Incertezas

Sem novas regras, R$ 3 bi do BNDES podem escoar pelo ralo da crise no setor elétrico

Ainda sem um novo modelo que substitua o atualmente em vigor, implantado a partir de 1996, o Governo acabou cedendo às pressões para socorrer as distribuidoras privadas. Um pacote de R$ 3 bilhões, a serem concedidos pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), compõe o “Programa de Apoio à Capitalização de Empresas Distribuidoras de Energia Elétrica”, anunciado em 16 de setembro. A quantia pode ser ampliada e será utilizada até 31 de dezembro de 2004.

A idéia é alongar o perfil da dívida das empresas que chega aos R$ 30 bilhões – sendo cerca de R$ 10 bilhões com vencimento em até um ano. Em troca, o BNDES terá debêntures conversíveis em ações. Para pôr as mãos no dinheiro do banco público, a concessionária terá que firmar acordo de renegociação com seus credores de pelo menos 30% do que tem a pagar no curto prazo. Créditos em favor do acionista controlador deverão ser transformados em capital.

Em estudo que defende a ação governamental — já apelidada de Proel, numa referência ao Proer, operação de salvamento do sistema financeiro feita por FHC —, o assessor técnico da bancada do PT no Senado, Delman Ferreira, diz que a proposta visa dar “fôlego às empresas, de forma a garantir sua operacionalidade e a continuidade das manutenções preventivas, evitando falhas nos equipamentos”. Argumenta ainda que “seria imprudência tentar implantar um novo modelo em ambiente de crise”, fazendo-se necessárias “medidas emergenciais que devolvam tranqüilidade ao setor”.

 

Estatais ficam de fora
A mesma lógica, contudo, não está sendo obedecida no caso das estatais, como a Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais), que não serão beneficiadas pelo socorro. Segundo informações do BNDES, o provisionamento de 100% da dívida da AES – de cerca de US$ 1,2 bilhão (veja quadro) – comprometeu a capacidade de empréstimo do banco. Isso reduziu seu patrimônio líquido de referência, do qual apenas 45% podem ser concedidos ao setor público. Além disso, as exigências para o socorro incluem itens incompatíveis com a natureza dessas companhias, como a emissão de debêntures e a adesão ao nível 2 de governança corporativa, que prevê a adoção da arbitragem.

Assim, ainda não se equacionou a crise das distribuidoras federalizadas, que seriam privatizadas pelo Governo anterior. Sob controle da Eletrobrás, Manaus Energia (AM), Ceam (AM), Boa Vista (RO), Eletroacre (AC), Ceron (RO), Cepisa (PI) e Ceal (AL) acumulam uma dívida de R$ 1,9 bilhão. Ao final de 2003, terão sido aportados pela Eletrobrás R$ 255 milhões nessas companhias — até o momento já foram repassados R$ 160 milhões.

Outra ala do setor público que aguarda ação governamental são as geradoras, prejudicadas pela atual sobra de energia no País e pelo cancelamento de 25% dos seus contratos com as distribuidoras desde 1º de janeiro deste ano. Com isso, essas empresas, entre elas a paulista Cesp Paraná, têm 7.500MW sem contrato. Se forem mantidas as regras estabelecidas na era FHC, em 2004 mais 25% do montante de energia passa a ser comercializado livremente, o que deve agravar a situação.  

Final feliz para a AES

Festejado pelo mercado de ações do setor elétrico, finalmente ocorreu o desfecho da negociação da dívida de US$ 1,2 bilhão que subsidiárias da AES Corp, controladora da Eletropaulo, têm com o BNDES. O grupo estadunidense havia parado de pagar o banco no início do ano e, desde então, procurava-se uma saída para o impasse. Em 8 de setembro, saiu o acordo, cujos bastidores, conforme relatado pelo colunista da Folha de S. Paulo, Luís Nassif, transitaram pelas áreas de influência do Governo Bush e pelo gabinete do ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu. A fórmula é a criação de uma nova empresa, ainda com nome provisório de NovaCom, que incluirá todos os ativos da AES no Brasil. Metade da dívida com o BNDES, que entra como sócio, detendo 50% das ações menos uma, será incorporada ao seu capital. Assim, o papagaio já se reduz a US$ 600 milhões. Desses, a AES pagará 10% e os US$ 540 milhões restantes serão pagos em dez a 12 anos. Como garantia, serão emitidas debêntures conversíveis em ações. Se houver novo calote, o BNDES fica com o controle da NovaCom.

As grandes vantagens do acordo, para o banco público, foram evitar uma disputa judicial para cobrar a dívida da AES e tirar do caminho cerca de 14 subsidiárias com sede em paraísos fiscais, passando a negociar com a matriz.  A contabilidade do BNDES também fica mais atraente, tendo em vista que um passivo enorme, num passe de mágica, se transformou em ativo e dívidas já vencidas têm novos e confortáveis prazos. Mas os benefícios param por aí. A Eletropaulo está altamente endividada e o BNDES torna-se seu garantidor, o que é ótimo para os credores da distribuidora. Passará a ser também co-responsável pela dívida da AES Tietê, que entrará no acordo.

Por conta disso, o BNDES corre o risco de ser chamado a fazer aportes em dinheiro vivo para fazer frente ao fluxo de caixa da Eletropaulo, cujo endividamento já atingiu R$ 6,3 bilhões, praticamente a sua receita anual, de R$ 6,8 bilhões. Ainda com status de um memorando de entendimento, deve haver uma auditoria para que o acordo se torne formal e definitivo, em dezembro próximo.

Aparentemente, a lógica reinante no País de não provocar o capital internacional evitou que se optasse pelo fim antecipado da concessão, o que poderia ocorrer com a decretação de sua caducidade. A iniciativa caberia à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e ao Governo, em vista do desequilíbrio econômico-financeiro comprovado da concessionária.

Texto anterior
Próximo texto

JE 220