Deborah Moreira
Comunicação SEESP
O homenageado pelo Prêmio Personalidade da Tecnologia 2019, concedido pelo SEESP, na categoria Amazônia e Meio Ambiente, é o engenheiro e físico Ricardo Galvão. Em 2019, aos 71 anos, até julho era diretor do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão responsável por divulgar os dados relativos ao desmatamento na Floresta Amazônica, quando a divulgação de dados mostraram aumento do desmatamento na região.
Natural de Itajubá, Minas Gerais, conquistou o respeito da comunidade após uma trajetória em renomadas instituições como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 1983. De 2005 a 2012, foi diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, a convite do renomado físico brasileiro Roberto Salmeron. De 2013 a 2016 presidiu a Sociedade Brasileira de Física.
Para Galvão, apesar das dificuldades em atuar com ciência e tecnologia no Brasil, realizar o trabalho de pesquisa aqui “é muito gratificante, principalmente com relação à formação de novos pesquisadores e avanço da ciência”.
Após a experiência no Inpe, onde visitou diversos centros de pesquisa internacionais, como na China, defende mais investimento na engenharia de inovação e em pesquisas avançadas: “Para que o País possa ter um desenvolvimento sustentável nas próximas décadas, teremos que evoluir para um sistema parecido [ao chinês], pelo menos em áreas estratégicas para nossa soberania. Não bastará a engenharia executora, temos que fortalecer cada vez mais a engenharia inovadora em pesquisa tecnológica avançada”.
Confira abaixo a íntegra da entrevista.
Qual a importância de receber um prêmio como esse?
A razão principal do embate que tive com o Presidente Bolsonaro foi seu infame ataque à ciência e tecnologia nacional, em particular aos sistemas desenvolvidos pelo Inpe para monitoramento da degradação, do desmatamento e das queimadas dos biomas brasileiros. A reação da comunidade científica à atitude do Presidente e em apoio à minha reação em defesa do INPE e dos pesquisadores brasileiros foi essencial para demonstrar ao Governo que a sociedade brasileira se posiciona fortemente a favor da ciência e tecnologia na formulação de políticas públicas.
O prêmio concedido pelo Sindicato de Engenheiros no Estado de São Paulo vem reforçar, de forma destacada, esse posicionamento da sociedade. O prêmio tem também um significado especial para mim. Devido a meu trabalho de pesquisa científica, muitos colegas consideram minhas contribuições mais voltadas para a Física. De fato, as honrarias que tenho recebido têm sido em Física. No entanto, além de ter formação básica em engenharia elétrica, com especialização em Telecomunicações, pela Universidade Federal Fluminense, fiz o mestrado em engenharia elétrica na Universidade Estadual de Campinas, tendo concluído a primeira dissertação deste programa, e conclui meu doutoramento no Departamento de Engenharia Nuclear do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. A formação básica em engenharia foi essencial para a forma com que desenvolvo minhas pesquisas, em particular as experimentais. Por isso, esse prêmio, sendo o primeiro em tecnologia, tem um significado especial para mim.
O Sindicato possui alguns conselhos para discutir questões tecnológicas e propor ações, no âmbito das políticas públicas. Como você vê a atuação conjunta da academia; entidades sociais, como sindicatos; e governo, em prol da Ciência e Tecnologia?
Infelizmente esta atuação está muito aquém do que deveria ser, não só por culpa dessas entidades, mas, principalmente por falta de uma visão moderna da classe política brasileira e, em alguns casos, também da classe empresarial. Neste século, não será possível o País almejar um desenvolvimento sustentável e socialmente justo sem fortíssima participação da Ciência e da Tecnologia, como tem sido demonstrado nos modelos seguidos por vários países, em particular pela China. No passado tivemos alguns exemplos destacados de participação da ciência e tecnologia na formulação de políticas públicas de extrema relevância para o País, como a implantação do ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica], que resultou na criação da Embraer [Empresa Brasileira de Aeronáutica SA], a criação dos programas espacial e nuclear, que resultaram no domínio soberano das tecnologias de desenvolvimento de satélites artificiais e de enriquecimento de urânio, o espetacular avanço da agricultura tropical autóctone, com base nas pesquisas desenvolvidas na Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], o programa Proálcool, a política de controle do desmatamento na Amazônia e outros biomas, com base nas tecnologias avançadas desenvolvidas no Inpe, etc. No entanto, diferentes governos não têm empregado de forma contínua e uniforme o conhecimento científico e tecnológico na formulação de políticas públicas, inclusive aquelas de maior relevância social. Em particular, infelizmente o governo atual parece adotar uma visão negacionista com relação à ciência e sua relevância, demonstrando uma soberba autoritária apoiada pelos setores menos esclarecidos da sociedade que lhe dão suporte.
Os questionamentos levantados com relação ao aquecimento global e relevância da preservação da Amazônia, desprezando os inúmeros estudos e propostas de instituições científicas e tecnológicas para implantar sistemas de desenvolvimento sustentável na floresta, são uma demonstração clara dessa postura retrógada. Neste cenário, se torna imprescindível uma articulação da academia, entidades sociais e sindicatos bem mais estruturada que no passado, para atuar de forma assertiva e propositiva junto ao governo, na formulação colaborativa de políticas públicas e na crítica construtiva e independente daquelas que venham a ser adotadas em oposição ao conhecimento científico e tecnológico estabelecido.
Como é atuar com Ciência e Tecnologia no Brasil?
Quando estava terminando o doutoramento no MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts], recebi inúmeras propostas para continuar trabalhando no exterior, algumas bastante atrativas. No entanto, considerei retornar uma obrigação moral com meu País, que patrocinou toda minha formação acadêmica, desde o primário até o doutoramento. Sabia que, retornando, provavelmente minha carreira científica não alcançaria um patamar de desenvolvimento igual ao que poderia alcançar no exterior. Isso, de facto ocorreu; mas o sacrifício valeu a pena! O trabalho científico no Brasil, em particular quando retornei, há mais de quarenta anos, é, de facto, bem mais difícil que nos países mais avançados. Não somente com relação a recursos humanos e orçamentários, mas, principalmente, devido a entraves administrativos e a um arcabouço legal que dificulta a aquisição e desenvolvimento de instrumentação científica e a interação academia-empresa para a inovação tecnológica.
O novo marco legal de ciência e tecnologia, baseado na Lei 13.243, de 2016, e no Decreto 9.283, de 2018, removeu muito dos entraves da Lei 8.666 e introduziu vários instrumentos para facilitar o desenvolvimento científico e tecnológico do País como, por exemplo, a possibilidade de encomendas tecnológicas por instituições públicas de ciência e tecnologia. No entanto, a utilização eficaz desse novo marco tem sido muito lenta devido, principalmente, à postura reacionária de órgãos de controle, com AGU [Advocacia-Geral da União] e CGU [Controladoria-Geral da União]. E, infelizmente, o novo Governo não deu nenhuma prioridade à solução desse problema.
Mas, apesar dessas dificuldades, realizar o trabalho de pesquisa no Brasil é muito gratificante, principalmente com relação à formação de novos pesquisadores e avanço da ciência. Nos últimos trinta anos, a participação da produção cientifica brasileira no cenário internacional avançou substancialmente, sendo que o país ocupa atualmente o décimo-segundo ou décimo-terceiro lugar, dependendo da fonte de avaliação, na produção científica mundial. Esse avanço se deve não somente a uma política pública de incentivo continuado ao desenvolvimento científico, de 1990 a 2016, mas, também à decisão de um grande número de cientistas de optar pelo desenvolvimento de suas carreiras no País. Infelizmente o avanço tecnológico, principalmente o avanço tecnológico acionado pelo desenvolvimento científico, avançou muito pouco nesse mesmo período. O Brasil ainda deposita um número quase inexpressivo de patentes no exterior e o meio empresarial pouco se preocupa em explorar os resultados obtidos nos laboratórios. Nisso, em particular, é muito importante que as instituições de caraterística mais tecnológica, inclusive organizações de classe, colaborem com a academia para materializar os resultados da ciência brasileira em avanços tecnológicos em benefício da sociedade.
E a engenharia, de que forma ela contribui para melhorar a vida das pessoas?
A engenharia foi um dos principais alicerces do desenvolvimento do País no século passado. As escolas de engenharia desempenharam um papel fundamental na implantação de uma mentalidade desenvolvimentista soberana em áreas estratégicas, já no final do século dezenove e início do século vinte. Um exemplo paradigmático dessa mentalidade foi a inauguração da primeira usina hidrelétrica, às margens do Rio Paraibuna, na Zona da Mata Mineira, em 5 de setembro de1889, por iniciativa do empresário mineiro Bernardo Mascarenhas. Isso ocorreu apenas sete anos após a inauguração da primeira hidrelétrica no mundo, no Fox River, em Appleton, Wisconsin, nos EUA. Esta mentalidade desenvolvimentista e de pionerismo soberano persistiu no século vinte, como, por exemplo, no desenvolvimento autóctone de ultra centrífugas para o enriquecimento de urânio pela Marinha do Brasil. No entanto, não podemos deixar de reconhecer que, desde o início da década de 1980, a engenharia nacional tem tido grande dificuldade em acompanhar a liderança no desenvolvimento de tecnologias avançadas, em particular no que se refere a materiais avançados, tecnologia da informação, nanotecnologia, bioengenharia, etc.
O envolvimento de engenheiros em pesquisas avançadas, tanto nas empresas como nas escolas de engenharia, está muito aquém do observado nos países mais avançados, principalmente na China. Durante meu mandato na direção do Inpe, tive várias oportunidades de visitar instituições chinesas, muitas delas voltadas à pesquisa tecnológica e não à pesquisa básica, com enorme participação de engenheiros. Isso se reflete em uma mentalidade virtuosa de inovação tecnológica, com facilitada interação entre a academia, inclusive a voltada à pesquisa básica, e o setor industrial, alavancando o notável desenvolvimento chinês. Para que o País possa ter um desenvolvimento sustentável nas próximas décadas, teremos que evoluir para um sistema parecido, pelo menos em áreas estratégicas para nossa soberania. Não bastará a engenharia executora, temos que fortalecer cada vez mais a engenharia inovadora em pesquisa tecnológica avançada.
Como foi a experiência como diretor do Inpe durante quase 3 anos?
Foi uma experiência incrível, muito além de minhas expectativas iniciais. Já conhecia um pouco o Inpe, tendo lá trabalhado logo depois de formado, em 1970, e retornado no período de 1986 a 1990. O Inpe tem um quadro de servidores, pesquisadores, tecnologistas e administradores de fazer inveja a qualquer outra instituição, mesmo no exterior. Isso me fez sentir muito seguro com relação à produção científica e tecnológica da instituição. O desenvolvimento de satélites, por exemplo, é uma atividade de alto grau de sofisticação em engenharia de sistemas, totalmente dominada pelos engenheiros do Inpe. Outras atividades, como o emprego de satélites para observação da Terra, envolve equipes multidisciplinares muito bem articuladas, que dão exemplo de serviços de qualidade mundial em benefício da sociedade. Fui muito bem recebido pelos meus colegas do Inpe. Com esse apoio, consegui realizar muitas das ações que havia planejado.
A que o senhor atribui essa onda de desinformação em que muitos acreditam que a terra não é redonda, que o homem não foi à lua, que as vacinas são um problema? A ciência se distanciou das pessoas?
Este é um fenômeno relativamente novo, que deve ser estudado com maior profundidade pela sociologia. Não se trata apenas de um ressurgimento do obscurantismo que havia no passado. Aquele obscurantismo tinha como causa principal posicionamentos religiosos extremistas, distantes até do racionalismo que várias religiões advogavam na interpretação de seus princípios pelos fiéis. Agora, temos um obscurantismo renovado, não totalmente motivado por crenças religiosas, que prefiro denominar “negacionismo da ciência”. Acontece que, com o advento das redes sociais, muita gente sem formação adequada, considerando-se “dominadora da tecnologia” por saber apertar botões, passou a se sentir com poder para pregar universalmente suas discordâncias da ciência. Os meios sociais, como o twitter, por exemplo, não permitem desenvolver argumentos aprofundados, que são necessários para a compreensão de modelos científicos, e, com isto, argumentos distorcidos, com uma tintura superficial de seriedade, são facilmente aceitos por aqueles sem formação adequada e desinformados. Essa parcela da sociedade é bastante numerosa, mesmo no exterior, e cada vez mais se sente atraída pela superficialidade das redes sociais, refutando argumentações aprofundadas. Infelizmente, esse novo paradigma foi logo percebido por políticos, mercadores de ilusões e tantos outros que o exploram cada vez mais para ter o domínio sobre os pobres de espírito nas redes sociais.
O senhor está trabalhando em algum outro projeto ou instituição? Qual sua linha de atuação nas pesquisas?
Minha principal área de pesquisas é a fusão nuclear, ou seja, a pesquisa para desenvolver reatores nucleares baseados no mecanismo de fusão, que é o mecanismo que gera energia nas estrelas. Retornei à minha posição como professor no Instituto de Física da USP. No Laboratório de Física de Plasmas do Instituto, instalamos um dispositivo de confinamento magnético de plasmas de alta temperatura. Os plasmas são gases ionizados e sua temperatura; neste dispositivo, é cerca de cinco milhões de graus centígrados. Estou atualmente trabalhando com colegas do laboratório em um projeto para aprimorar esse dispositivo, para torna-lo mais atrativo com relação à fronteira das pesquisas nessa área.
Fotos: De cima para baixo, a primeira e a terceira são do arquivo pessoal. A segunda, é de Luis Macedo/Câmara dos Deputados