Apenas uma mulher em cada quatro homens consegue emprego na área de TI, segundo instituição inglesa.
Rosângela Ribeiro Gil
Oportunidades na Engenharia
De acordo com relatório da British Council, instituição pública do Reino Unido, o mundo atual está em constante mudança tecnológica e as carreiras ligadas à ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM) tendem a ganhar relevância e são vistas como empregos do futuro. São atividades que impulsionam a inovação, o bem-estar social, o crescimento e o desenvolvimento sustentável. Com o avanço da globalização – e também com a pandemia do novo coronavírus, decretada no primeiro trimestre de 2020 –, o investimento empresarial e corporativo em recursos de tecnologia da informação (TI) se agigantou. No entanto, conforme a instituição do Reino Unido, estima-se que apenas uma mulher em cada quatro homens consiga um emprego nessas áreas.
Portanto, a área de tecnologia ainda está em falta com a diversidade de gênero. O setor está atrás de outras posições e setores do mercado de trabalho quando se trata de contratar mulheres.
Apesar dos desafios para aumentar a representatividade feminina em STEM, ainda existem lacunas em diferentes níveis de educação e progressão de carreira em quase todos os países do mundo. Essas falhas podem ser observadas em todas as fases do ciclo de vida de meninas e mulheres, desde a escola primária até em altos cargos no campo científico. Um ambiente em que as forças de trabalho ainda têm um perfil masculinizado e, portanto, tem-se um caminho importante para consolidar uma maior diversidade de gênero na área.
A engenheira eletricista Silvia Coelho, formada pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e Mestra pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tem vasta atuação em pesquisa e desenvolvimento de softwares para celulares, treinada na LG-Coreia do Sul. Depois de ficar fora do mercado de trabalho por aproximadamente nove anos, ela retornou, em 2018, e sentiu na pele a falta de diversidade na área tecnológica. “Após quase 10 anos de pausa na carreira, decidi retornar ao mercado de tecnologia. Foi aí que me deparei com o gap de gênero na atividade. Hoje somos apenas 20% da força de trabalho no setor de tecnologia no Brasil”, lamenta.
No seu retorno, Coelho começou a se conectar com outras mulheres por meio de fóruns e grupos e percebeu como as profissionais estavam se sentindo acuadas e isoladas. “Num primeiro momento, me ofereci a ajudar em programação”, diz, para a sua surpresa, surgiu uma demanda muito grande querendo o mesmo tipo de apoio. “Na hora, vi que poderia contribuir de forma mais efetiva com os meus conhecimentos e também para acolher aquelas meninas e mulheres que se sentiam sem espelhamento e representatividade na área”, lembra.
Elas Programam
Em novembro de 2017, a engenheira cria o movimento “Elas Programam”, que nasceu como uma Comunidade dentro do Facebook e hoje atua também como uma consultoria especializada em desenvolver soluções para impulsionar a carreira de mulheres no mercado de tecnologia.
Reconhecida como LinkedIn Top Voice 2022, Coelho mantém a consultoria e a gestão das redes sociais da “Elas Programam” há mais de quatro anos e contabiliza milhares de mulheres que já passaram pelo projeto, entre mentorias, cursos rápidos e palestras. Sobre como chegou a TOP Voice do LinkedIn, ela dá a dica: “Não tenho copywriter nem equipe, produzo eu mesma os meus conteúdos e faço as postagens.”
Nesta entrevista, Coelho – que mora na capital paulista desde 2002, é casada e tem dois filhos – fala sobre sua inspiração de vida, que são seus pais e suas avós, a força que lhe trouxe nascer numa família bem humilde de Belém do Pará (PA). A fundadora da “Elas Programam” fala, ainda, sobre o que é inclusão de verdade, como o mercado de trabalho acaba utilizando a bandeira da diversidade apenas buscando o lucro e para atender investidores e consumidores. Ela é taxativa: “Inclusão, como o próprio nome diz, é incluir quem está fora.”
Como “nasce” a engenheira paraense Silvia Coelho?
Inicialmente, preciso dizer que ela nasce numa família muito humilde. Sou a quarta filha de sete irmãos. Meus pais não conseguiram completar nem o antigo primário. Mas foram ensinados pela vida.
Sou também neta de uma mulher analfabeta. Meus pais foram criados por mães solo. Eles abandonaram a escola muito cedo para trabalhar e cuidar do próprio sustento. Minha mãe ficou viúva aos 36 anos com 7 filhos para cuidar – sendo três do primeiro relacionamento do meu pai. Fui a primeira pessoa da família a colocar os pés em uma universidade. Sou neta, filha, sobrinha de empregadas domésticas. Eu cheguei em lugares que nenhuma mulher da minha família jamais sonhou.
Meu pai era bastante curioso. Ele tinha uma oficina que consertava rádio, televisão e outros aparelhos eletrônicos. Às vezes o pagamento pelos serviços era em forma de permuta. Consertava para o povo que aparecia lá, e recebia com outros equipamentos. Ele tinha um estoque de peças e aprendeu o ofício num curso de correspondência, aquela revista [do Instituto] Universal Brasileiro. Ou seja, ele trabalhava com tecnologia há muito tempo.
Acredito que essa minha “veia” autodidata vem dele. Na escola, eu era a melhor aluna. Meus pais sempre me disseram que o meu único caminho era estudar. Minha mãe falava sempre: “A Silvia está estudando.”
Sempre estudei em escolas públicas. Na oitava série, tinha um professor que também era da escola técnica muito famosa [em Belém do Pará]. Eu já era boa em matemática. Esse professor falou para os meus pais que iria me inscrever numa prova. Naquela época, os pais tinham muita confiança nos professores.
Fiz o preparatório, passei na escola técnica, onde cursei metalurgia e eletrotécnica. E depois ainda fiz um curso de eletrônica no Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial].
No final do curso, começou a conversa sobre fazer vestibular. O caminho foi surgindo assim.
Fui isenta da taxa de vestibular. Ou seja, só tinha uma “bala”, uma chance. Escolhi o curso que considerava uma das áreas mais difíceis, ou seja, engenharia elétrica. Sem saber o que era direito engenharia, passei na universidade [Federal do Pará] entre os 40 primeiros lugares de 120 vagas. Com 18 anos.
Como foi iniciar uma graduação predominantemente masculina, no início da década de 1990?
Preciso dizer que o meu caso foi exceção. Realmente não senti discriminação nem por parte dos professores nem dos alunos. Não vivenciei nada. Realmente, não consigo lembrar de um episódio de desmerecimento. Mas, sim, éramos em menor número. Em nenhum momento alguém chegou para mim e disse que ali não era o meu lugar. Nem na escola técnica, nem na graduação e no mestrado. A minha percepção era que estávamos de igual para igual. A minha vivência não representa a maioria das mulheres, tenho consciência disso.
Silvia, você acredita que seja um posicionamento já vindo dos seus pais?
Meus pais nunca questionaram as minhas escolhas. Nunca falavam que eu tinha que ser isso ou aquilo. Eu não era uma menina padrão, vamos dizer assim. Não gostava de vestido, de boneca. Eu era muito livre em escolher o que brincar, estudar e vestir.
Como eram vocês, as poucas mulheres no curso de engenharia?
Posso lhe dizer que eu e as outras mulheres tínhamos muita confiança em estar naquele lugar. Não conseguíamos nos ver “fora do lugar”. Pensávamos que ninguém iria nos derrubar. Não estávamos ali a passeio. Éramos muito seguras, corajosas, preparadas e confiantes, talvez esse perfil espantasse os preconceitos. Quem sabe.
Um perfil da mulher paraense?
Tudo o que estamos falando aqui é na base do empirismo, nada se baseia em estudos científicos, deixando bem evidente. Mas, sinceramente, não sei se é uma característica da mulher paraense, que é muito forte. Não sei se tem a ver com a região, mas falo que as paraenses são muito corajosas e livres, não somos de uma região valorizada, sofremos uma série de preconceitos, mas temos a nossa força.
Silvia, como surgiu a ideia de criar a Elas Programam?
Surgiu quando voltei para o mercado de trabalho, depois de ter ficado parada até 2018 para criar os meus filhos. Foi uma opção minha mesmo. Quando eles estavam maiores, decidi retornar. Neste momento, percebi o gap de gênero que tanto se fala nesse mercado, realmente não me via como minoria antes. A programação está presente na minha vida desde a graduação, depois no mestrado e no trabalho que desenvolvi em softwares para celulares.
Em sua opinião, por que esse gap?
A questão cultural afasta as meninas e as mulheres da área tecnológica. Isso me trouxe um incômodo muito grande. Comecei a participar de grupos e fóruns. E num desses me apresentei para ensinar algumas meninas. Na mesma hora, outras queriam a mesma coisa. Isso é uma dor muito grande. À época, estava fazendo um curso no Senai à noite – voltei a ser aluna depois de 25 anos! – e pensei em criar um grupo para ajudar as mulheres a se conectarem. E, aí, surgiu um nome muito óbvio: Elas Programam.
É um desafio diário, pois não se desconstrói questões históricas e culturais de uma hora para outra. São desenhos animados, filmes, brinquedos, roupas e comentários que segregam meninas de um lado, meninos de outro. Vivenciamos, nessa área, a falta de representatividade. Ainda somos em número reduzido na TI.
Existe muita insegurança sim, porque a sociedade nos desencoraja o tempo todo. Por isso, trabalhamos muito na rede de acolhimento e fortalecimento para esses primeiros passos nesse conhecimento. As mulheres acham que não são boas em matemática, mesmo tendo ótimas notas; mas estão sempre se comparando com os meninos.
Não estamos nesses lugares porque não sabemos, mas porque somos hostilizadas e bombardeadas com estímulos negativos. Por isso, considero a “Elas Programam” como um “útero” de programação para saírem mulheres nutridas e fortalecidas para enfrentar o mundo lá fora. Na nossa consultoria, somos todas mulheres, da coordenação às professoras. Cria-se, de fato e de direito, um espelhamento.
E como o mercado enxerga tudo isso?
Vivemos num mundo capitalista, e o mercado entendeu que a diversidade é um pilar de lucro, de valor. Vamos falar de diversidade e contratar mais mulheres, porque as empresas precisam dar satisfação aos investidores, consumidores que estão de olho etc. Só que o mercado não entende, ou não quer entender, a construção cultural, não entende que essas mulheres precisam ser fortalecidas e que estão começando.
Quando se abre uma vaga querem a gerente, as líderes, as supervisoras, as desenvolvedoras com mais experiência, ou seja, querem as mulheres que já estão trabalhando e com muita experiência. O mercado entende que precisa de times mais diversos, ok, mas não compreende que precisa ser feito todo um trabalho antes que signifique, de fato, inclusão, para se ter um time mais inovador para gerar mais resultado.
A criação de oportunidades na área de TI para as mulheres é um trabalho ainda a ser percorrido.
Diria que é um trabalho gigante. O mercado é imediatista, quer resultado. Quem dá resultado? Quem já tem experiência.
Não se tem um olhar para os diversos perfis dessas mulheres na sociedade: têm aquelas que estão mudando ou em transição de carreira; outras que estão conseguindo voltar a fazer faculdade agora; têm muitas, como eu mesma, que pararam a carreira para cuidar dos filhos e querem retornar. E, ainda, tem as mulheres que estudam por conta própria, o que chamamos de jornada autodidata. Todas precisam de oportunidade. O mercado precisa estar mais sensível a esse cenário.
Inclusão para além de relatórios?
Exatamente. Isso significa conscientizar e sensibilizar quem contrata. Não devemos ser apenas um número, aumentar a contratação de mulheres para exibir em relatórios. Nem promover cursos, mas depois não se contratam as mulheres. Querem apenas números? Quantas foram contratadas?
Qual a política que realmente impacta e muda esse cenário?
Impacto, para mim, é a mulher trabalhando com dinheiro no bolso e termos oportunidades de crescimento na carreira até o topo de uma corporação.
Ainda somos usadas como bandeira de inclusão, de diversidade, de marketing positivo, para constar em relatórios e estatísticas. Mas cadê o dinheiro no nosso bolso? Cadê nosso cargo e valorização?
O que é inclusão?
O nome é evidente: é incluir quem está fora, não trazer quem já está no mercado. Inclusão não é tirar uma desenvolvedora sênior que já está trabalhando, mas incluir alguém que não tem emprego. Se você quer tirar a desenvolvedora de outra empresa, isso tem outro nome, não é inclusão.
Às vezes, me falam que sou muito dura igual um tapa na cara. Dá para ser diferente nesse mundo que nos quer fora de muitos lugares? Precisamos falar com todas as letras: o mundo não é um arco-íris ou uma praia paradisíaca.
Aliás, estamos no mês de março quando temos o Dia Internacional da Mulher que precisa vir com homenagens às mulheres que vieram antes da gente e que lutaram e conquistaram; e bater na mesma tecla que ainda precisamos mudar muita coisa, ou seja, muitas ações são necessárias. Não precisamos de batom ou flores, precisamos ser respeitadas nos lugares que queremos estar.
>> Abaixo matéria do telejornal "SP - 2ª Edição", da TV Globo