Carlos Magno Corrêa Dias*
A pandemia vem proporcionando inúmeros danos à sociedade. Uma das graves questões relegada a segundo plano corresponde aos transtornos mentais que impactavam a vida das pessoas de forma determinante muito antes, mas que promoverão, pós-Covid-19, um desastre de grandes proporções.
A pandemia causada pelo novo coronavírus gerador da doença Covid-19 vem proporcionando inúmeros danos à sociedade. Semelhante afirmação, embora inquestionável, vem escondendo ou relevando a níveis secundários problemas de difícil solução futura. Uma dessas graves questões, já muito sutilmente considerada, corresponde aos transtornos mentais que impactavam a vida das pessoas de forma determinante muito antes da pandemia, mas que promoverão, pós-Covid-19, um desastre de grandes proporções.
Em geral, pelo mundo afora, quaisquer anormalidades, sofrimentos ou comprometimentos de ordem psicológica e/ou mental são considerados transtornos (ou distúrbios, ou doenças) mentais, fazendo-se, preferencialmente, distinção entre os termos doença mental (no sentido tradicional do termo) e transtorno mental.
No Brasil, entretanto, o Projeto de Lei 6.013/2001, cujo parecer foi aprovado por unanimidade pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) em 17 de março de 2009, em caráter conclusivo, estabelece que o termo “transtorno mental” padroniza a correspondente enfermidade psíquica (patologia) e assegura aos portadores o direito a um diagnóstico conclusivo de acordo com a classificação internacional. O termo transtorno mental substitui, então, quaisquer outros hoje considerados impróprios, como alienação mental, demência, loucura, insanidade e equivalentes.
Tanto os infectados quanto aqueles não contaminados pelo novo coronavírus poderão ter suas vidas destruídas em decorrência das consequências não mitigadas da Covid-19. O cérebro das pessoas está (e será) drasticamente afetado, de forma direta ou indireta, de alguma maneira, pelas graves consequências visíveis ou invisíveis deixadas pela Covid-19. O medo, a insegurança, a falta de perspectiva, o desamparo, a ansiedade, o estresse, dentre outras anomalias, abalam qualquer defesa psíquica que seja capaz de proteger a todos os seres humanos diante de um experimento mundial tão intenso como é o da pandemia de Covid-19.
As estimativas sobre o número de afetados com transtornos mentais em decorrência da pandemia são controversos, mas, em geral, supõe-se que cerca de metade da população do mundo sofrerá algum transtorno mental, de moderado a grave, independentemente das ações de mitigação que forem realizadas para resolver ou apenas amenizar as consequências da Covid-19.
Contudo, saliente-se que mesmo antes da pandemia, as estimativas já davam conta que um terço da população sofreria de algum tipo de transtorno mental ao longo da vida. Um em cada três habitantes da Terra já era uma proporção assustadora. Imagine-se, então, como essa relação vai ser ampliada com toda carga intensa de ansiedade, angústia e insegurança causada pelas alterações da rotina de vida, do dia a dia de cada um.
Na verdade, deixando de lado as estimativas, sejam elas otimistas ou pessimistas, todos, de uma forma ou de outra, terão sua saúde mental afetada em decorrência dos traumas que a Covid-19 vem gerando, uma vez que é próprio das pandemias como essa afetarem inevitavelmente a “normalidade”, a mente das pessoas.
As pandemias como a de Covid-19, as grandes guerras entre nações, as possibilidades de impacto de asteroides com a Terra ou quaisquer outros eventos de baixa probabilidade de acontecer, mas com gravíssimas consequências quando ocorrem e cuja efetivação é, geralmente, separada por longos períodos de tempo, perdem, necessariamente, a importância ou o “valor emocional” para as pessoas no presente, uma vez que os correspondentes perigos se transformam em algo vago, uma ideia abstrata, sem muita significância na realidade do dia a dia. Vejam-se como são avaliadas pelos mais jovens, atualmente, ocorrências como as das duas guerras mundiais, das pandemias da gripe espanhola ou da peste negra, dentre outros eventos semelhantes. Sequer são histórias nas quais alguns acreditam.
Todavia, quando se vivem tais acontecimentos e é bem possível ser atingido pelas suas consequências, o risco de distúrbios mentais, de fracos a intensos, de recuperáveis a irreversíveis, é uma realidade inevitável. Cada um trará uma cicatriz dolorosa deste terrível experimento global da Covid-19.
A pandemia de Covid-19, como outras do passado, obriga uma diferenciada mudança no “normal” das pessoas, sendo que tédio, solidão, preocupações excessivas, medo, pensamentos recorrentes, angústia constante, desamparo, incertezas sobre o futuro, cerceamento da liberdade, extrema ansiedade, agressão e violência entre familiares, perda de pessoas próximas, rituais funerários interrompidos, intenso tráfico de notícias nas quais não se pode confiar, crises política e financeiras, impossibilidade de ganhar os proventos, tratamentos de saúde interrompidos, possibilidade de qualquer um ser infectado pela doença, dentre outros estímulos, vão minando a mente das pessoas até se instalarem os distúrbios mentais.
De outro lado, há de se ponderar que tratar questões sobre transtornos mentais sempre foi melindroso. Em todas as épocas existiram fortes estigmas sobre os transtornos mentais que levaram à discriminação das pessoas portadoras de problemas de saúde mental, gerando, em consequência, o não cumprimento dos exigidos direitos. Barreiras e mais barreiras sempre foram impostas de forma a isolar ou impedir, efetivamente, que uma pessoa com transtorno mental pudesse reconhecer-se como cidadã e exercesse sua participação plena, seja na sociedade, no mercado de trabalho ou mesmo na sua família.
Algum desenvolvimento ocorreu mais recentemente no que diz respeito a considerar os indivíduos com transtornos mentais como membros efetivos das sociedades. Contudo, deve-se salientar, também, que, além da discriminação e da exclusão, as pessoas com transtornos mentais enfrentam enormes e múltiplas dificuldades no que diz respeito ao acesso a estruturas de apoio social e de saúde, as quais, frequentemente, entram em conflito quanto ao tratamento para as pessoas com transtornos mentais. Geralmente, no entanto, há ainda um tosco entendimento que as pessoas com transtornos mentais devam ser relegadas a planos secundários nas sociedades.
Faltam, em muito, articulações, interações mais intensas e efetivas entre os setores da saúde e os órgãos de natureza social para entenderem as pessoas com transtornos mentais. Cada um desses organismos caminha em sentido oposto ao do outro quanto aos tratamentos e ao entendimento dos indivíduos afetados com transtornos mentais. A área da saúde segue pela via estrita da medicação, enquanto a área social preconiza mais terapia e menos medicação, sem, entretanto, um pleno entrosamento.
Mas há muito ficou provado que não é apenas com medicação que se trata da pessoa com transtornos mentais. A terapia, tanto curativa quanto preventiva, faz muito bem para os acometidos de transtornos mentais. Assim, é necessário a interdisciplinaridade entre os diversos setores para ajudar no tratamento dos vários problemas que cercam as pessoas com transtornos mentais. O mundo pós-Covid-19 vai exigir árduo trabalho, primeiro, para, rapidamente, identificar todo aquele que sofre transtornos mentais e, segundo, para identificar formas racionais de tratar com mais consideração e humanidade as pessoas por eles acometidas.
O mundo terá que aprender a trabalhar, adequadamente, de fato, com o transtorno mental que muito rapidamente se espalhará. Os colapsos de todas as ordens, tanto nos sistemas de saúde quanto na sociedade em geral, serão gatilhos para o enorme contingente de pessoas vitimadas por transtornos mentais que virão, necessariamente, pós-Covid-19; como todas as evidências já demonstram.
Se os governos, até o advento da Covid-19, não davam a devida importância aos transtornos mentais ou não tinham condições de apresentar tratamentos efetivos, agora serão obrigados a (de uma hora para outra) estudar muito cuidadosamente a implantação de políticas públicas para atender o enorme contingente que começa a se formar de pessoas acometidas de transtornos mentais nos seus mais diferentes níveis de intensidade. Não haverá espaço suficiente para deixar de lado as que sofrerão com isso.
Os quadros de depressão que estão sendo formados e que se ampliarão depois da Covid-19 são de assustar, não pretendendo qualquer tipo de exagero. E, repita-se, não será por meio de medicações, simplesmente, muitas dopantes e que trazem mais malefícios, que se resolverão os problemas em um mundo com possivelmente 50% ou mais da população com algum tipo de transtorno mental que surgirá da noite para o dia.
Embora sejam recorrentes os erros que se cometem no atendimento à saúde das populações, relegando-se, em geral, investimentos de toda ordem a um plano secundário, tratando o planejamento sobre saúde como algo sem muita importância, o não planejar futuras políticas públicas de atendimento aos portadores de transtornos mentais será decisão de muita irresponsabilidade. Os sistemas colapsarão muito rapidamente, mais pela incompetência instada, pela falta de expertise adequada, do que pelos fenômenos que os gerarão. Exagero?
Pois bem, leia-se a história e ela vai comprovar que todo ensinamento não apreendido sobre a necessária atenção com a saúde pós-pandemias passadas causou bilhões de mortes evitáveis.
Assim, os governos deverão se planejar para promover continuamente a saúde mental das pessoas e para tratar com eficiência e qualidade aqueles cidadãos já acometidos de transtornos mentais para, pelo menos, a próxima década, eliminando as muitas ineficiências hoje existentes.
Não se está fazendo referência apenas ao planejamento de recursos financeiros, mas sim ao planejamento geral que envolva a logística de diferentes frentes, como, por exemplo, da qualificação adequada dos profissionais da saúde para atender as populações de pessoas com transtornos mentais, bem como o planejamento de estudos e pesquisas para atendimento eficiente de tais pacientes.
Embora não se dê a devida importância ao gradativo aumento exponencial das manifestações psicopatológicas na atualidade, já são patentes um aumento do pessimismo, uma ampliação do medo de morrer ou de ter entes próximos mortos, uma crescente ansiedade que se vê nos olhos de todos. Um medo atormentador de um futuro insuportável, um desespero irracional quase sem controle se avolumam. A simples possibilidade de eventual contágio tira qualquer um de seu normal. Imagine, entretanto, o estresse gerado nas pessoas que foram infectadas pelo novo coronavírus. Mesmo os recuperados jamais estarão em paz, pois o fantasma de uma recaída será diário por toda a vida.
Observe-se, também, que o envelhecimento do cérebro e o aumento da expectativa de vida da população já seriam fatores que contribuiriam (especialmente) para uma enorme população de pessoas com transtornos mentais. Pessimistas de plantão arriscavam dizer, antes da Covid-19, que o mundo caminhava para ser habitado por “idosos dementes”.
As doenças degenerativas ligadas ao envelhecimento sempre foram presentes, embora o envelhecimento do cérebro possa acontecer de forma normal sem quaisquer patologias.
Os idosos mentalmente sadios, certamente, caminharão pela face da Terra depois da Covid-19, mas serão poucos. Os atuais habitantes do Planeta que envelhecerão com todos os traumas ou efeitos não mitigados da Covid-19 terão algum tipo de déficit mental adquirido que aumentará progressivamente com o passar dos anos. O mundo já experimentou gerações com similar característica após catástrofes algo semelhantes à da Covid-19.
Muitos transtornos mentais (chamados vulgarmente de “demência”) são decorrentes de degenerações físicas ou de doenças que ocorrem no cérebro; muitas delas em decorrência do envelhecimento. Os transtornos mentais dos idosos afetam as habilidades intelectuais, tais como memória “presente”, linguagem, emoção, percepção da realidade, cognição, julgamento, ansiedade, dentre outros.
Dentre as mais frequentes causas de transtornos mentais estão o aumento dos focos de substância branca nos hemisférios cerebrais, principalmente nos lobos frontais e parietais; as doenças que causam redução volumétrica encefálica (tipo doença de Alzheimer); os derrames cerebrais, as atrofias frontotemporais e a formação de corpos de Lewy. Mas é a atrofia cerebral aquela determinante para os transtornos mentais dos idosos.
Todavia, experimentos globais graves e incontroláveis como a pandemia de Covid-19 provocam, também, inevitavelmente, alterações metabólicas no cérebro, as quais são na maioria das vezes irreversíveis e se agravam com o passar do tempo, independentemente dos tratamentos convencionais. Nada é mais terrível para o comprometimento da saúde da mente humana do que romper, de forma abrupta, sem prévio conhecimento ou entendimento efetivo, as rotinas e os hábitos de vida acostumados e dominados.
As mudanças impostas pela Covid-19 na forma de se viver futuramente enfrentarão consequências de difícil mitigação, pois envolverão questões psicológicas e sociais ainda não bem conhecidas. O sofrimento causado pela Covid-19 jamais será sanado, faça o que se fizer. As pessoas (as mentes) tentarão retomar aos poucos suas vidas, mas não conseguirão se refazer por completo das dores ou danos gerados.
Mas cada indivíduo possui suas forças para tratar diferentemente os problemas da vida, independentemente do grau de vulnerabilidade. Muitos conviverão em relativa “paz” com os fantasmas da Covid-19, de forma que seus transtornos mentais decorrentes sequer serão percebidos no geral. Talvez apenas em situações muito particulares essas pessoas deixarão evidenciar alguma anormalidade.
Vários outros, entretanto, serão afetados de forma mais intensa e necessitarão, sim, de tratamentos inovadores específicos para conseguir tocar suas vidas. Essas pessoas viverão episódios depressivos constantes, sendo acometidas de estresse agudo crônico, e nunca conseguirão vencer a depressão ou estresse pós-traumático, não se adaptarão com facilidade às novas dificuldades para se ajustarem às mudanças que a vida exigirá, em prolongado estado de sofrimento viverão com medo, tristes e em ansiedade constante.
É para essas vítimas do pós-pandemia de Covid-19 que os governos deverão se empenhar, rápida e precisamente, para garantir condições dignas que permitam não destruir ainda mais a saúde mental já afetada. E não será fazendo muito do mesmo que essas pessoas serão ajudadas.
Claro que não se pode esquecer daqueles muitos que, por não possuírem quaisquer meios pessoais de enfrentamento de toda carga emocional adquirida, serão sucumbidos totalmente pelos transtornos mentais. Essas pessoas (em número muito grande) terão que ser assistidas devidamente por políticas públicas humanizadas até o final de suas vidas. Esse é um dever das nações soberanas que prezam pelos seus cidadãos.
O sofrimento intenso pelo qual a humanidade está passando é muito diferente e muito mais intenso do que aqueles suportados por gerações anteriores. Nos tempos passados aquelas gerações não contavam com outro inimigo implacável. Elas não possuíam a comunicação da informação na velocidade do presente, que a cada segundo não deixa esquecer a situação difícil em que se vive.
A partir do controle da Covid-19, seja por meio da descoberta de medicamentos ou de alguma vacina, os cuidados com a saúde mental deverão ser uma constante; embora a humanidade já devesse saber que depois de grandes catástrofes as questões sobre a saúde mental requerem (sempre) atenção efetiva aos sobreviventes durante muito tempo.
A sociedade deverá, uma vez mais, entender que cada cidadão estará enfrentado a dificílima tarefa de reconstruir a própria vida como se tivesse caído de paraquedas, da noite para o dia, em uma realidade de incertezas, controversa (que é, mas não parece ser, a mesma de antes) e, por isso mesmo, muito difícil de readaptação em termos mentais. Passada a intensa pressão vivida durante os traumas da pandemia de Covid-19, as mentes não se perceberão com a mesma ótica de antes, gerando a inevitável insegurança somada ao desequilíbrio.
Respeitando a dignidade e os direitos das pessoas, deve-se começar desde já a pensar como auxiliar a todos que enfrentarão, com maior ou menor intensidade, os transtornos mentais que começam a se multiplicar.
* Professor e conselheiro consultivo efetivo do Conselho das Mil Cabeças da CNTU, conselheiro sênior do Conselho Paranaense de Cidadania Empresarial (CPCE) do Sistema Fiep, líder/fundador do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Tecnológico e Científico em Engenharia e na Indústria (GPDTCEI), líder/fundador do Grupo de Pesquisa em Lógica e Filosofia da Ciência (GPLFC) e personalidade empreendedora do Estado do Paraná pela Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (Alep)