exploração da água, saneamento básico,
energia elétrica, telecomunicações, agricultura etc."
Rubens Lansac Patrão Filho – diretor da Delegacia Sindical de Campinas
"O que se viu em Porto
Alegre foi um reagrupamento das tropas que lutam pelo social, dispostas a
encontrar soluções diferentes das já experimentadas. Algumas chegaram a
ser marginalmente abordadas como a formulação de novas formas de
propriedade. Tais soluções, contudo, ficarão para os próximos
fóruns."
Geraldo Hernandes Domingues – diretor da Delegacia Sindical da
Baixada Santista
"O FSM foi um grande
momento de reflexão. Através das palestras, tivemos oportunidade de
visualizar claramente que a humanidade está sendo manobrada conforme
interesse de uma minoria que detém o poder econômico e a mídia. Com
união e exercício de cidadania, poderemos seguir um novo rumo."
Carlos Augusto Ramos Kirchner – diretor da Delegacia Sindical de
Bauru
"O Fórum Social Mundial
demonstrou que um mundo melhor é possível, através da união de pessoas
que vêem em seus semelhantes seres com direito a uma vida mais digna."
Paulo Grava – diretor da Delegacia Sindical de Bauru
"Fiquei muito orgulhoso de
ter participado da delegação do SEESP no Fórum Social Mundial. Nossa
representação fez mais que marcar presença. Todos os objetivos foram
atingidos e a nossa atuação contribuiu para o inegável sucesso do evento.
Como já está convocado o FSM 2002, devemos começar a preparar nossa
participação."
João Guilherme Vargas Neto – assessor político do SEESP
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A
oficina organizada pelo SEESP para
o FSM 2001 aconteceu em 28 de janeiro, no prédio da Reitoria da UFRGS
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul), tratando de diversos assuntos
que têm mobilizado a entidade.
A primeira parte foi dedicada a apresentar o Promore (Programa de Moradia
Econômica), criado pelo SEESP em 1988 e desde então funcionando na cidade
de Bauru. Basicamente, a idéia é oferecer, a um só tempo, oportunidade ao
engenheiro recém-formado de adquirir experiência profissional, social e
coletiva de trabalho e assessoria técnica para que o cidadão possa
construir sua casa, pagando uma taxa única de R$ 120,00 a R$ 180,00,
dependendo da área útil do imóvel.
Sob a supervisão de profissionais experientes, o engenheiro em início de
carreira fornece ao cidadão interessado projetos personalizados com todos
os detalhamentos construtivos. Conforme o dirigente do SEESP em Bauru, Paulo
Grava, a proposta é contribuir para que a população de baixa renda, por
meio da autoconstrução, consiga erguer a sua casa sem desperdício, com
segurança e o conforto devido. Ele informou que, nos 12 anos de atividade,
foram aprovadas 3 mil plantas e a construção ou reforma de mil casas.
ENERGIA
Outro tema debatido foi a onda de
privatização das empresas energéticas. A discussão, que contou com a
presença do presidente do Fórum Mundial de Energia, Joel Da Silva, apontou
para os vícios dessas operações, marcadas por preços baixos, muitos
benefícios e poucas obrigações aos compradores. Segundo Carlos Augusto
Ramos Kirchner, diretor do SEESP, a raiz do problema está no novo modelo do
setor elétrico, que dividiu as antigas empresas em várias geradoras,
transmissoras e distribuidoras, criou o Mercado Atacadista de Energia e
transformou o que era uma utilidade pública em mercadoria.
Ele alertou para o risco iminente de falta de energia, já que não existem
regras claras para a geração. E salientou que a capacidade atual instalada
no País, de 65.000 MW, teria que ser aumentada em 50% nos próximos oito
anos e dobrar após outros seis. "Fazemos algo agora ou sentamos e
esperamos o caos com o colapso do setor elétrico", concluiu Kirchner.
MEIO AMBIENTE
O engenheiro da Sabesp, Cid Barbosa
Lima, falou sobre a necessidade de controle ambiental como fator de
proteção do Planeta, assim como a importância da participação da
sociedade nessa fiscalização. Reafirmando o que foi defendido no FSM,
acrescentou: "Os princípios éticos devem significar o norte da
ciência e da tecnologia para que num mundo globalizado a consciência de
nossa realidade regional seja parte integrante de um processo universal de
transformações."
LEGISLAÇÃO TRABALHISTA
Geraldo Hernandes, diretor do SEESP na Baixada Santista, explanou uma das
perversidades da receita neoliberal, a flexibilização dos direitos
trabalhistas. Ele defendeu a manutenção das atuais leis que protegem o
trabalhador, garantindo ser, diferentemente do que pregam "os
porta-vozes da modernidade", o modelo brasileiro bastante razoável.
"A Constituição cidadã de 1988 deu ao empregado todos os
instrumentos para entrar no jogo das relações do trabalho em iguais
condições, inclusive com direito de greve constitucionalmente assegurado,
mas no interesse da sociedade regulamentado", lembrou.
ÁGUA, BEM UNIVERSAL
A delegação do SEESP também
participou da oficina organizada pelo italiano Ricardo Petrella, do comitê
pelo Contrato Global da Água. Intitulada "O direito à água e água
como um bem comum da humanidade", a oficina tratou das conseqüências
das privatizações em várias partes do mundo e propôs uma agenda para os
defensores do recurso como um patrimônio universal.
Segundo Petrella, é preciso garantir que os 8 bilhões de habitantes da
Terra em 2020 tenham acesso à água e, para tanto, será necessário firmar
o "Contrato Global da Água". Para chegar até ele, um importante
passo é que a reunião marcada para 2002, Rio + 10, reconheça o recurso
como um bem universal da humanidade e não econômico.
Nessa luta, há também que se impedir as privatizações e assegurar o
financiamento público do investimento na infra-estrutura que atenderá a
demanda futura. "Para que isso seja possível, teremos ainda que mudar
o atual modelo industrial e agrícola, muito consumidores e poluidores de
água", asseverou Petrella.
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