As novas tecnologias também abriram novas atuações da área, como na geolocalização, informa a engenheira cartógrafa Renata Denari Elias
Um conhecimento que remonta há cerca de 3 mil anos e traz legado de muitas civilizações antigas, como as do Egito e do Império Romano, cujo objetivo é representar graficamente a superfície terrestre por meio de captação e análise de dados geográficos para a elaboração de mapas. “A cartografia é uma ciência que permitiu a navegação e a orientação por meio da observação dos astros”, ensina a engenheira cartógrafa Renata Denari Elias, funcionária pública da Prefeitura Municipal de São Paulo desde julho de 1992. Atualmente, ela está lotada no Departamento de Desapropriações (Desap) da Procuradoria Geral do Município.
Há 28 anos na área, a especialista fala sobre a profissão como forma de celebrar o Dia do Engenheiro Cartógrafo, em 6 de maio, conforme calendário do sistema dos conselhos federal e estaduais de engenharia e agronomia (Confea-Creas). O País tem 1.633 profissionais, sendo 391 mulheres e 1.242 homens.
A formação de engenheiros especialistas em trabalhos cartográficos, no Brasil, se deu em 1810, com a criação da Academia Real Militar. “A modalidade era competência exclusiva dos militares, das Forças Armadas, devido ao sigilo no mapeamento dos territórios por motivo de segurança. Depois passou para a área civil”, explica Denari, que se formou aos 22 anos de idade, em 1988. O primeiro curso de Engenharia Cartográfica em ambiente civil se deu na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 3 de novembro de 1970.
Qual a ação da engenharia cartográfica no dia a dia de uma sociedade?
Renata Denari Elias – Todos os aplicativos que têm geolocalização foram desenvolvidos por um engenheiro cartógrafo. Todas as grandes cidades, que fazem planejamento, têm um recobrimento aerofotogramétrico e um cadastro feito por um engenheiro cartógrafo. É uma finalidade primordial que gera milhares de outras utilidades, como o planejamento urbano, cadastro, regularização do IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano] etc.. Os equipamentos também podem ser utilizados para localizar jazidas, por exemplo, porque escaneiam em voo a temperatura diferente do solo.
Como você escolheu essa profissão?
Sempre gostei de engenharia. Na cidade onde morava, Presidente Prudente [SP], havia Engenharia Civil e Cartográfica. Como era um curso da Universidade Estadual Paulista (Unesp), renomado e, em tese, melhor, optei pela Engenharia Cartográfica. Prestei vestibular aos 17 anos e passei.
Teve alguma influência da família na escolha?
Meus pais não participaram da minha escolha. Minha mãe era professora, meu pai estudou somente até o quarto ano primário e trabalhava com pecuária. Minha irmã fez curso de Farmácia e meu irmão optou pelo comércio. Foi uma decisão minha ser engenheira. Nunca quis outra profissão. Sempre tive facilidade com matemática, e sou uma pessoa prática, decidida.
Como foi entrar na Unesp?
Estar numa universidade pública nessa idade é uma maravilha. Tive a oportunidade de conhecer pessoas com quem tenho amizade até hoje, desde professores a colegas de classe. Aquela história que costumam contar que a faculdade pública é desorganizada, que tem drogas, nenhum de nós nem cigarro fumava. Não tem baderneiro nem balbúrdia!
O campus de Presidente Prudente é bonito, tinha uma equipe muito boa, os funcionários educados. Quando você entrava na sala de aula sabia que estava diante de professores capacitados, com mestrado, doutorado, com muita informação e conhecimento para transmitir. Era uma relação de muito respeito.
E o estágio obrigatório, como fez?
O curso era em tempo integral, por isso, fazíamos o estágio em período de férias, nos meses de janeiro e julho. Foi assim na Prefeitura de Presidente Prudente, num serviço mais especializado em empresas de aerofotogrametria, como o Instituto Geográfico e Cartográfico e a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano [Emplasa]. Também estagiei na Prospec, uma empresa muito grande de aerofotogrametria, em Petrópolis (RJ).
Participou de outros projetos?
Vivi uma experiência maravilhosa quando participei do projeto Rondon, uma ação interministerial do governo federal, estados e municípios em parceria com as instituições de ensino superior [IES]. Eu e mais três colegas fomos para a cidade de Humaitá, no sul do Estado do Amazonas, em julho de 1987. Ficamos lá durante 30 dias para fazer o nivelamento geométrico da cidade.
Como iniciou a carreira?
Assim que me formei, trabalhei medindo fazenda em Mato Grosso, onde fiquei dez dias fazendo topografia. Trabalhei na Prefeitura de Regente Feijó [SP], fiz o cadastro da cidade inteira, inclusive dos túmulos do cemitério.
Vim para a capital paulista procurar emprego aos 23 anos. Morei em Taboão da Serra em condições precárias, dormia num colchão, no quarto de umas amigas. A situação foi bem complicada no início. Como não consegui emprego na engenharia, comecei a lecionar na Escola Rosana Sueli Funari, na periferia de Embu, há quase 30km da Capital, nos anos 1990. Enquanto isso, seguia procurando emprego na minha área. Consegui ser contratada pelo Instituto Geográfico e Cartográfico (IGC) e prestei concurso para a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itest) e para a Prefeitura de São Paulo. Fui contratada pela fundação como assistente técnica da diretoria, mas fiquei pouco tempo. Fui aprovada no concurso da Prefeitura de São Paulo, em julho de 1992, e optei por ser funcionária pública, mas continuei lecionando à noite.
O que você faz na Prefeitura?
Trabalhava com processos de desapropriação, onde estou até hoje. Nunca tinha lidado com essa problemática. Tinha visto desapropriação rural e regularização fundiária no Itest, mas comecei a conviver com isso diariamente. Como lidava muito com processos judiciais, resolvi cursar Direito. Quando meu pai faleceu e minha mãe teve câncer pedi licença sem vencimentos – um direito do funcionário público – e voltei para Presidente Prudente, onde concluí o curso. Minha mãe melhorou, e voltei para São Paulo, onde estou até hoje, casei, tive filhos, fiquei viúva e casei de novo.
Em qual departamento está lotada atualmente?
Trabalho num departamento técnico com diversos profissionais: engenheiros, arquitetos, contadores, procuradores municipais e outros. O departamento é responsável por ajuizar todas as ações de desapropriação na cidade de São Paulo e defender a municipalidade nas ações indiretas de desapropriação. No começo era muito comum abrirem uma rua em determinado terreno e não indenizarem o contribuinte. Isso gerava uma ação judicial contra a Prefeitura. O mesmo acontecia quando havia necessidade de alargamento viário e não se indenizava o contribuinte ou se canalizavam córregos sem indenizar o terreno confrontante.
Antes, todo o processo era realizado pelo departamento, desde a vistoria do imóvel, laudo de avaliação, a planta de decreto, a planta expropriatória e o ajuizamento da ação até a emissão da posse. Acompanhava o trâmite até o pagamento do precatório. São os procuradores que acompanham isso até o final. Depois as pessoas foram se aposentando e foi interesse da municipalidade terceirizar o serviço. Todo esse processo hoje é realizado por contrato.
Apesar da terceirização, continuamos com a responsabilidade técnica e jurídica sobre as desapropriações no município de São Paulo – temos um acervo de cerca de 4 mil plantas de desapropriação e outro tanto de ações ajuizadas. É muito serviço, principalmente porque o quadro está reduzido. O funcionalismo público está desprestigiado e há interesse na terceirização total dos serviços.
Ao longo da sua carreira, como se deram mudanças ou aprimoramentos?
Quando entrei na engenharia cartográfica o sistema de mapeamento era manual, completamente diferente de hoje, que é digital. A gente trabalhava com scribe-coats, uma espécie de filme. A partir da sobreposição de fotos aéreas, era possível se restituir um mapa hidrográfico e fazer a altimetria para observar as curvas de nível e as curvas mestras; depois fazia a planimetria, para restituir áreas secas, as casas. Tudo isso era feito manualmente. Fazia-se um scribe-coats para cada processo: um para hidrografia, outro para altimetria, outro para construções. Também havia a parte relacionada à astronomia e era necessário que os profissionais fossem a campo para observar as estrelas com telescópio e fazer os cálculos.
No curso de Engenharia Cartográfica havia disciplinas como astronomia, fotogrametria, geodésia, para estudo da curvatura da Terra. Eram matérias muito específicas, além daquelas comuns para as engenharias, como cálculo e álgebra.
Quais os desafios que você enfrentou na sua carreira como mulher?
As mulheres precisam provar o tempo todo que têm a mesma competência de um homem. Ainda hoje, se houver uma vaga na engenharia cartográfica em área rural, vão dar preferência a um homem. A desculpa utilizada é que as pessoas precisam dormir em alojamentos. Infelizmente o preconceito ainda existe. Outra desculpa é dizerem que determinado serviço não era competência do engenheiro cartógrafo, mas do agrimensor, civil ou do geógrafo. O profissional precisar explicar o que é engenharia cartográfica e qual a sua função.
Como você cuidou da sua qualificação depois da faculdade?
Fiz pós-graduação na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) em avaliação e perícia em engenharia. É importante estudar sempre, especializar-se em tudo. Tenho 53 anos e estou fazendo mestrado em avaliação de imóveis na Universidade Politécnica de Valencia, na Espanha, em convênio com a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Aconselho a não ficar somente na graduação, isso em todas as profissões. Cursei duas faculdades, e nunca parei de estudar. Fazer engenharia cartográfica vale a pena.
A engenharia cartográfica sofreu mudança?
Sim. Houve uma fusão entre as modalidades cartográfica e agrimensura. O curso hoje é Engenharia Cartográfica e de Agrimensura, ou Engenharia de Agrimensura e Cartográfica [a modalidade unificada já contabiliza 199 profissionais no Brasil, com 60 mulheres e 139 homens, e foi normatizada pela Resolução nº 1.095, de 29/11/2017, do Confea]. Se você se formar hoje, tem as duas competências. As duas engenharias sempre tiveram campos de atuação comuns. O que as distinguia é que os engenheiros cartógrafos tinham especialidade a mais sobre as imagens de satélites, as imagens orbitais, ou seja, a parte de aerofotogrametria para confeccionar os mapas. Houve um projeto de se fundirem as duas profissões que eu concordo.
Como você define a sua profissão?
Considero o trabalho que faço muito sério, lido com papel, com processos judiciais, com perícia que afeta substancialmente a vida das pessoas, seu patrimônio. Quando se realiza uma expropriação, a pessoa pode perder a casa onde morou durante 30 anos, então que pelo menos seja pago um valor justo. Sou funcionária pública e atendo quem chegar à minha porta, seja um contribuinte ou um perito, pois sei da morosidade do serviço público e como as pessoas sofrem para conseguir um atendimento.
O desafio que passo até hoje é trabalhar para que o nome da engenharia cartográfica seja conhecido. Para isso, aceito todos os convites para palestras. Considero um ramo profissional muito bom para os jovens que têm facilidade com tecnologia.