Choveu petróleo no Sítio do Pica-Pau amarelo. E, sobre o poço, perfurado graças aos artifícios de quatro “Faz-de-conta”, foi inaugurada a placa com os dizeres: “Salve! Salve! Salve! Deste abençoado poço – Caraminguá nº 1, a 9 de agosto de 1938 saiu, num jato de petróleo, a independência econômica do Brasil”. Esse era o desejo de Monteiro Lobato que, sem poder lançar mão da fantasia, como faziam seus personagens, recorreu a outro poder: o de escrever livros e cartas e mais cartas e livros que influenciassem pessoas, antecipando, assim, o que uma tese de doutorado veio a concluir quase um século depois: que literatura também é poder.
Foi entre os anos de 1934 e 1937 que foram estreitadas as relações entre o escritor e o engenheiro do petróleo Karl Werner Frankie, suíço imigrado em 1920, que no Brasil mudou de nome, passando a ser “Charley Frankie” – também chamado de Charles pelos amigos. Nas 147 cartas que chegaram às mãos da pesquisadora Kátia Chiaradia, ele e Lobato falam de petróleo, poder e literatura. Professora e leitora das obras do escritor, apaixonada por O Poço do Visconde, ela sempre citava Lobato em suas aulas sem imaginar que o neto de Frankie ocupava uma das carteiras.
Foto: Reprodução site da Unicamp
Chiaradia: “Lobato dedicava-se visceralmente aos ‘bastidores do petróleo’, por meio de intensa troca
de cartas, buscando os mais diversos arranjos políticos e comerciais.”
“Professora, vou trazer para você umas cartas que temos em casa, que o meu avô trocava com Monteiro Lobato”. O impacto imediato do presente do aluno foram duas noites sem dormir. Depois vieram o mestrado, um capítulo de livro que ganhou o prêmio Jabuti, e a tese de doutorado “Edição de textos fidedigna e anotada das cartas trocadas entre Monteiro Lobato e Charles Frankie (1934-1937): Edição e estudo da correspondência entre Monteiro Lobato, Charles Frankie e alguns companheiros da Campanha Petrolífera, como Edson de Carvalho”.
Kátia estudou com afinco as 147 cartas, sendo 91 de Lobato para Frankie e 39 deste para o escritor, além de alguns documentos técnicos relacionados à exploração do petróleo no solo brasileiro. Como Frankie por vezes guardou cópias carbonadas de sua correspondência, houve a oportunidade de trabalhar não só com as cartas que Lobato enviara ao suíço, como também com as que este encaminhava a Lobato.
“Nessas cartas, Lobato, além de se familiarizar com alguns termos técnicos-geológicos da exploração petrolífera, faz críticas contundentes ao Código de Minas de 1934 e ao ‘atraso brasileiro’, protagonizando a história das primeiras companhias petrolíferas do Brasil”. É de Lobato a frase que serviu de slogan para a campanha do petróleo que resultou na criação da Petrobrás. “O petróleo é nosso” teria sido a última frase de uma derradeira entrevista concedida à rádio por Lobato, dois dias antes de morrer.
O escritor não foi só um ativista da causa do petróleo de solo brasileiro. Efetivamente trabalhou nas pesquisas para tentar encontrar o óleo negro no solo do país, oficialmente descoberto na Bahia, em 1939. Entre 1932 e 1937, Lobato fundou ou se filiou a três diferentes companhias de prospecção: Cia Petróleos do Brasil, Cia de Petróleo Nacional e Cia Mattogrossense de Petróleo. Também se associou à pesquisa da petrolífera Alliança Mineração e Petroleos LTD, a AMEP, um departamento da Companhia de Petróleo Nacional.
As experiências vividas no embate de anos tentando provar que havia petróleo no Brasil e que, com a descoberta, o país poderia se tornar tão rico quanto os Estados Unidos, foram compartilhadas ou serviram de inspiração para suas obras. Escreveu o livro O Escândalo do Petróleo, prosa sócio-política lançada em 1936 e que teve 20 mil exemplares esgotados em apenas 5 meses. Antes, redigiu diversos artigos para jornais sobre o assunto e traduziu e prefaciou A Luta pelo Petróleo, de Essad Bey, de 1935, juntamente com o amigo Charley Frankie. Sua “saga” em defesa do ouro negro culminou na obra O Poço do Visconde, de 1937, décimo volume da série “obras completas” de ficção para crianças.
Nas cartas que os amigos trocaram é possível identificar menções a livros e leituras, seja na parceria da tradução ou na organização e compilação de O Escândalo do Petróleo, afirma Kátia. “De ‘Prezado’, da primeira carta de Lobato a Frankie, a ‘Amigo Frankie’, em poucos dias: a relação durou, ao menos, três anos – no petróleo, nos livros, nos bastidores políticos”, afirma a autora.
Era uma preocupação de ambos o fato de engenheiros ligados à empresa norte-americana Standart Oil atestarem para o governo brasileiro que não havia petróleo no Brasil. “Lobato ficou conhecido como o ‘pai’ da Petrobrás, porque sempre foi contra a pesquisa americana no Brasil”. Kátia desconstrói a tese de que Lobato era a favor da estatização, da exploração pelo Estado brasileiro. “Ele era a favor da iniciativa privada e tinha intenção de fazer uma parceria com a empresa alemã ELBOF à qual Frankie também era ligado, como representante técnico”.
Para Lobato, o comportamento da Standart Oil era o mesmo de um “Octopus” ou polvo, disfarçando-se em empresas ou órgãos nacionais para, quando fosse interessante, prender sua vítima, ou seja, os petroleiros brasileiros, até a morte. No livro O Escândalo do Petróleo, porém, o escritor toma o cuidado de não deixar claro que se tratava da empresa. O assunto é tratado em uma das cartas a Frankie: “Não podemos acusar a Standard. Sabemos que no fundo de tudo está o Octopus, mas, em vez de falar em Standard, temos de dizer os Interesses Ocultos”, escreve Lobato.
A campanha do petróleo se confunde com a ficção. A correspondência ainda adverte, por exemplo, para os riscos de morte a que seu sócio na Companhia Petróleo Nacional, Edson de Carvalho, estaria sujeito. Segundo Kátia, Lobato retoma com Frankie duas mortes ligadas à campanha que ele afirma categoricamente que devem ser tratadas como “eliminação”. Ao abordar o assunto em seu livro, usa de ironia e apassiva os verbos. Um “foi morrido” e o outro “suicidado”.
“A empreitada apaixonada rendeu-lhe frutos extremos: de um lado, seria o grande responsável por levar a público três obras da literatura, recordistas de tiragem e referências sobre a saga do petróleo. No outro extremo, contudo, sua atuação colocou-o em choque com o governo de Getúlio Vargas, o que o levou à prisão”, descreve a autora.
“Morri um bom pedaço na alma”, desabafou Lobato em 1941 depois de ter passado seis meses atrás das grades na ditadura do Estado Novo. “A relação entre Getúlio Vargas e Monteiro Lobato desenrolou-se de maneira bastante irregular, alternando momentos de aparente concordância ideológica com divergências extremas”.
Na carta que levou Monteiro Lobato à prisão o escritor ressaltava a “displicência do Sr. Presidente da República, em face da questão do petróleo no Brasil, permitindo que o Conselho Nacional de Petróleo retarde a criação da grande indústria petroleira em nosso país, para servir, única e exclusivamente, os interesses do truste Standard-Royal Dutch”, relata a autora da tese em uma das notas de rodapé do trabalho.
Kátia fez uma série de notas de rodapé à íntegra das cartas publicadas em seu doutorado. Nelas, a pesquisadora trata do contexto político, das perfurações e companhias petrolíferas brasileiras, dos “interesses estrangeiros” no Brasil, da relação pessoal entre Lobato e seus interlocutores, entre outros temas.
A relação entre trechos das cartas com a ficção lobatiana já havia sido mostrada na dissertação de mestrado de Kátia, quando ela analisou e comparou 16 cartas trocadas com Charles Frankie e O Poço do Visconde. “Lobato escreveu inspirado no que eles viviam nos poços que perfuravam”.
Na história infantil, para se iniciarem os trabalhos de campo, por exemplo, não bastava a vontade de Pedrinho. Foram chamados dois “experientes” técnicos estrangeiros: Mr. Kalamazoo e Mr. Champignon. “Estes podem ser lidos, talvez, como duplos ficcionais de J. W. Winter, engenheiro alemão e Frankie, que respondiam pelas perfurações de duas companhias de Lobato”. Na ficção, prossegue a autora em sua análise, os técnicos eram norte-americanos, “o que levantou fortíssimas suspeitas de Quindim que, tal qual Lobato, jamais confiara nos estudos desenvolvidos sob encomenda do governo brasileiro”.
Foi no doutorado somente que Kátia trabalhou com todas as cartas, transformando-as para a edição e acrescentando as notas de rodapé. “Também percebi o quanto da correspondência está em O Escândalo do Petróleo. Muita gente se pergunta de onde veio essa criatividade, do Lobato, como ele havia tido essa ideia. Foi da vida real mesmo. Quando ele teve um problema com um perfurador, por exemplo, lemos a mesma história no O Poço do Visconde: o técnico americano que chegou e sabotou o poço da Dona Benta."
Rede de influências
Para a autora, a análise das cartas também expõe uma vasta discussão entre os correspondentes sobre as implicações políticas de um livro e “em especial”, sobre a força da literatura de Lobato na defesa “da causa”, como eles diziam. Lobato e Frankie citam muitas personalidades do cenário político-histórico nacional, a ponto de tornar-se necessária e complementar ao trabalho a confecção de um índice onomástico no final da publicação, com os nomes de todos as pessoas citadas nas cartas que compõem o que a pesquisadora considera uma verdadeira rede de influências construída pelo escritor.
“Lobato dedicava-se visceralmente aos ‘bastidores do petróleo’, por meio de intensa troca de cartas, buscando os mais diversos arranjos políticos e comerciais. O que não está claro nos livros, mas conseguimos perceber pela leitura das cartas, é como Lobato fazia parte do cenário político da época, como era ouvido, como era alguém que estava em todos os ambientes, tinha ‘ouvidos’ em todos os ambientes e como usava a literatura porque ele era conhecido não por ser um perfurador, mas por ser um grande escritor”, ressalta Kátia.
Perceber o tamanho da rede de influências de Lobato é uma das contribuições da tese que a pesquisadora considera mais importante. “De Getúlio Vargas até o perfurador do poço, passando por Armando de Salles Oliveira, engenheiro e político brasileiro, fundador da USP, foi uma rede construída a partir da literatura, que mostra como a literatura é capaz de construir um terreno político."
Comunicação SEESP
Reprodução de matéria do Jornal da Unicamp de Patrícia Lauretti. Leia o texto na íntegra aqui