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29/11/2022

O mundo mudou, até quando vamos insistir em não mudar?

*Jurandir Fernandes

 

O Conselho Assessor de Transportes e Mobilidade do Conselho Tecnológico do SEESP tem acompanhado e debatido as mudanças tecnológicas ocorridas nos últimos anos, principalmente aquelas que impactaram os modos e os motivos dos deslocamentos em nossas cidades.

 

Jurandir Fernandes, coordenador do Conselho Assessor de Transportes e Mobilidade Urbana do SEESP. Foto: Beatriz Arruda

 

Por que os passageiros urbanos estão diminuindo?

 

Não são poucos os que procuram viver mais próximo de onde trabalham ou estudam. Procuram-se locais com menores distâncias a percorrer em viagens pendulares. Há um ganho de consciência de que o tempo perdido nos deslocamentos deve ser evitado.

 

Cresce a adesão ao comércio eletrônico, ao delivery, ao cinema em casa (streaming) e ao ensino a distância. As idas a uma agência bancária e ao correio pertencem ao passado. O teleatendimento nas consultas médicas e psicológicas começa a ser praticado. A digitalização dos serviços públicos, em muitos casos, descarta a necessidade presencial do cidadão. Os cartórios se digitalizam e eliminam serviços em seus balcões.

 

Nas cidades, os espaços públicos estão se transformando. O uso do solo urbano de forma mista, moradia-trabalho-escola-lazer, encurta distâncias. Subcentros urbanos se fortalecem com pequenos serviços e comércio se espalhando pela periferia, gerando renda e emprego perto das moradias. Grandes marcas de supermercados criam lojas de conveniência e as espalham pelos bairros.

 

Na pandemia, os lockdowns mostraram que é viável eliminar, em grande medida, os tempos perdidos nas viagens de ida e volta ao trabalho. Seja de casa ou de qualquer lugar, a proposta do trabalho remoto passou a ser considerada. Reuniões de trabalho, mesas-redondas, seminários, audiências públicas e encontros de grupos online viraram rotina. Os aplicativos gerenciadores destes encontros online têm se aperfeiçoado a ponto de torná-los, além de econômicos, mais eficientes do que os presenciais.

 

As mudanças globais, a transição energética e a eletrificação dos veículos

 

Na maioria dos países observa-se que a urbanização continua crescendo; aumenta a proporção de idosos, assim como as desigualdades sociais e econômicas; é crescente a preocupação com questões sanitárias e ambientais; e o impacto dos desastres climáticos cresce ao atingir maiores aglomerações humanas do que no passado.

 

As mudanças climáticas entram na pauta dos desafios mundiais. A transição energética torna imperativa a busca de energias renováveis – baixo carbono, com geração distribuída, evitando o ônus da transmissão a grandes distâncias. A armazenagem dessas energias ganha espaço com a evolução das baterias. O futuro nos promete mais com o avanço do uso do hidrogênio como fonte e armazenagem de eletricidade.

 

No transporte de pessoas e cargas, a eletrificação dá passos irreversíveis. Às questões climáticas soma-se a obsolescência dos motores a combustão, superados, em eficiência e praticidade, pelos motores elétricos. (Em 27 de novembro de 2022, os Estados-membros da União Europeia fecharam um acordo histórico: o fim da fabricação de motores a combustão em 2035).

 

O Brasil está bem posicionado nessa questão. Além de ser dono de uma matriz energética ímpar no cenário mundial, possui plantas industriais importantes, centros de pesquisa, escolas técnicas e universidades prontas a dar sustentação à eletrificação veicular. Temos uma das melhores indústrias de motores elétricos do mundo e encarroçadoras de ônibus inigualáveis. Nada justifica ficarmos indefinidamente produzindo sucatas tecnológicas em função de uma política de amortização de ativos de montadoras automobilísticas, a exemplo do que ocorreu com os 56 anos de produção local da perua Kombi.

 

Os impactos das novas tecnologias e dos novos negócios na mobilidade

 

Durante décadas, os táxis viveram à sombra de regulamentações que lhes garantiam o mercado do transporte público individual. O surgimento do aplicativo Uber desmontou em meses o que parecia imutável. Um estudo da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) apontou que em 2021 havia 253 aplicativos desse tipo no País, operando em escala nacional ou em nichos de mercado. Além do Uber, dentre eles, 99, Cabify, inDriver, Vá de Táxi, Eu Vô e Lady Driver. E ainda os de carona, como o BlaBlaCar, que opera em 2.700 cidades brasileiras, seu segundo maior mercado no mundo.

 

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

 

Esses são os casos regulares. Há também sistemas sem registro oficial operando em comunidades não atendidas pelos aplicativos clássicos. Através de um celular, uma “central” recebe o pedido, via WhatsApp, de um “táxi” para um determinado destino. A origem da viagem é na própria “central”, que verifica através de um aplicativo de rotas (GoogleMaps, Waze) qual a distância ao destino solicitado pelo cliente. Estima-se o preço por uma tabela quilômetro-custo ou consultando um aplicativo do Uber ou 99. O preço é aprovado pelo par cliente-táxi. O cliente emite um PIX à “central”, e o carro é chamado. A “central” fica com uma porcentagem pelo serviço prestado. Desconhece-se o número de “centrais” desse tipo.

 

Numa estimativa conservadora, os aplicativos descritos transportam atualmente entre 100 e 120 milhões de passageiros/ano no Brasil. Importa observar que não há limite para a criação de novos negócios com o avanço dos algoritmos de rotas e de novas formas digitais de pagamento.

 

O fim das salas de cinema? O que isso tem a ver com os modos tradicionais de mobilidade urbana?

 

Nos últimos 100 anos as salas de cinema tudo fizeram para agradar seus clientes. A qualidade aumentou sem cessar, ao lado de programas de incentivos, gratuidades e fidelização. Do surgimento da televisão à onda das videolocadoras, as batalhas pela sobrevivência não foram pequenas. Competir com o streaming parece ser o combate final. As locadoras já foram derrotadas. Restam as salas de cinema.

 

O streaming oferece inúmeras possibilidades para assistir a filmes, séries, reality shows e documentários. Além do horário e dos intervalos, podemos escolher o idioma da legenda ou da dublagem. Podemos retroceder, avançar, pausar e apertar o play sempre que quisermos. Podemos escolher um diretor ou atores, algum período, tema ou estilo a nosso critério. Podemos escolher a mídia para ver o filme desde o smartphone até a smartTV, passando pelo notebook ou pelo tablet. Podemos ver online ou baixá-lo para ver durante uma viagem. Por fim, o custo por filme assistido, por toda a família e amigos, é muito menor do que o dos formatos anteriores.

 

Fica evidente que a maior flexibilidade para escolher o horário, o tempo de espera, os tipos de produto, se compartilhados ou não, o conforto e a segurança do local de acesso e o menor custo por pessoa são alguns dos atributos que se buscam também na mobilidade urbana.

 

Ao não encontrar esses atributos nas tradicionais formas de transporte público, fica óbvio entender porque estamos perdendo milhões de passageiros para os serviços que trazem em seu DNA a tão desejada flexibilidade com confiabilidade, conforto e baixo custo amparados nas novas tecnologias.

 

De conjuntural a estrutural, o diagnóstico é conhecido

 

É mais que óbvio que no curto prazo é necessário equacionar o problema financeiro das operadoras. No entanto, não podemos perder de vista que esse problema de caixa (financeiro) deixou de ser apenas conjuntural. Ele é também estrutural. O subsídio e o pagamento pelo serviço são urgentes e necessários, porém não serão suficientes se não nos adaptarmos aos novos tempos.

 

A mobilidade tem que envolver todos os meios e modos. Integrados e conectados. Das calçadas às vias, principalmente as exclusivas para ônibus e bicicletas. A informação interativa no celular ou nos abrigos. O pagamento inteligente, como nos mostra a Mobilidade como um Serviço (MaaS).

 

A mobilidade tem que ser servida com eficiência. De nada adianta um ônibus, mesmo gratuito, dentro de um trânsito parado. De nada adianta colocar bilhões de reais num sistema preso a concessões ultrapassadas. É preciso investir, muito e continuamente, em infraestrutura de verdade, e não apenas em latas de tinta para pintar faixas exclusivas. É preciso continuar investindo em TI, mas ao mesmo tempo ter coragem de mudar. É deprimente ver um cobrador dentro de um ônibus em tempos de QR-Code, cartão inteligente e PIX. É deprimente ver um concessionário ter seus ônibus presos ao implantar um novo serviço em suas próprias linhas.

 

Mudar não significa apenas fazer novas Leis e Propostas de Emenda à Constituição (PECs) ressaltando o papel social dos transportes públicos. Ninguém tem dúvida sobre isso. Elas, por si só, abrilhantam discursos, mas não geram recursos nem trazem nossos passageiros de volta.

 

*Jurandir Fernandes é coordenador do Conselho Assessor de Transportes e Mobilidade do Conselho Tecnológico do SEESP

 

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