Olimpio Alvares*
O possível efeito do Renovabio na Lei 16.802/2018 do Município de São Paulo que prevê a penetração gradual de tecnologias e combustíveis alternativos ao diesel
Em 2017 o Congresso Nacional aprovou a Lei Ordinária 13.576/2017 da Política Nacional de Biocombustíveis, RenovaBio. Trata-se de uma política de incentivo aos biocombustíveis automotivos, que entrará em vigor em janeiro de 2020.
O governo publicou em 21.11.2019 a Portaria 419/19 (leia aqui) que regulamenta o mercado dos Créditos de Descarbonização (CBIOs), a grande estrela do Renovabio. Finalmente, entrará em vigor a política pública mais esperada no setor de produção de biocombustíveis no País – leia-se: etanol, biodiesel, biometano, bioquerosene …. e também a novidade no universo do setor de veículos pesados, o HVO – Hydrotreated Vegetable Oil.
Alguns especialistas mais pessimistas, embora ainda sem estudos e elementos suficientemente abrangentes para uma conclusão mais embasada e crível, apostam que o “Calcanhar de Aquiles” do HVO possa ser seu custo final não competitivo com os veículos elétricos, especialmente no nicho dos ônibus urbanos – mas há muita controvérsia sobre esse tema inédito nos fóruns de engenharia automotiva brasileira. A agitação, em meio a abundantes achismos, é forte.
Mas, quais são os fatos?
O HVO ou Diesel Verde já está sendo usado como substituto renovável do diesel fóssil em escala comercial em países desenvolvidos, a preços competitivos e o volume total consumido no planeta parece apresentar um crescimento com tendência exponencial, segundo algumas projeções. Com o uso no Brasil dos CBIOs – que nada mais são do que um mecanismo objetivo inteligente de transferência de recursos dos combustíveis fósseis para os biocombustíveis – estes poderão ficar mais competitivos em relação ao concorrente fóssil.
A regulamentação da especificação do HVO já está sendo trabalhada pela Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis – ANP, a fim de tornar possível, em breve, a comercialização desse Diesel Verde 100% renovável no uso final (queima), e com baixíssima pegada de carbono no seu ciclo de vida (AFOLU – mudança do uso da terra; produção; beneficiamento; distribuição; uso final).
Para quem ainda não sabe, convém esclarecer que o HVO é um combustível conhecido como “drop-in” – ao contrário do biodiesel, pode ser misturado ao diesel convencional sem limitações ambientais e de engenharia, em qualquer teor, ou mesmo puro, sem necessidade de alterações no motor e na rede de distribuição. Pelas suas inúmeras vantagens e custo, já se cogita em transformar plantas de produção de biodiesel para fabricar o HVO.
Comparado ao diesel comercial, o HVO mantém a performance do motor, o nível de consumo, e também reduz as emissões de NOx em 10%, de material particulado – MP cancerígeno em 30%, sendo suas emissões de MP 85% menos tóxicas do que as equivalentes do diesel fóssil, devido ao seu teor de aromáticos 85% menor. Isso permite, da noite para o dia, que as emissões de partículas e carbono fóssil de uma frota a diesel qualquer sejam praticamente inócuas, tanto do ponto de vista tóxico, quanto climático. Se não fossem as emissões de NOx, poder-se-ia dizer que o HVO é o combustível dos sonhos dos que querem preservar o uso dos motores a combustão.
Ao não apresentar os sérios problemas do biodiesel relacionados à degradação físico-química, oxidação, contaminação com água, formação de borra e resina, com consequentes danos aos motores, bem como as altas emissões de óxidos de nitrogênio – NOx (responsável pela formação na atmosfera do danoso ozônio – O3 troposférico) – características marcantes do biodiesel – espera-se que o HVO tenha preferência nas políticas públicas do setor automotivo – como já vem ocorrendo fora do Brasil – representando um possível alívio para os fabricantes e usuários de motores diesel pesados, ao estender por algum tempo – pelo menos – o anunciado (em alguns países) banimento nas próximas décadas dos motores a combustão – na mira do ambientalismo feroz, desde o escândalo Diesel-Gate, que curiosamente só envolvia os veículos leves que apresentavam nas ruas altas emissões de NOx.
Embora as matérias jornalísticas que anunciam a regulamentação dos CBIOs, cite exemplos relacionados apenas aos combustíveis líquidos, esses também abrangerão o setor de produção do biometano, cujo uso em motores a combustão, mesmo antes do incentivo do Renovabio, já vem crescendo espontaneamente, em ritmo acelerado, em todos os rincões do País, pelas vantagens econômicas que vem apresentando em relação ao diesel.
A geração de biometano a partir da captação do biogás em aterros que produzem enormes volumes, também já é uma realidade; e com a consolidação do chamado “SWAP”, que permite ao produtor do biometano injetar toda produção na rede nacional de distribuição de gás em qualquer região do País, haverá leilões de biometano, a preços competitivos com o gás natural, e os frotistas, em diversas partes do território nacional poderão em breve adquirir o biometano em qualquer parte, e abastecer seus veículos na rede de abastecimento de gás mais próxima. Assim, sua operação poderá ser classificada como 100% renovável.
Mas, o que o Renovabio e os CBIOs tem a ver com o programa de substituição de frota diesel por veículos de transporte coletivo urbano no Município de São Paulo?
Com a possibilidade de comercialização dos CBIOs e o consequente aumento da produção de biocombustíveis, espera-se que, em breve, o mercado de HVO e biometano seja afetado positivamente com oferta abundante e a preços mais competitivos, para o enfrentamento do seu concorrente mais forte, os ônibus elétricos – cujos custos, tem sido favorecidos por uma política industrial expansionista agressiva da China, “Meca da eletromobilidade” e centro mundial de produção de baterias e veículos elétricos de todas as matizes.
Nesse sentido, uma decisão favorável da Prefeitura de São Paulo à flexibilização do cronograma de redução ano-a-ano das emissões de NOx, MP e CO2 fóssil das frotas das empresas operadoras da Capital, tornando-o apenas indicativo – mantendo, porém, as metas ambientais originais para o décimo e vigésimo ano de operação da Lei 16.802/2018 – permitiria aos operadores de ônibus mais liberdade para compor o mix diversificado mais conveniente e econômico de tecnologias existentes no mercado brasileiro, visando ao atendimento das metas previstas na Lei.
Assim como a China é a Meca dos veículos elétricos, e seu governo estabelece políticas nacionais e transnacionais para defesa dessa indústria, o Brasil, sendo a Meca dos biocombustíveis e das tecnologias de motorização disruptivas, deveria seguir o exemplo chinês e incentivar, por meio de políticas públicas mais inteligentes, os setores agrícola e dos biocombustíveis, bem como a nossa pressionada indústria brasileira de motores limpos. Eliminando esse “tiro no próprio pé” – no caso do Programa Paulistano de Substituição de Frota – assistiremos a uma competição tecnológica, industrial e comercial mais aberta, equilibrada e justa, preservando todos os ganhos ambientais esperados há décadas pela sociedade, e cravando um espetacular benchmark para todas as grandes cidades brasileiras e da América Latina.
O que é RenovaBio?
O Renovabio é um engenhoso programa de desenvolvimento sustentável do governo brasileiro, baseado nos Créditos de Descarbonização – CEBIOs, que nada mais são do que uma moeda no bolso do produtor do biocombustível automotivo líquido ou gasoso (etanol, biodiesel, HVO ou biometano). A “moeda verde” é criada a partir do pagamento de um valor monetário pelo distribuidor de combustíveis fósseis, proporcional ao volume de combustível comercializado. Essa moeda tem valor proporcional à quantidade de carbono neutro reciclável ou renovável; leva em conta o ciclo de vida do combustível comercializado, que evitará a emissão de carbono fóssil na atmosfera pelas tecnologias convencionais que utilizam gasolina, diesel e gás natural. Os cálculos são feitos por uma ferramenta chamada RenovaCalc.
Não importa se o biocombustível, líquido ou gasoso, é gerado por produto agropecuário, em aterro sanitário, ou pela transformação do lodo de estações de tratamento em combustível líquido ou gasoso. O Renovabio é um impulso na economia circular. Esse é o caso, por exemplo, do lodo do esgoto, um enorme problema operacional – e um ralo financeiro de grandes proporções para as empresas de saneamento – que se transforma, com o incentivo desse Programa, em uma solução para a sociedade, gerando riqueza e desenvolvimento sustentável.
*Olimpio Alvares é engenheiro mecânico pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo em 1981, Diretor da L’Avis Eco-Service, especializado no Japão e Suécia em transporte sustentável, inspeção técnica, emissões veiculares e poluição do ar. É fundador e Secretário Executivo da Comissão de Meio Ambiente da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP; Diretor de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades – SOBRATT; é assistente técnico do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental – PROAM; consultor do Banco Mundial, do Banco de Desenvolvimento da América Latina – CAF, do Sindicato dos Transportadores de Passageiros do Estado de São Paulo – SPUrbanuss e da Autoridade Metropolitana de Florianópolis.