Renato Vargas*
A estagnação econômica do Brasil formou um horizonte sem margem para negociar um futuro melhor para a Engenharia do Brasil. Estes tempos difíceis estão manifestos na ausência de oportunidades, desemprego, evasão dos melhores quadros para outras áreas devido aos baixos salários e a queda de prestígio na hierarquia das empresas. Os motivos para esta derrocada ainda são nebulosos, especialmente porque ocorre diante da complexidade da globalização e o surgimento das novas tecnologias da Revolução 4.0, mas estendem-se desde a profunda desindustrialização do Brasil, passa pela falta de investimentos em infraestrutura e chega à proliferação de escolas de engenharia de nível questionável. Todos estes fatos ainda aguardam discussões nas entidades de classe para fornecer esclarecimentos à categoria por meio de manifestações firmes e distantes das atuais reações complacentes e inconsequentes.
Diante da crise, nos últimos anos surgiram algumas possibilidades para a redenção da categoria, e uma alternativa ganhou evidência: resgatar um mercado de trabalho por meio da transformação do engenheiro em empreendedor. Este tema foi privilegiado na agenda das federações de indústria, entidades de classe, associações, faculdades privadas e mesmo em algumas universidades tradicionais. Assim, os engenheiros são assediados por mantras sobre competividade, inovação e empreendedorismo disseminados em congressos, seminários e lives nas redes sociais. O resultado imediato desta retórica de criação do engenheiro-empreendedor foi a neutralização de uma eventual reação da categoria para resgatar oportunidades de trabalho. Por outro lado, este movimento originou um sistema meritocrático que contempla o “engenheiro moderno e atento às necessidades de mercado na condição de empreendedor”, e não mais como um trabalhador à disposição das atividades técnicas demandadas pelas empresas. Portanto, estamos saindo da condição de engenheiros desempregados para a de profissionais “capazes/incapazes de se reinventar como empreendedores”, e observamos inertes o fator risco multiplicar-se no desempenho da profissão.
São inegáveis os avanços da onda de empreendedorismo nas últimas décadas, e a chamada revolução 4.0 consolidou um espaço para a disseminação desta tendência tecnológica protagonizada pela Inteligência artificial (AI), internet das Coisas (IoT) e o Big Data, articuladas no contexto de criação de poderosos polos tecnológicos pelo mundo. No Brasil, esta tendência conquistou um espaço importante para a discussão de tecnologia - assunto historicamente marginal na sociedade brasileira – entre engenheiros, economistas e na sociedade em geral.
Mas os números indicam que a despeito deste encantamento tupiniquim com o tema, algo vai mal nesta onda de empreendedorismo e inovação no Brasil. Afinal, se este é o caminho do sucesso econômico, por que o Brasil permanece com baixos índices de inovação e amarga uma 62 ª posição no Índice Global de Inovação (IGI - 2020) entre 131 países? Por que ocupa a 34° posição entre países com mais registros de patentes? Por que apenas 25 % das empresas criadas em 2008 sobreviveram até 2018 (IBGE)? Por que a complexidade produtiva, um indicador da sofisticação produtiva por meio de desenvolvimentos tecnológicos apresenta o Brasil em queda livre e refém de minério, petróleo e soja, enquanto os tigres asiáticos avançam exponencialmente? Basta lembrar que na década de 60 a renda per capita da Coreia do Sul, um dos expoentes da economia baseada em inovações, era um terço da brasileira e atualmente é 3,5 vezes maior. O Vietnã, devastado pela guerra há 40 anos, não apenas suplantou o Brasil em exportações nos últimos anos, mas o fez por meio de forte participação de produtos tecnológicos. Portanto, os movimentos de disseminação do empreendedorismo não são acompanhados de resultados na economia nacional e há a necessidade de aprofundar as discussões para entender porque a retórica não se incorpora à realidade.
No contexto mais amplo, a economia mundial é controlada pelo poder financeiro, traduzido em poder político na compra de influências que cria barreiras para a livre concorrência (Stiglitz, 2019) e inovação. Este componente político e econômico que impede o desenvolvimento do livre mercado é potencializado em um país periférico, historicamente refém dos poderes das multinacionais e à deriva no processo de desenvolvimento em função da ausência de planejamento do estado.
Mas para elucidar alguns dos obstáculos para a construção de um ecossistema de empreendedorismo no Brasil em meio às contradições que constroem a sua história, é interessante resgatar algumas ideias de Joseph Schumpeter (1883-1950), o economista e cientista político austríaco responsável pela criação das bases teóricas do empreendedorismo há quase cem anos.
Schumpeter introduziu os conceitos de inovação e da constante reinvenção baseada na quebra de paradigmas – a consagrada ideia de destruição criativa (Schumpeter;1942). Ele fundamentou a sua teoria da inovação e empreendedorismo sobre o conhecimento e jamais se afastou da necessidade de estabelecer estruturas permeáveis ao fluxo deste conhecimento para a constituição de uma empresa. Schumpeter definiu o empreendedor como um agente versátil, com habilidades técnicas para produzir e reunir recursos financeiros, organizando as operações internas e as vendas. Mais tarde, Peter Drucker (1970) associou ao empreendedorismo a noção de risco e consolidou a base teórica para Nelson (1993) conceber a ideia de Sistema de Inovação (SI). O SI é uma iniciativa governamental que congrega empresas, governos e universidades por meio de políticas de indução de tecnologias prioritárias com financiamento público e privado, benefícios fiscais, e atividades de fomento para criar, importar, modificar e difundir novas tecnologias (Freeman, 1995).
Estas ideias foram cristalizadas no Vale do Silício (EUA), um polo tecnológico amparado pelo financiamento público e composto por universidades de alto nível como Stanford e empresas de base tecnológica. Este sucesso inspirou a criação de outros polos, entre os quais destaca-se o da cidade de Shenzen, na China, que se tornou a nova referência para uma economia baseada no conhecimento e inovação. Mas ainda podem ser citados Tsukuba no Japão, que foi planejado como Science City congregando a Universidade de mesmo nome e centenas de institutos de pesquisa e laboratórios de P&D de empresas; Bangalore, na Índia, e sua ascensão no cenário da tecnologia de informação por meio de empresas como a Wipro de Azim Premji; Zhongguancun, localizada na região metropolitana de Pequim, caracteriza-se por ligações com grandes corporações multinacionais como Google, Intel, Motorola, Sony, Microsoft e outras. A sua fonte intelectual está na Universidade de Pequim, Universidade de Tsinghua e – sua grande diferencial – a Academia Chinesa de Ciências.
Todos estes SIs comprovam a necessidade de um estado forte para criar ecossistemas para o fomentar áreas prioritárias e a mobilizar de recursos para a difusão do conhecimento e da inovação em todos os setores da economia.
O Brasil possui boas universidades públicas em nível de ensino e pesquisa, o que é comprovado pelo número de publicações internacionais e formação de pessoas em nível de graduação o pós-graduação. Por outro lado, se a indústria ainda convive com uma cultura imersa no prático-imediatismo, pouco permeável à pesquisa e desenvolvimento - e enfrenta uma forte retração nos últimos 40 anos - ainda mantém um parque industrial com demandas razoáveis e busca os caminhos para consolidar as novas tecnologias da Revolução 4.0. Portanto, a realidade nacional apresenta os atores necessários para o processo de inovação e empreendedorismo, exceto pela ausência de um governo federal distante de seu papel de organizador e, pelo contrário, no momento atual se empenha na diminuição do Estado, na expectativa de que a inciativa privada assuma esta função. Ele desconhece que as empresas privadas não são concebidas para organizar políticas públicas para fomentar setores estratégicos de um país e jamais exerceram o protagonismo na construção de um SI, em lugar ou tempo algum. Entre os motivos impeditivos para o protagonismo das empresas privadas na organização de novos empreendimentos está o risco. Qualquer empreendimento possui muitas incertezas no início e as empresas privadas não estão dispostas a assumir os riscos e preferem aguardar iniciativas governamentais (Mazzucato, 2014). Um belo exemplo aconteceu no Brasil no início dos anos 2000. Havia fortes indícios de petróleo na camada do pré-sal e a Shell, na época operadora na exploração de novos campos, estava ciente destas informações, mas também dos riscos envolvidos, e resolveu não realizar os investimentos. A Petrobras tomou este risco e fez história.
Os países desenvolvidos e os tigres asiáticos são produtos dessa sociedade tecnológica concebida por SIs com base nos recursos públicos. Na China existem mais de 30 bancos de desenvolvimento para subsidiar esta estrutura. Enquanto isto, o atual governo federal desmontou o BNDES nos últimos anos.
No Brasil é comum a referência aos casos de sucesso de polos tecnológicos, mas sem a restituição deste contexto, onde o SI exerce o protagonismo. Este é um erro capital porque esta omissão inviabiliza a implantação de um ecossistema para criação e gestão de tecnologia e constrói o abismo cada vez maior entre o Brasil e os países de forte investimento em tecnologia.
Embora o governo federal atual esteja na contramão deste processo, algumas iniciativas isoladas persistem, como os parques tecnológicos que possuem ambientes para geração de novos negócios e algumas linhas de financiamento público para criação de empresas. Os programas de financiamento de empresas promovidas por fundações de pesquisa, em especial a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), por meio do projeto Pipe (Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas) e a Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial), são bastante interessantes, embora insuficientes para atender as demandas de mercado. A Fapesp persiste como a referência nacional para a dotação de recursos para pequenos e médios empresários, mas o Embrapii está distante da realidade de um engenheiro-empreendedor.
Recentemente, foi veiculada uma apresentação do Embrapii com 2 casos de sucesso: um liderado pela Bosh e outro pela Fiat Chrisler, empresas bilionárias com lucros de R$ 30 bilhões e 20 bilhões (2019), respectivamente. Este exemplo expõe como os recursos para inovação permanecem próximos das grandes corporações e distantes de um engenheiro-empreendedor.
Há outros fundos formados por consórcios de entidades públicas e privadas para financiamento de novos empreendimentos, mas é possível perceber nos eventos de “pitch” organizados pelos “anjos tupiniquins” a preferência pelo aporte de recursos em empresas consolidadas, com um risco mínimo e amplas garantias para o investidor sair do negócio. Portanto, também estão longe das mãos dos potenciais engenheiros-empreendedores. Um aspecto essencial neste processo de busca de recursos para alavancar novos negócios é entender que os investidores privados, em geral, orientam suas decisões para obtenção de um retorno financeiro seguro e imediato e entram em conflito com o processo de inovação, naturalmente sujeito aos avanços e retrocessos de qualquer desenvolvimento tecnológico.
Portanto, ao nosso colega engenheiro bombardeado diariamente pelas palavras de inovação, competitividade e empreendedorismo e que se aproxima desta imagem do engenheiro-empreendedor é prudente informar que o eventual insucesso nos empreendimentos não é apenas uma questão de competência, mas devido à ausência de condições para criação e manutenção de empresas. Aquela imagem estereotipada do jovem maluco e genial como Steve Jobs, imerso em riscos e soluções criativas no fundo de uma garagem americana é uma lenda, porque ele foi privilegiado pelos desenvolvimentos tecnológicos realizados com financiamento público e, mesmo nos momentos de dificuldades encontrou o abrigo em vários incentivos fiscais e financeiros do estado.
Por fim, é necessário deixar registrada a associação inequívoca entre o atual movimento de empreendedorismo à fragilização dos sindicatos e ao sequestro dos direitos trabalhistas e sociais previstos na agenda neoliberal, que procura tratar sintomas da exaustão do sistema capitalismo do mundo ocidental por meio de corte de gastos relativos ao estado de bem-estar social (Streek, 2018).
Esta articulação deu origem a conhecida economia uberizada e estabeleceu um novo sistema meritocrático onde aplicativos de taxi ou de entrega de alimento são referências de sucesso de empreendedorismo. O que deixa a seguinte questão: se os empreendimentos que jogam nas ruas milhares de jovens sem qualquer tipo regulamentação de direitos trabalhistas e segurança são casos de sucesso, chegou a hora de pararmos para entendermos as severas restrições impostas ao conceito de desenvolvimento no momento atual.
Bibliografia
- • SCHUMPETER, J. Capitalismo, Socialismo e Democracia (1942).
- • NELSON, R. R. National Innovation Systems: a comparative analysis. New York, Oxford University Press,
1993.
- • FREEMAN, C. The ‘National System of Innovation’ in historical perspective. Cambridge Journal of
Economics, Volume 19, Issue 1, February 1995, Pages 5–24.
- • MAZZUCATO, M. O Estado Empreendedor: Desmascarando o Mito do Setor Público x Setor Privado. São
Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.
- • STREEK, W. O Tempo Comprado – A Crise Adiada do Capitalismo, São Paulo, Boitempo, 2018.
- • STIGLITZ, J. Povo, Poder e Lucro - Capitalismo Progressista Para uma Era de Descontentamento. São
Paulo, Record, 2020
*Engenheiro mecânico com mestrado e doutorado em Engenharia Mecânica pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP); diretor técnico-administrativo do Núcleo de Consultoria em Engenharia e Pesquisas em Tecnologia Ltda (NEP); coordenador da Relief, plataforma EAD desenvolvida para capacitação de engenheiros na área de análise estrutural por elementos finitos.