US$ 22 bilhões engarrafados por ano

Quando Júpiter transformou a ninfa Juventa em fonte termal, não imaginava o grande negócio que estava inaugurando. O comércio de água mineral é um dos que mais crescem no mundo atualmente. Em 2000, foram vendidos 84 bilhões de litros, segundo estimativas de Maude Barlow e Tony Clarke, autores do livro “Ouro Azul”. Ainda de acordo com eles, a brincadeira rende anualmente US$ 22 bilhões.

Só no Brasil, em 2001 foram consumidos 4,3 bilhões de litros e o setor faturou
US$ 400 milhões, conforme a Abinam (Associação Brasileira da Indústria de Água Mineral). Estão nesse ramo muitas empresas médias regionais, mas também gigantes multinacionais, como Nestlé e Coca-Cola.  Essas comercializam não só o líquido mineral, mas também a chamada água purificada adicionada de sais (veja quadro), embora a distinção muitas vezes passe despercebida pelo consumidor desatento às letras minúsculas no rótulo.

Corrida às fontes
O grande boom aconteceu a partir da segunda metade dos anos 90. De 1997 a 2001, houve expansão no mercado de 104%. No período, o consumo per capita saltou de 13,2 litros por ano para 24,9. Pelas perspectivas da Abinam, em 2003 deve se aproximar de 30 litros por ano. O principal segmento é o de garrafões de 20 litros, que domina 57% do mercado. A mágica de fazer dinheiro foi  singelamente explicada por um ex-executivo da Perrier, citado por Barlow e Clarke: “Tudo o que você tem a fazer é retirar água do chão e vendê-la mais caro que vinho, leite ou até mesmo petróleo.” 

Tal otimismo, contudo, não é compartilhado pelo presidente da Abinam, Walter Lancia, para quem o excesso de oferta vem derrubando os preços. Só a indústria nacional conta com 200 empresas, que produzem 240 marcas.

Se a proliferação de concorrentes reduz o faturamento do setor, também gera outras preocupações: o destino do recurso natural. A exploração de água mineral no Brasil obedece ao Código de Mineração e ao Código de Águas Minerais, que data de 1945 e está sendo reformulado visando a sua atualização em relação à classificação. A atividade é autorizada pelo DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), órgão do Ministério de Minas e Energia. Quem detém as concessões é obrigado a recolher a CFEM (Compensação Financeira sobre a Exploração de Recursos Minerais), que tem alíquota de 2% sobre o faturamento líquido.

Risco de escassez
Dada a relativa facilidade para se entrar no negócio, especialistas e comunidades próximas aos balneários vêm alertando para os perigos da extração excessiva. No final de 2002, os prefeitos de Lindóia, Águas de Lindóia, Serra Negra, Amparo, Socorro e Monte Alegre do Sul – que formam o circuito paulista das águas – solicitaram ao DNPM que suspendesse temporariamente a concessão de novas lavras na região. Segundo a professora do Instituto de Geociências da Unicamp, Sueli Yoshinaga Pereira, a preocupação é pertinente. “Há alguns pontos em que deveria haver critérios mais rigorosos. Em Águas de Lindóia, cuja principal atividade econômica é o turismo, há várias empresas explorando o mesmo local.” Ela lembra que a indústria da água engarrafada ampliou a extração, o que demanda atenção. “Sem dúvida, existe muito recurso, mas precisamos ficar de olho. A primeira coisa a fazer é um levantamento.” O próprio presidente da Abinam confirma o risco: “São necessários estudos para determinar quanto se pode tirar de cada fonte e é preciso respeitar o tempo de residência da água na rocha para que suas características sejam mantidas.”

A professora da Unicamp defende ainda que seja feito um gerenciamento coordenado entre a água explorada para o envase e aquela captada para abastecimento público ou de hotéis e outros estabelecimentos, o que se subordina a legislação e órgão público diferentes, no caso paulista o DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica). Da mesma forma, o uso e a ocupação do solo também afetam a vazão das fontes, tendo em vista que a maior impermeabilização reduzirá a infiltração subterrânea, que origina a água mineral. “Tudo isso já passa pelo crivo de órgãos públicos, basta que haja integração entre eles”, recomenda.

Queda-de-braço em São Lourenço

Uma disputa entre a Nestlé e o movimento “Cidadania pelas Águas”, no município de São Lourenço, em Minas Gerais, demonstra os conflitos que a explosão do comércio de água engarrafada pode causar. O pomo da discórdia é a produção da Pure Life, a partir da Fonte Primavera, no Parque das Águas. A marca pode ser obtida utilizando-se qualquer água e obedece a uma estratégia de comércio global. Aqui, nos Estados Unidos ou no Iraque tem o mesmo sabor. Em 1992, a multinacional comprou o grupo Perrier, que desde 1974 possuía a Empresa de Águas São Lourenço. Em 1996, iniciou sua saga para explorar água da Fonte Primavera, reduzindo o seu teor de ferro, considerado excessivo. Como esse tipo de tratamento é proibido pela legislação brasileira, a solicitação foi recusada pelo DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral). A saída encontrada pela empresa foi desmineralizar totalmente a água, que seria vendida com a classificação de “purificada adicionada de sais”. A autorização veio do Ministério da Saúde, em novembro de 1999, graças a uma resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), datada de julho do mesmo ano.

 

Em dezembro de 2001, o promotor de Justiça Pedro Paulo Barreiros Aina ingressou com uma ação civil pública contra a empresa, ainda em tramitação, solicitando o fim da extração da água e da produção da Pure Life, o fechamento do poço e indenização equivalente ao lucro obtido. No processo, contesta a argumentação da Nestlé de que o teor de ferro da água da Fonte Primavera impedia o consumo humano  e critica o método adotado: “Deve ser ímpar no planeta o absurdo da utilização de uma água de alta mineralização, o que só ocorre em condições especiais na natureza, para produção de água comum adicionada de sais.”

 

Membro do Cidadania pelas Águas, o administrador Cássio Mendes acusa ainda a empresa de extração excessiva, acima dos 220 milhões de litros por ano, autorizados pelo DNPM, o que teria causado o desaparecimento da água magnesiana e alteração no sabor das demais. A Nestlé, por sua vez, afirma que a fonte em questão “não secou e apresenta dificuldades desde o final da década de 40”.

 

Em face da controvérsia, a Secretaria de Minas e Metalurgia determinou que se realizasse novo estudo geológico para apurar a real situação do Parque das Águas. A expectativa da empresa, de acordo com sua assessoria de imprensa, é que se garanta a continuidade de suas atividades. Já Mendes espera que o laudo acabe com as aspirações da multinacional em São Lourenço: “A Nestlé tem essa estratégia de dominar as águas do planeta. Pois que faça isso para lá, aqui não!”

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