Opinião

Divulgação científica, engenho e arte

Glória Kreinz*

Será fácil ser engenheiro em uma sociedade como a nossa, sujeita a tempestades inesperadas como aquelas que agitaram os mares trilhados pelos primeiros navegadores que chegaram à América? Camões,  em “Os Lusíadas”, gostava de usar a expressão “arte e engenho” para dar significado metafórico à beleza e à técnica empregadas na realização de algo extraordinário, imaginado e executado pelo ser humano.

Referia-se ao povo português, em particular ao grupo pioneiro de pessoas que se dedicaram a desenvolver a navegação. Essa expressão poética era a tradução de um esforço sem precedente desenvolvido pelos “pesquisadores” da “engenharia naval” da Escola de Sagres. Graças a esse empenho, conseguiram dominar os mares e contribuíram para as descobertas de novos territórios nos séculos XV e XVI. Tal episódio histórico ilustra o significado, em termos de divulgação científica, da relação conhecimento tecnológico com a engenharia. Considera-se a engenharia como o emprego da tecnologia e do conhecimento científico na prática direta em benefício do homem. Naquela época, o chamado mundo civilizado vivia confinado dentro da Europa. Havia a necessidade urgente de expandir aquele mundo, até por uma questão de sobrevivência. O conhecimento adquirido na construção naval e na elaboração de cartas de navegação circulou com a rapidez dos barcos que navegavam o Mediterrâneo. Um desses resultados aportou aqui em 22 de abril de 1500.

A divulgação científica tem dado pouco espaço aos esforços da engenharia, no momento atual, e muitas vezes também se esquece do passado. Hoje, o homem vive cercado de tecnologias. A notícia que se recebe de manhã por qualquer meio imaginável é resultado disso, considerando-se veículos (rádio, TV, internet, jornais etc.) como um vasto complexo tecnológico. A captação, a elaboração, a transmissão foram amparadas por muitos engenheiros eletrônicos, no sentido de agilizar os sistemas midiáticos. Estariam os divulgadores científicos discutindo que o alimento que se consome desde o simples café da manhã envolve tecnologia e que a produção do grão de café, do leite ou do trigo (pão) pressupõem sempre o trabalho de um engenheiro agrícola, um engenheiro químico ou mesmo a atuação da engenharia genética engendrando novas tecnologias? No decorrer do dia, já é comum o desfile de tecnologias das quais a sociedade depende para sua sobrevivência, como o sistema de transportes, veículos, energia, funcionando de forma sincronizada. Será que se divulga adequadamente que os engenheiros são os responsáveis pela manutenção de diversos setores do sistema social? A exclusão social não é exatamente estar fora desses sistemas? Vivemos no império da tecnocracia. As novas tecnologias conquistaram um espaço inquestionável e vieram para ficar. Diante dessa evidência, como fica a liberdade do ser humano, se considerarmos que liberdade é escolha? É nessa brecha que a divulgação científica volta-se para o ser humano e assume a sua importância, mostrando o papel dos homens que fazem o sistema e as máquinas funcionarem. O papel da boa divulgação científica é discutir a ciência e a tecnologia para que os indivíduos possam realizar as suas melhores escolhas, é dar poder de decisão à sociedade e, acima de tudo, dar poder para o ser humano pensar sua própria condição, escolhendo o melhor caminho, o mais responsável e o mais ético possível. Para um engenheiro, essa liberdade de escolha é um mar a navegar, um desafio constante e perigoso, em busca de novos horizontes, para melhorar o bem-estar social. Há que se humanizar a tecnologia fazendo da divulgação científica um instrumento a mais para os engenheiros enfrentarem os desafios da profissão com muito “engenho e arte”, como até agora tem acontecido em nossa sociedade, apesar dos momentos precários, vendavais inevitáveis que todo sistema social enfrenta, com pouca ou muita criatividade.

 

* Doutora em ciência da comunicação pela ECA/USP, coordenadora de pesquisa do Núcleo José Reis de Divulgação Científica da instituição.

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