Deborah Moreira*
O engajamento da população por mais áreas verdes, nos grandes centros urbanos, vem crescendo. Uma pesquisa realizada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), que observou parques urbanos nas principais capitais do País, entre 2000 e 2017, identificou 244 novas áreas.
São Paulo, que possuía 40 parques em 2000, em 2017 ganhou 76 novos locais; Vitória eram quatro e ganhou sete; Recife nove e ganhou mais cinco; Belo Horizonte possuía 29 e ganhou 33; Goiânia que possuía somente três e contabilizava em 2017 outros 39 espaços verdes.
A pesquisa de doutorado “Parques Urbanos no Brasil 2000 a 2017”, da arquiteta Francine Sakata, constatou que o ambiente do parque urbano brasileiro do século 21 ganhou características e significados diferentes das dos séculos 19 e 20, principalmente em relação ao uso e distribuição pelo espaço urbano.
“Jardins urbanos que se destinavam à fruição das elites no século 19 e das massas no século 20 apresentam-se, entre 2000 e 2015, como figura híbrida, relacionada à preservação ambiental e ao lazer, mas não necessariamente a ambos”, diz um trecho do estudo.
Entre os novos espaços estão os parques lineares, que tanto se apresentam em forma de conjuntos de pequenos espaços livres articulados por curso d´água, como de projetos de grande envergadura que articulam uma sequência de parques no território urbano. O estudo conclui que o conjunto de parques demonstra que houve mudança na percepção do valor dessas áreas pela sociedade brasileira.
“É muito importante esse aumento de conscientização sobre a importância das áreas verdes, para o meio ambiente e uso do espaço. Esses novos parques foram inaugurados porque a população reconhece isso hoje como algo importante”, afirmou o arquiteto e urbanista Fabio Mariz Gonçalves, professor do Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Universidade de São Paulo (USP), especialista em Paisagem Urbana, que orientou a pesquisa.
Gonçalves citou um dado curioso sobre o Ibirapuera para ilustrar a mudança no padrão de comportamento: “Quando o Ibirapuera foi inaugurado, não houve nenhuma matéria que falasse sobre a área verde do parque, todas falavam das marquises, dos prédios, da arquitetura do Oscar Niemayer, equipamentos públicos. A mudança a gente percebe com a inauguração do Auditório do Ibirapuera, na década de 1990, quando houve uma mobilização para que a área gramada fosse preservada”.
Um exemplo de disputa imobiliária, que começou no século 20, é a do terreno no entorno do Teatro Oficina Uzyna Uzona, no bairro da Bela Vista, na capital paulista, onde o Grupo Silvio Santos pretendia construir três prédios de até 100 metros de altura que prejudicariam a construção do teatro, tombado desde 2010 pelo patrimônio histórico. Em 2017, um Projeto de Lei (805) foi elaborado pelo vereador Gilberto Natalini (PV) para a criação do Parque Municipal do Bixiga. No dia 12 de fevereiro último, o PL foi aprovado em segunda votação, dando fim a disputa. Aguarda sanção do prefeito.
Parque Augusta
Outra disputa tão antiga quanto ocorre desde 2000: o Parque Augusta. Idealizado pela advogada Célia Marcondes, paulistana moradora da região da Bela Vista, na década de 1980, quando passava de ônibus elétrico em frente ao terreno fechado já com a ideia: “Daria um ótimo parque”.
Ela conta que, nos anos 2000, com a criação da Associação de Moradores de Cerqueira César, ela começou a coletar assinaturas, no Clube Inglês, próximo ao terreno, em um abaixo-assinado para o local se tornar um parque.
“Quando fui ao legislativo e procurei por vereadores foi que tive contato com o histórico oficial do terreno, que já previa em documentos anteriores uma servidão de passagem e Decretos de Utilidade Pública, como um determinado por Jânio Quadro, no final dos anos 80. Desde 2004, o bosque e os muros remanescentes do Colégio Des Oiseaux, são tombados pelo Compresp [Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo]”, recordou Marcondes.
No total, a área de 24 metros quadrados abriga cerca de 700 árvores nativas da Mata Atlântica e há ruínas do antigo Colégio Des Oiseaux, que ocupou a área durante sessenta anos, até o final da década de 1960, oferecendo ensino às meninas da alta sociedade paulistana. “Também defendemos a preservação das arcadas encontradas sob o muro frontal do terreno. Há indícios delas terem servido como pontilhão em obra de canalização de rio”, explicou Marcondes.
Em 2013, após pressão do movimento em prol da construção do parque, o então prefeito Fernando Haddad, sancionou a lei que cria o Parque Augusta. Em 2015, um grupo de cerca de 300 militantes que ocupavam o terreno e faziam atividades autogestionadas para manter o parque, incluindo um festival de música e arte, foi retirado do local pela tropa de choque, atendendo a uma reintegração de posse das construtoras Setin e Cyrela, que pretendiam construir três edifícios no local.
Em agosto de 2018, foi firmado um acordo entre Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP) e as construtoras que receberam cartas de Troca de Direito de Construir (TDC), moeda imobiliárias que permite construir em outras áreas o equivalente ao que estava autorizado a construir no terreno da rua Augusta. Ainda pelo acordo, que contou com mediação do Ministério Público, as construtoras tiveram que indenizar o município em cerca de R$ 10 milhões pelo fechamento do parque e danos ambientais no terreno.
O valor pago pelas construtoras terreno foi de R$ 64,1 milhões. No entanto, elas alegam ter gasto R$ 110 milhões, incluindo IPTU custos de manutenção como segurança e limpeza, além das multas. Com o acordo firmado já no governo João Doria, em 2018, elas receberão no total, em crédito imobiliário, R$ 205 milhões.
Segundo a PMSP, ficou decidido em reunião realizada no dia 7 de janeiro último que as obras do parque serão acompanhadas pelo Centro de Arqueologia do Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura (DPH-SMC) para atender a legislação federal vigente de arqueologia.
Em janeiro deste ano, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) pediu a paralisação das obras de construção do parque, alegando a existência de vestígios de populações indígenas na área. “Não sei de onde surgiu essa alegação. Não é de nenhum grupo que defende o parque”, disse Célia Marcondes.
O Parque Augusta tem previsão de entrega em julho de 2020. Na primeira etapa do projeto estão contempladas as intervenções relativas ao restauro do Portal e Casa do Bosque. Depois, algumas árvores mortas ou que não são possíveis de recuperação, serão retiradas. Para garantir a permeabilidade do solo em 90,18%, como prevê o projeto para atender à Legislação, os passeios receberão acabamento com pisos drenantes, passeios com terra batida ou com pedriscos.
O urbanista Fabio Gonçalves é crítico em relação ao desfecho do episódio. Para ele, a luta do parque Augusta é resultado do que ele chama de efeito Nimby – abreviação da expressão em inglês “Not In My Back Yard” que significa “Não no meu jardim”.
“Todo mundo quer a feira livre no seu bairro, a delegacia, a creche, a escola, mas não quer na sua rua, na frente da sua casa. Ninguém quer uma árvore na frente de casa porque faz muita sujeita. E o quê ocorreu com o Parque Augusta foi isso: os moradores não queriam aquele conjunto de prédios grandes, tampando a visão. É um terreno caríssimo e muito valioso para a prefeitura arcar com isso. Com o dinheiro que foi gasto daria pra construir uma área 20 vezes maior em uma região mais periférica, carente de área verde e de lazer”, opinou.
Mais recentemente, uma nova disputa se desenha no bairro do Jaraguá. Um grupo de índios ocupou um terreno próximo da comunidade Terra Indígena do Jaraguá para impedir que mais árvores viessem abaixo. A construtora Tenda já havia aberto um clarão no bosque. Em protesto, o povo Guarani Mbya decidiu então realizar uma manifestação, em caráter de cerimonial fúnebre no local onde se pretende construir o condomínio Jaraguá-Carinás, com cinco torres e 396 apartamentos, para cerca de 800 moradores, a oito metros da aldeia Tekoa Ytu. Esta é única das seis aldeias da região que está na fase final do processo de demarcação da terra indígena.
Até meados de fevereiro, a PMSP suspendeu a obra temporariamente. Já o Ministério Público Federal (MPF), que recebeu uma comissão de indígenas, aguardava todas as partes envolvidas se apresentarem. A Defensoria Pública da União também está alerta colhendo provas e elementos para caso seja preciso procurar a via judiciária.
Privatização
Para manter os parques, a atual gestão alega falta de recursos e de equipes. Para atender a demanda, anunciou a concessão à iniciativa privada, até o final deste ano, quando se encerra o mandato, a administração de 11 dos 107 parques municipais. As áreas estão divididas em cinco lotes. Um deles já foi entregue que inclui o Ibirapuera mais cinco parques: Jacinto Alberto e Jardim Felicidade, em Pirituba; Tenente Brigadeiro Faria Lima, na Vila Maria; Lajeado em Guanazes; Eucaliptos, no Campo Limpo.
O Lajeado e o Tenente Brigadeiro Faria Lima foram os dois primeiros que mudaram a gestão em 20 de janeiro. O Ibirapuera e Eucaliptos serão assumidos integralmente pela concessionária a partir de julho. Segundo a coordenadora de Gestão de Parques e Biodiversidade da SVMA, os serviços dentro do parque que poderão gerar receitas para as concessionárias são alimentação, estacionamento, eventos, atendimento ao usuário, entre outros. Neste primeiro semestre haverão mais quatro lotes de parques: Trianon e Mario Covas, na Paulista; Chuvisco, na Água Espraiada; Jardim da Luz; e Chácara do Jóquei.
A iniciativa é criticada pelo urbanista Fabio Gonçalves, que lembra que em nenhum país os parques dão lucro à iniciativa privada, uma vez que não é permitida a cobrança de ingresso. Além disso, segundo ele, a conta não fecha em relação aos serviços que serão oferecidos. Será muito baixo o retorno financeiro. Para ele, concessões como, por exemplo, do Parque do Ibirapuera, que atualmente é o mais democrático, em sua visão, vão gerar receitas indiretas, como a valorização de imóveis no entorno.
"Atualmente, diversos grupos de todas as classes sociais convivem no Parque do Ibirapuera. Agora, uma gestão privada, vai querer algum retorno, e não é financeiro diretamente. É um retorno com base no marketing, como ocorre no Parque do Povo, gerido por um shopping próximo que tem interesse em estar ao lado de uma área verde. O Parque Burle Marx, que também tem uma gestão privada desde sua inauguração, fica ao lado de apartamentos de alto padrão do Panamby, não permite que ele seja aberto a todos. Nos folders de lançamento dos prédios ao redor, inclusive, estava anunciado: 'Parque Burle Marx, naturalmente seu'", comenta Gonçalves, se referindo ao fato de o Burle Marx ser de difícil acesso - não tem estacionamento, não passa linha de ônibus e não tem calçada até a entrada do parque.
"Deveríamos nos preocupar em manter os poucos parques que existem mais inclusivos e democráticos. O Ibirapuera hoje em dia reúne uma diversidade de público. A privatização não vai nesse sentido. Todas as experiências desse tipo tendem a ter uma gestão mais seletiva nas atividades permitidas e provavelmente, com isso, no perfil do público”, completa.
Arborização
Existem atualmente 652 mil árvores nas calçadas e canteiros da cidade, segundo levantamento realizado em 2015, número insuficiente, segundo Fabio Mariz. O coeficiente de área verde por habitante é de 15,94 m2/hab, maior que o recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), de 12 m². "O problema é o desequilíbrio no atendimento e o acesso a essas áreas. Onde estão esses metros quadrados de área verde, se são acessíveis. O maior parque de são Paulo é o parque da Cantareira, que não é fácil de chegar, é um dos parques menos utilizáveis da cidade", detalha. Essa configuração atual, além de não ser inclusiva, causa problemas ambientais como as chamadas ilhas de calor, que trazem desconforto térmico e, segundo estudos, ocorrência de chuvas mais fortes.
A solução é focar no plantio de árvores para “diminuir a temperatura, com mais sombras, e reter as águas das chuvas”. Além disso, ele observa que em diversas gestões foram elaborados planos para as áreas verdes da cidade. No entanto, em nenhuma delas houve a execução dos planos. "Dizer que a cidade não tem planejamento não diz muito sobre o problema. A cidade tem planos, o que falta é executá-los".
Um exemplo citado por ele acontece em cidades francesas, onde no plantio de uma espécie já tem sua data de remoção definida, bem como a destinação correta da madeira, por entender que uma árvore não pode envelhecer e morrer no espaço público urbano por demandar manutenção. "As árvores já são plantadas na idade adulta, com copa formada, e duram cerca de 30 anos, em média. Depois desse tempo, elas estão propensas a terem mais fungos, quedas de galhos, podem provocar problemas na fiação elétrica. Não é pecado cortar árvore, o pecado é não gerir adequadamente".
*Complemento da matéria "Preservação de áreas verdes na capital em risco" da edição 537 do Jornal do Engenheiro
** Leia também a entrevista com as engenheiras agrônomas da Prefeitura neste link.
Fotos: De cima para baixo Parque do Ibirapuera/Rafael Neddermeyer-Fotos Públicas; Área interna do terreno na rua Augusta, durante ocupação de movimentos pela criação do parque; Parque Trianon/Rita Casaro-Comunicação SEESP.