Setor Elétrico

Princípios corretos, medidas equivocadas

O tão esperado modelo para o setor elétrico, a ser implantado pelo Governo Lula, foi finalmente apresentado em 21 de julho pelo CNPE (Conselho Nacional de Política Energética). Positivamente, o desenho proposto, que deve ser efetivamente implantado em 2004, norteia-se pelos princípios da modicidade tarifária, continuidade e qualidade na prestação do serviço, justa remuneração para os investidores, de modo a incentivar a expansão e universalização do acesso à energia.

Assim, busca-se corrigir alguns dos grandes equívocos cometidos no modelo vigente, a falta de compromisso com investimentos essenciais para acompanhar o crescimento do País – que espera-se será retomado –, reajustes acima da inflação que penalizaram os consumidores e a descaracterização da energia como serviço público.

A proposta do Governo traz mudanças relevantes. A contratação de energia destinada aos consumidores cativos – cidadãos ou empresas que utilizam a rede pública de distribuição  – será feita num pool com tarifas reguladas. Essas transações serão efetuadas pelo Acee (Administrador dos Contratos de Energia Elétrica), órgão a ser criado. Assim, as comercializadoras ficam fora do serviço público e só podem atuar entre PIEs (Produtores Independentes de Energia) e consumidores livres. O MAE (Mercado Atacadista de Energia) terá suas funções incorporadas pelo Acee.

O ganho das geradoras passa a ser determinado por uma receita anual permitida, paga mensalmente. Elas não arcam com custo de uso do bem público ao poder concedente e deixam de correr risco hidrológico.


Planejamento
Outro ponto importante é a volta do planejamento “determinativo”, em substituição ao meramente indicativo,  que deixava ao mercado a responsabilidade pela expansão do sistema. Estão previstos planos de longo prazo (20 anos), médio (dez anos) e o monitoramento de condições de atendimento (cinco anos). A execução das duas primeiras fases será centralizada na Fepe (Fundação de Estudos e Planejamento Energéticos), sob coordenação do Ministério de Minas e Energia. A terceira será de responsabilidade direta do MME, com a participação da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), da Fepe, do Acee, além dos órgãos responsáveis pela operação do sistema.


Tropeços
Se acerta nos objetivos, o Governo erra na escolha dos meios para chegar até eles. Essa é a avaliação de Murilo Celso de Campos Pinheiro e Carlos Augusto Ramos Kirchner, ambos técnicos do setor e respectivamente presidente e diretor do SEESP. Para eles, a fórmula traz em si um erro estratégico ao repartir a gestão do setor elétrico entre inúmeras entidades. “Muito mais razoável seria agrupar todas as atividades num órgão público já constituído. Dessa forma, planejamento e contratação multilateral poderiam ser incorporados às funções da Eletrobrás, assim como o próprio ONS (Operador Nacional do Sistema)”, defende Pinheiro. Para Kirchner, é preocupante que a contratação de energia fique a cargo de um órgão de caráter privado, como será o Acee. “Essa função é precípua do Estado e é de uma ingenuidade extrema delegar a agentes privados a decisão sobre quais contratos serão integrados ao pool e por que preços.”  

Outro defeito da criação desses novos entes é como serão mantidos. O Acee será custeado pelas distribuidoras, que repassarão o gasto às tarifas. Para a Fepe, está previsto novo encargo incluído nas contas de energia elétrica e parcela da Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico). “Além de não buscar denonerar os consumidores dos inúmeros penduricalhos que foram se somando às suas contas, o novo modelo pretende criar outros”, critica Kirchner. “Os chamados custos não-gerenciáveis acabaram se tornando o desaguadouro de gastos adicionais, ineficiências diversas, que, após jogos de empurra, vão inflar aumentos tarifários”, conclui.

Para Pinheiro, é grave o fato de o novo modelo ser omisso em relação a dois problemas que atingem a área de transmissão. “Empresas estatais como a CTEEP (Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista) têm remuneração muito baixa, ficando com cerca de um quinto do propiciado a novas instalações, feitas pela iniciativa privada.” E os atuais contratos de concessão não prevêem qualquer compromisso com a expansão do sistema.


Mais privatização?
Ponto que causa estranheza no novo modelo, na avaliação de Kirchner, é estar prevista, quando do vencimento do prazo de concessão de qualquer aproveitamento hidrelétrico, nova licitação, pelo período de 15 anos, com preço de balizamento estabelecido de forma a remunerar apenas o custo de operação e manutenção, além de eventuais investimentos em repotenciação e modernização aprovados pela Aneel. Também, como forma de capitalização das empresas de geração e transmissão, pode-se considerar a venda de ações de estatais e emissão de debêntures, com aplicação de recursos de fundos de pensão privados e até mesmo do FGTS e do FAT. Para o engenheiro, tais medidas,  “que visam a privatização”, são descabidas e incoerentes com as próprias concepções do modelo que prevêem o uso da energia “velha”, não só para reduzir o preço do mix tarifário, mas como forma de gerar recursos à expansão do setor. “O capital privado deve ser atraído para se implantar novos empreendimentos e não para usufruir de receitas do que já foi feito com dinheiro público.”

Na opinião de Pinheiro, é fundamental que o Governo se abra à discussão da proposta apresentada para que possam ser aparadas as arestas. “O setor elétrico é essencial e estratégico ao nosso bem-estar e desenvolvimento. Após amargar oito anos de um modelo desastroso, não podemos nos dar ao luxo de viver outro engano.”

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