Denúncia
SEESP recorre à Justiça contra desmonte da Eletropaulo

Dar um basta aos múltiplos atentados ao interesse público que a distribuidora de energia paulista vem cometendo por meio da venda de seus ativos. Esse é o objetivo da ação impetrada pelo Sindicato dos Engenheiros na Justiça Federal de São Paulo, em 27 de junho último. A prática da AES Eletropaulo implica diversas irregularidades. Prejudica a prestação do serviço à população, comete uma ilegalidade ao vender aquilo que não lhe pertence e incorre em fraude contra o credor, tendo em vista que o patrimônio da concessão é a garantia da dívida que tem com o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

Assim, em sua ação, o Sindicato pede que se determine a imediata interrupção da alienação de imóveis e a suspensão da Resolução nº 20 da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), que permite às concessionárias de energia elétrica venderem patrimônio sem prévia autorização. Solicita ainda que o presidente do BNDES, Carlos Lessa, seja notificado a adotar “as medidas judiciais cabíveis, sob pena de responsabilização civil por sua omissão, através de procedimento a ser instaurado pelo Ministério Público Federal”.


Imobiliária Eletropaulo
A política de se desfazer de seu patrimônio foi adotada pela Eletropaulo desde 1998, quando foi privatizada.  Até 1999, isso era feito mediante prévia e expressa autorização da Aneel. Desde outubro daquele ano, graças à medida do órgão regulador que, por sua conta e risco, revogou a legislação vigente, a empresa está dispensada da consulta. A única exigência é que o bem em questão seja considerado “inservível” e que os recursos arrecadados sejam aplicados na concessão.

“As duas ressalvas são inócuas e afrontam a nossa inteligência”, dispara o diretor do SEESP, Carlos Augusto Ramos Kirchner.  Ele lembra que obrigar o reinvestimento do dinheiro obtido com alienações não impede que igual importância arrecadada com tarifas seja desviada desse fim. Além disso, como não está definido o que é inservível, a Eletropaulo determina a seu bel prazer o que pode ou não vender.

Com a carta branca que recebeu da Aneel, a distribuidora se desfez, desde outubro de 1999, de 22 imóveis, arrecadando aproximadamente R$ 250 milhões, conforme relatório do Ministério Público Federal. Entre os ativos que considerou sem utilidade, estão agências de atendimento ao consumidor, instalações para serviços emergenciais, as chamadas “prontidões”, e oficinas de instalação de manutenção.

A disposição da Eletropaulo de dar cabo de seu patrimônio é tal que, em 3 de outubro de 2002, firmou contrato com a  Ernst & Young Consultores Associados para avaliação e venda de 20 propriedades.

 

Serviço prejudicado
A conseqüência natural de tal desmonte foi a decadência do serviço oferecido aos 14 milhões de pessoas na sua área de concessão, que engloba 24 municípios, incluindo a Capital. Para substituir as agências de atendimento ao consumidor – reduzidas de 59 em 1998 para 20 atualmente –, criou-se a figura dos “agentes credenciados”, que somam 76. Esses são farmácias, locadoras de vídeo e outros estabelecimentos, os quais carecem de pessoal com formação específica e treinamento adequado. A ação impetrada pelo SEESP chama a atenção para a especial gravidade da desativação das prontidões: “Tais setores contavam com mais de 500 eletricistas, atuando 24 horas por dia. Hoje foram reduzidos e atendem áreas urbanas cada vez maiores com número menor de trabalhadores e equipamentos.” Quatro centros de manutenção foram subtraídos, restando apenas um, localizado no centro de São Paulo, distante mais de 50km de algumas subestações. As oficinas, em que se fabricavam peças e componentes especialmente elaborados para restabelecer o funcionamento ou condição operativa de equipamento avariado no sistema elétrico, foram fechadas e seus quadros administrativos e operacionais, incluindo técnicos e engenheiros, desligados praticamente em sua totalidade.

De modo geral, à dilapidação do patrimônio correspondeu a dispensa de milhares de profissionais especializados, cujas funções passaram a ser executadas por trabalhadores terceirizados sem treinamento devido. O antigo quadro de 10.500 funcionários foi cortado para 3.700.

 

Vende, mas pode não entregar
Quando arrematou a distribuidora pelo seu preço mínimo de US$ 1,78 bilhão, calculado pelo método do fluxo de caixa descontado – em que se levam em conta os lucros futuros –, a AES não pagou pelo valor patrimonial de seus ativos operacionais. Assim, não adquiriu as oficinas de manutenção e agências de atendimento que agora coloca à venda. Portanto, ao final da concessão, essas deverão ser devolvidas à União.

A tese é corroborada pela  Lei 8.987/95, que, em seu artigo 35, determina que “extinta a concessão, retornam ao poder concedente todos os bens reversíveis, direitos e privilégios transferidos ao concessionário conforme previsto no edital e estabelecido no contrato”. Diante desse quadro, a ação impetrada na Justiça Federal pede ainda que a Eletropaulo seja obrigada a indenizar a União pelos valores de venda indevidamente recebidos.

Se a AES jamais possuiu esses bens, atualmente tem ainda menos direitos sobre eles. Detentor de uma dívida de US$ 1,2 bi junto ao BNDES, o grupo deu como garantia dos empréstimos que tomou para comprar a Eletropaulo exatamente as ações da distribuidora. Ao vender aquilo que, na prática, já pertence ao banco público incorre em fraude contra o credor. “Uma empresa insolvente, cujo patrimônio vale um sexto daquilo que tem que pagar, não pode se desfazer de nada”, afirma Álvaro Martins, diretor do SEESP e engenheiro do setor. Segundo ele, ao BNDES, caberia não só impedir o prosseguimento das transações, mas, por meio de ação revocatória, anular os contratos efetuados.  

AES arrematou distribuidora sem investir um centavo e sem concorrência

A Eletropaulo tornou-se símbolo dos desmandos que povoam o setor elétrico desde a implantação do atual modelo, em 1995, que incluiu a desverticalização e privatização das companhias. Em 31 de dezembro de 1997, a empresa foi dividida em quatro: uma geradora e uma transmissora, as atuais Emae e EPTE, que continuam estatais, e duas distribuidoras, a Bandeirante e a Eletropaulo Metropolitana, que foram vendidas. “O problema já começou aí, na divisão da empresa, que separou a parte lucrativa para ser repassada à iniciativa privada e manteve a deficitária com o Estado”, afirma o engenheiro Auro Doyle, à época atuando na companhia.

Levada a leilão em 15 de abril de 1998, a Eletropaulo foi arrematada pela Lightgás Ltda., uma SPE (Sociedade de Propósito Específico), formada por AES Corporation, EDF (Eletricité de France), Reliant Energy e CSN (Companhia Siderúrgica Nacional). Após o leilão, foram compradas as participações da Reliant e da CSN. Depois, por uma permuta de ações, a EDF também deixou a Lightgás, que ficou sob controle total do grupo estadunidense e passou a se chamar AES Elpa S.A.

À época, a expectativa do Governo de São Paulo era fazer um ótimo negócio, mas a Eletropaulo acabou sendo vendida pelo preço mínimo de US$ 1,78 bilhão. Conforme divulgado pelo jornal Financial Times, a pechincha foi assegurada ao consórcio liderado pela AES graças a um acordo com a Enron. Como recompensa por comparecer ao leilão apenas para fazer cena, essa última ganharia um contrato para fornecimento de energia, gerada por uma termelétrica a ser implantada.

Outra vantagem da AES na transação foi não ter que tirar um centavo do bolso. Junto ao BNDES tomou US$ 888 milhões – em 2000, conseguiria comprar do banco, parceladamente, as ações preferenciais da empresa, no valor de US$ 872 milhões. Outros US$ 875 milhões vieram de um financiamento obtido pela LIREnergy Limited, uma subsidiária do grupo, nas Ilhas Cayman, junto a um sindicato de bancos.

Assim, a principal distribuidora de energia do País foi vendida a uma SPE descapitalizada e altamente endividada, hoje insolvente e colocando em risco a prestação do serviço público essencial. Para completar, o BNDES pode nunca mais ver a cor do dinheiro que emprestou, já que a transação foi feita sem outras garantias além das ações da Eletropaulo, hoje valendo 20% do que o banco tem a receber. Segundo relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) de 4 de junho, teriam sido necessárias, entre outras medidas, a inclusão no contrato de garantia solidária dos controladores da empresa vencedora do leilão e a ratificação do acordo em seus países de origem.

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