Comunicação SEESP*
Governos de diversos países estão adotando monitoramento digital para tentar conter o contágio da Covid-19, causada pelo novo coronavírus. Para fiscalizar a adesão à quarentena estão sendo utilizadas tecnologias de rastreamento a partir de dados dos celulares da população e até câmeras de reconhecimento facial. A iniciativa tem trazido eficiência em muitas cidades, mas há quem considere o preço alto: a violação da privacidade.
As medidas surtem efeito e têm papel importante no controle da epidemia, uma vez que a manipulação de dados permite traçar rotas por onde uma pessoa infectada passou e com quem se encontrou. Com isso, está sendo possível alertar quem pode ter sido infectado. Como ocorreu na China e na Coreia do Sul, no Brasil, estados e municípios firmaram parcerias com operadoras de telefonia e empresas de tecnologia que coletam dados de geolocalização para saber se as pessoas estão ficando em casa e onde estão as aglomerações. Há experimentos de vigilância em Pernambuco, onde drones, munidos de câmeras com sensor infravermelho, que mede a temperatura corporal, passam por aglomerações e identificam celulares, enviando essas informações para uma central que as armazena.
Especialistas no tema questionam a eficácia da quebra do direito à privacidade de dados, garantido por lei desde 2014, com o Marco Civil da Internet, para obter um isolamento social eficaz. “Nenhuma tecnologia digital de violação da privacidade, principalmente a partir de celulares, resolve problemas específicos do Brasil, onde existem habitações precárias nas comunidades, onde não há nenhuma política de contenção de contágio a partir desse mapa de calor anunciado, por exemplo, pelo governador (de São Paulo) João Doria”, argumenta o sociólogo Sergio Amadeu, professor adjunto da Universidade Federal do ABC (UFABC), que integra o Comitê Gestor da Internet no Brasil e pesquisa as implicações tecnopolíticas dos sistemas algoritmos.
A jornalista Renata Mielli, coordenadora do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), concorda com Amadeu e lembra que o monitoramento via celular, por exemplo, é inócuo: ”O Brasil tem uma economia e sociedade diferentes da chinesa, da japonesa, onde foram usadas essas tecnologias, mas também foram construídos hospitais em tempo recorde e houve testagem em massa. Por aqui, os casos estão subnotificados. Que eficácia teria o mapa de calor se aqui a gente nem sabe quem está contaminado. Há outras doenças circulando que também elevam a temperatura corporal. Além disso, os governos sabem onde estão as aglomerações, baseando-se na lógica econômica, como supermercados, grandes vias ou centros comerciais.”
Mielli alerta para o argumento de estado de guerra usado pelos governos e empresas para realizarem a coleta de dados – o uso de expressões como guerra ao vírus, linha de frente no combate ao vírus, inimigo invisível. "Essa ideia dá permissão para que se tomem medidas extremas, que se adote um estado de exceção. Antes, o argumento palatável das empresas para coletar os dados era aprimorar experiência de navegação nas plataformas, melhorar o trânsito na cidade, desconto em compras, facilidades para o dia a dia. Agora, com a pandemia, que tem consequências graves para a história da humanidade, encontraram um inimigo perfeito para justificar o uso das ferramentas de controle de dados. Eles fazem isso de duas maneiras: primeiro, é colocado um problema para a sociedade que busca respostas para essa crise, então, qualquer resposta apresentada é abraçada”, compara a comunicadora.
Até agora, a coleta de dados tem respeitado o anonimato dos cidadãos. Mas isso não garante que não haverá identificação dos usuários futuramente.
Para Sergio Amadeu, é uma porta perigosa que se abre e pode não ser fechada no futuro, com o fim da pandemia. Na sua visão, permitir que essa coleta continue de forma indiscriminada dá margem para que governos e empresas continuem mapeando ainda mais comportamentos que podem divergir de sistemas políticos, por exemplo. “Numa democracia não dá para esperar passar a pandemia para reagir contra a destruição de direitos."
O País possui uma Lei Geral de Proteção de Dados aprovada que começaria a valer a partir de agosto próximo. Mas, por causa da pandemia do coronavírus, o Senado adiou para janeiro de 2021, com penalidades previstas a partir de agosto daquele ano. De acordo com a justificativa, não haveria tempo hábil para criar a Autoridade de Proteção de Dados, órgão necessário para garantir a eficácia da nova legislação.
* Com informações da Live da Revista Fórum sobre o assunto. Assista a íntegra neste link .