A afirmação do educador Darcy Ribeiro de que a crise educacional do país não é uma crise, mas um projeto da classe dominante brasileira se revela perigosamente atual quando analisamos a recente intervenção do governo federal no âmbito do ensino médio. Ela caminha no sentido de abranger e possivelmente desfigurar o Enem, o Exame Nacional de Ensino Médio que, mais do que um exame de desempenho, é, antes de tudo, parte de uma política de democratização do acesso ao ensino superior. Por isso, precisamos defendê-lo!
Três argumentos são essenciais para defender o Enem.
Até o início de 2016 o ENEM configurou-se como política de Estado, ultrapassando a condição de prática governamental. Ou seja, tornou-se uma política com a qual o Estado intervém na dinâmica de avaliação não somente para produzir “rankings”, mas também para aglutinar esforços institucionais para que, com esse dispositivo de avaliação, o país disponha também de um instrumento de diagnóstico e planejamento educacional.
A França desenvolveu um exame nacional que não tem sofrido os efeitos da confusão entre Estado e governo. Portanto, seu processo de avaliação diz respeito ao perfil republicano da educação pública que nenhum setor do espectro político eleitoral do país ousa colocar em dúvida.
O segundo argumento que deve ser evocado para defender o Enem diz respeito à dinâmica de avaliação em si, ou seja, contempla o conceito de avaliação que esse exame apresenta ao país e ao universo da educação escolar.
Na história da educação brasileira os recursos de avaliação moveram-se nas sombras excludentes da classificação, da aferição quantitativa e da produção de hierarquias baseadas na mensuração de desempenho cujos resultados, mais do que apurar déficits, na realidade os criavam e os instituíam, sempre com base na precariedade e parcialidade dos instrumentos utilizados para avaliar e aferir.
O Enem, sem se esquivar dos riscos que as aferições oferecem, tem conseguido fazer do processo de avaliação uma dinâmica analítica interessada na perspectiva relacional com a qual cada participante é incentivado a refletir com senso crítico, com percepção interdisciplinar e com linguagens que rompem com a tradição das grandes provas que se consagraram como máquinas de verificação de informações acumuladas.
Mesmo sendo um processo que demanda contínuo aperfeiçoamento, o Enem tornou-se exemplar do quanto a avaliação também é parte do ato pedagógico, uma vez que até sua dinâmica de correção não é uniforme nem homogeneizante, valendo-se, por exemplo, de recursos como a teoria da resposta ao item e outras estratégias que permitem vislumbrar o intérprete, o analista, o conector, o redator por trás do número que esconde um jovem participando de um exame.
No que diz respeito à gestão e governança do planejamento educacional o Enem possibilita diagnósticos comparativos que evidenciam, na complexa malha de conteúdos que a vida escolar maneja, os pontos que demandam reiteração e abertura a novas estratégias, ao mesmo tempo em que possibilita refletir sobre a escola em seu lugar e com os seus.
É nesse aspecto que emerge o terceiro bom motivo para defender o Enem.
Em suas sucessivas edições esse exame nacional tem proporcionado à sociedade perceber que os alunos com capital econômico e capital social mais expressivos têm acesso às chamadas melhores escolas. Por sua vez, essas “melhores escolas” espelham a renda familiar das famílias desses estudantes.
O ENEM é um instrumento que, diferentemente da história dos processos de avaliação, permite não apenas constatar diferenças de qualidade com base nas supostas diferenças de desempenho, ou seja, não se abre ao ilusório e perverso modo de pensar que simplesmente se vale de números para “constatar” que entre os mais abastados estão “os melhores” e entre os menos abastados estão “os piores”.
O ENEM sinaliza um modo de conceber o ensino médio que possa articular gestores comprometidos com projetos pedagógicos menos “competitivos” e mais formativos e analíticos; menos afeitos ao elogio do sucesso e mais abertos à construção de estratégias para a superação de desvantagens.
Entre essas desvantagens pessoais e sociais, porém, há um dado que independe do ENEM e que diz respeito à importância de políticas de permanência no bojo das políticas sociais, que devem sempre atenção às assimetrias da sociedade brasileira.
O ENEM não somente indica aprovados e reprovados. Na realidade, mostra-se necessário para que a educação seja pensada no “lugar” em que ela mais densamente se evidencia, fundamentalmente no tecido social.
Recebemos neste momento notícias de que mais da metade das escolas participantes do Enem tiveram piora em suas notas.
Dante Moreira Leite marcou a história da educação brasileira, na década de 1950, quando denunciou que a maioria das avaliações exercia papel relevante na exclusão de muitos alunos, tornando-se ela mesma a avaliação um dado de assimetria econômica.
Pois o Enem, diferentemente de outras avaliações, pode ajudar a compreender essa queda no desempenho justamente porque não quer com seus números obscurecer a percepção de que a distância entre as escolas não é de natureza pedagógica, mas sim de fundo econômico e social.
* Gilberto Giusepone, diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber