Aos 31 anos, a engenheira química foi nomeada plant manager do único polo industrial da Jeep, na América Latina, em Pernambuco
Rosângela Ribeiro Gil
Oportunidades na Engenharia
As mulheres são apenas 6% da alta liderança das empresas que compõem a indústria automotiva e 17% quando consideradas todas as áreas do setor. Os números constam no estudo “Presença feminina no setor automotivo”, divulgado em 2018, do Automotive Business. A pesquisa foi realizada junto às empresas da indústria brasileira de veículos – montadoras e autopeças. Juliana Miranda de Arruda Coelho é mais uma mulher que vem para ajudar a mudar esse perfil. Ela é a nossa entrevistada para celebrar o Dia do Engenheiro Químico, neste 20 de setembro.
Desde o início de julho deste ano, também quando completou 31 anos de idade, a engenheira química é a nova plant manager do Polo Automotivo Jeep, em Goiana, no interior pernambucano, e a primeira mulher a comandar uma fábrica do Grupo FCA (Fiat Chrysler Automobiles) na América Latina. “Estou surpresa com a dimensão que esse anúncio tomou, mas é importante para mostrar que a mulher pode e deve superar barreiras e que isso precisa se tornar comum”, destaca. Contudo, Juliana observa que o desafio da inclusão da diversidade não é só em relação ao gênero, mas de raça também, e que é necessário quebrar paradigmas para que ninguém abandone seus sonhos.
Formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), em Olinda, Juliana volta à terra natal para assumir o cargo de gerente geral de uma fábrica considerada a maior e mais moderna da FCA no mundo, depois de ter ficado um ano e oito meses em Belo Horizonte (MG). O polo de Goiana é responsável pela produção de todos os Jeeps e atende ao mercado interno e a vários países latino-americanos. “Somos a única fábrica que produz Jeep na América Latina”, explica, citando os modelos utilitários-esportivos Renegade e Compass e a picape Fiat Toro.
Sob seu comando direto, diz, está uma equipe formada por 5.600 colaboradores e, ainda, mais quatro mil pessoas de 16 fornecedores agregados no polo. “Somos cerca de dez mil pessoas. Sou responsável da chegada dos insumos à saída do produto para o cliente final. Ou seja, o cargo me confere a responsabilidade da manufatura à área de RH, compras e tudo o mais atinente ao polo”, explica.
Juliana iniciou a profissão, em 2 de setembro de 2013, na primeira turma de trainee da FCA. Ela tinha 22 anos. Desde então, já exerceu, no grupo, os cargos de supervisora e gerente da área de pintura e gerente do setor de montagem de veículos. Mais recentemente chefiou a área de Vehicle Line Manufacturing (VLM), responsável por novos desenvolvimentos na manufatura para a América Latina na fábrica de Betim (MG).
Nessa trajetória inicial de sete anos, a plant manager destaca pessoas que foram importantes no seu desenvolvimento pessoal e profissional. “A minha grande inspiração, sem dúvida, é a minha mãe. E tem ainda a minha avó materna e o meu pai, já falecido. Dentro da FCA tem a mentora que me recebeu na Itália quando eu não conhecia nada de indústria automotiva, ela me ensinou tudo.” A entrevista foi feita por vídeo.
Números atuais do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) indicam que, no Brasil, há o registro de 19.037 engenheiros químicos, destes, 7.455 são mulheres.
Como a menina Juliana se transformou na primeira mulher a assumir o cargo de plant manager da FCA, na América Latina?
Entrei na FCA em 2 de setembro de 2013. Foi o primeiro grupo de trainee [da empresa], eu e mais 39 engenheiros, em Goiana (PE), que era ainda um descampado. Não tinha nem os galpões. Participamos desse processo de construção da fábrica. Tivemos um treinamento fora e depois retornamos para acompanhar a construção da planta.
Essa mudança da menina para a profissional vem se desenvolvendo a partir do momento em que optei pela engenharia química, estudar inglês e fazer estágio. Tive a segurança familiar em todo esse caminho, o que foi fundamental. Acredito que, nesse percurso, os passos que dei me ajudaram profissional e pessoalmente. E a Juliana que entrou aqui [na FCA], aos 23 anos, há sete anos, continua mudando no que diz respeito a avançar, aprender e desaprender também.
Iniciei a minha profissão na área de pintura da FCA, éramos uma equipe de seis pessoas. Fui lapidando a parte técnica associando com a importância das soft skills num processo de transformação de uma pessoa. É muito bom entender que o potencial de uma pessoa não é fixo, pode ser desenvolvido.
Nesse processo inicial, claro que primeiro vem a parte técnica, entender como atuar baseado nos dados, no data driven como chamamos aqui, e o nosso sistema de gestão. Entrei na empresa já sendo líder de alguns dos nossos pilares que é o WCM, o World Class Manufacturing [conjunto de princípios e técnicas de gestão]. É importante ter essa visão do todo. Coincidiu que, naquele momento, estava muito focada na parte de desenvolvimento de pessoas (PD), outro pilar [da empresa]. Participei do processo de contratação e do treinamento de colaboradores – operadores e líderes da pintura.
Vi, na prática, o desenvolvimento das pessoas, o que considero um grande aprendizado e como aquilo fazia sentido. Consegui compreender, verdadeiramente, a unidade entre a parte técnica e o desenvolvimento das pessoas.
Quando fui morar em Belo Horizonte (MG), para atuar na planta de Betim, pude conhecer a FCA de forma mais holística. Trabalhei com o suporte nos jogos de desenvolvimentos, conheci várias outras plantas, aprimorei o built for marketing [marketing com foco na construção de negócios]. Entendi como é importante aprender com os outros. E agora retorno, depois de um ano e oito meses, e sei que vou continuar me desenvolvendo com esse time que é fantástico aqui em Goiana.
Quantas mulheres estavam com você nesse primeiro grupo de trainee?
Éramos de 30% a 40%. E quando trabalhei na primeira equipe de seis pessoas da unidade de pintura, éramos em duas.
Qual o papel de sua família nesse caminho?
Minha família foi fundamental. Ela me amparou desde o início em tudo: quando decidi fazer engenharia, depois quando fiz pós-graduação em Petróleo e Gás para participar de concursos para a Petrobras. Quando a FCA anunciou a construção de sua fábrica em Pernambuco resolvi unir minha paixão por carros e estar aqui nesse polo, em Goiana. Também me apoiou quando fui morar fora do País. A família sempre me deu segurança para fazer algo a mais, e ser uma pessoa melhor a cada dia. A minha mãe Jeane Arruda é, com certeza, a minha grande inspiração; a minha avó materna Miriam Pinheiro e meu pai Marcos Antonio, já falecido, também.
E dentro da FCA, quem você destacaria nessa sua jornada?
São muitas pessoas nesse caminho, porque estou sempre querendo aprender. Quando entrei na FCA fui fazer um treinamento na Itália. Lá, tive como mentora uma mulher que me passou toda uma visão do que era realmente uma pintura na indústria automotiva. Ela foi fundamental para eu entender com rigor essa parte, e o cuidado que temos de ter em qualquer área em que se trabalhe.
Quando voltei para o Brasil tinha um grupo de italianos que me deu suporte nesse retorno, como o primeiro plant manager Giuseppe Figliuolo. Ele também veio da pintura, por isso conhecia muito da área e foi realmente um mentor para mim no que diz respeito a saber lidar com problemas. Dentro da pintura tive outros italianos que me ajudaram, como o gerente de funilaria, o Pierluigi Astorino, que está conosco desde o início mesmo.
Por que vocês foram para a Itália?
Então, quando chegamos em Goiana não tinha a planta construída ainda, então fomos para a Itália e depois para a Sérvia, para treinar na área em que atuaríamos. Tivemos o treinamento on the job, ou seja, passamos por todos os processos de produção da indústria automotiva. Fiquei três meses na Itália, e um mês na Sérvia, em 2013.
De trainee que chega, em 2013, num grande descampado na margem da BR 101, em Goiana, até assumir o cargo de plant manager, em 2020, quais os desafios enfrentados?
O desafio é o que nos move. Realmente foram sete anos com muitos desafios em cada um dos cargos ocupados. Mas o maior de todos é o de liderar e desenvolver pessoas. E isso independe do tamanho da equipe, posso ter seis ou 100 pessoas, o importante é saber que cada uma delas vai contribuir de forma única. Coloco-me na posição de cuidar e desenvolver essas pessoas.
Entendo que um bom líder precisa saber liderar a si mesmo, em primeiro lugar, para depois exercer a liderança numa equipe e saber entender o crescimento pessoal seu e de todos. Sem isso, pode acontecer que esse líder não saiba delegar, porque ele acha que quem faz melhor é ele. Esse equívoco vai obstruir um canal para quem está abaixo dele. Líder é aquele que sabe confiar e delegar. As pessoas não podem ter medo de falar. Precisamos saber ouvir cada integrante do time, mostrar que todos podem fazer o que acham que não conseguem.
Destaco a questão da liderança porque tive uma série de desafios como engenheira química numa área de seis pessoas, eventualmente na cabine de pintura, e fazer o aviamento desses carros. Lançamos três modelos em 18 meses, um recorde. Tudo isso foi feito com um grupo de colaboradores que estava no seu primeiro emprego ou sem conhecimento automotivo. Fazer uma transformação tão rápida, inclusive com a absorção de uma outra cultura gerencial, que é a italiana. Foi o que fizemos em Betim. Um processo que pode parecer rápido, mas que teve de amadurecer para fazer tudo isso em 18 meses.
Qual o segredo?
Primeiro, não ter medo de errar, depois a transparência dos atos e os objetivos. Acredito que isso foi um bom catalisador para que tudo acontecesse naqueles 18 meses. O resultado, além dos modelos fabricados, foi que todos crescemos bastante. Outro ponto que destaco é ter a humildade de aprender com as outras pessoas, porque a gente não pode achar que somos melhores do que qualquer outro polo [industrial da FCA], por exemplo. Todo dia precisamos aprender.
Você é a primeira mulher a assumir esse cargo no Grupo FCA, na América Latina. Quais os conselhos que deixa para mulheres e homens sobre essa temática?
Esse fato tomou uma proporção grande, mas precisa acontecer mais e a todo momento até se tornar natural uma mulher ocupar esse ou outro tipo de cargo. As mulheres não colocam barreiras. É uma situação que precisa sumir das nossas vidas. Somos 51% da população brasileira, mas ocupamos, exatamente, 13.6% de cargos de liderança nas 500 maiores empresas brasileiras. É um número muito pequeno diante do nosso tamanho. Temos muito o que desbravar ainda. Fico feliz por ser uma mulher que ajuda a quebrar essa barreira. E não estou falando apenas sobre o cargo de plant manager, mas precisa se expandir para qualquer cargo na hierarquia de uma empresa. Precisamos chegar lá. É uma jornada que não termina com a Juliana assumindo esse cargo na FCA. Espero que as mulheres continuem sonhando e lutando para chegar a outros cargos e posições.
Quais competências técnicas da engenharia mais lhe aproximaram da gestão? E quais as competências comportamentais imprescindíveis, a partir de seu ponto de vista, para um engenheiro se tornar gestor e líder?
Na parte técnica, a engenharia é muito plural, completa e nos dá uma visão, com certeza, diferenciada. A química me deu a possibilidade de entender um processo produtivo em detalhes, e aqui falo da pintura numa indústria automotiva. A engenharia me fez entender a importância de ser orientada por dados, saber fazer priorizações, onde melhorar ou ajustar.
No que diz respeito à liderança, leadership, pontuo as seguintes características e habilidades: a empatia, pois não posso ser um líder se não for apaixonado por pessoas, preciso ter um papel de alta responsabilidade diante de uma equipe; a cultura de ser best in class, essa inquietação positiva que me faz buscar algo novo e aprender de forma diferente; o rigor, aqui a gente utiliza essa palavra de forma positiva, mas pode ser também entendida como disciplina, sem ele a gente não consegue chegar a lugar algum; e por fim, e não menos importante, a inteligência emocional, que nos permite equilibrar e administrar as situações que gerenciamos e que se desenvolve com o tempo.
E a comunicação?
Ela é fundamental. Coloco como uma das competências top five para conseguir desenvolvimento pessoal e atingir resultados. Já ouvi dizer que poucas guerras foram perdidas por causa de munição, mas que muitas foram perdidas por causa de comunicação. A pergunta é: estamos nos comunicando bem? A comunicação é muito mais do que falar e escutar, é saber realmente se a pessoa entendeu. Entra aqui a questão da empatia.
Quais os valores da Juliana que a aproximam da FCA?
A empatia, com certeza, que é algo que tenho desenvolvido cada vez mais em mim, a disciplina para continuar no caminho que a gente quer, a determinação de não desistir e persistir até chegar no objetivo; e a proatividade, sou inquieta no que diz respeito a mudanças, flexibilidade.
Você pode nos falar das suas atividades e responsabilidades como plant manager?
O cargo é responsável por todas as operações no polo Jeep, em Goiana. Diretamente, somos uma equipe de 5.600 colaboradores; temos mais 16 fornecedores agregados, na mesma área, com mais quatro mil, ou seja, somos cerca de dez mil pessoas. Sou responsável por todas as operações realizadas nesse polo. Aí estou falando desde a chegada dos insumos, o processo de transformação, pintura, tem, ainda, a parte outbound disso, ou seja, a disposição das carrocerias até o cliente final. A responsabilidade do plant manager não é apenas com a manufatura, ou seja, a produção do carro, mas também com a parte de RH, compras etc. Todas as operações dentro do polo estão sob a minha responsabilidade.
Todos os Jeeps são produzidos no polo de Goiana e atendemos ao mercado interno e a vários países da América do Sul e Latina. A Jeep é a única fábrica que produz esse tipo de carro na América Latina.
Como tem sido o seu aperfeiçoamento profissional?
Além da pós-graduação em Petróleo e Gás, em 2013, na Unicap; fiz MBA em Gestão empresarial, em 2019 [na Fundação Getúlio Vargas – FGV Pernambuco]. Dentro da própria FCA tem um trabalho de leadership que vem dando muito aporte aos líderes, no que diz respeito a soft skills. Recebo mentorias constantes. E ainda tenho alguns planos de desenvolvimento sobre comportamento e aprofundamento financeiro. O aperfeiçoamento nunca acaba, é dinâmico.
O que gosta de fazer além de trabalhar e indique leituras.
Por mais que seja ativa, sou tranquila. Gosto muito de estar com o meu marido e minha família. A leitura é uma grande paixão, são muitos os livros, mas indico dois: “Os cinco desafios das equipes”, de Patrick Lencione, e “Pipeline da Liderança”, de Ram Charan. E, no momento, estou lendo Daniel Kahneman, “Rápido e devagar: Duas formas de pensar”.
Por último, como vê a atuação da engenharia em um mundo pós-pandemia?
A engenharia é viva, por isso está acompanhando toda essa situação com transformações e inovações. Tive a oportunidade de conferir na Unicap a criação da engenharia de complexidade. Ou seja, a área está evoluindo para acompanhar situações como essa, inclusive. Neste momento, a engenharia está sendo o alicerce para a rápida transformação digital dentro das empresas. A gente vê como a engenharia se adaptou e apresentou soluções para suportar esse momento e otimizar o novo normal. É uma atuação extremamente positiva, com a criação de novas áreas para assessorar as empresas em redimensionamentos, reduções e perdas, otimização de produtividade, em necessidade de ergonomia e segurança no ambiente de trabalho. Estamos no rumo de muitas inovações, com toda a certeza.