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26/07/2022

As “eras” 4.0 e 5.0 e a engenharia

Pesquisa de doutorado de engenheiro na esteira das tecnologias emergentes e como a competência requerida une conhecimento, habilidade e atitude.

 

Rosângela Ribeiro Gil
Oportunidades na Engenharia

 

O engenheiro eletricista Filippo Valiante Filho, no dia 3 de agosto, se submeterá à qualificação de doutorado em Ciências junto à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). A orientação da pesquisa é do professor da mesma instituição de ensino, José Roberto Cardoso, que também é coordenador do Conselho Tecnológico do Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo (SEESP).

 

Como aponta Valiante Filho, na introdução do seu trabalho, atualmente vive-se em uma era classificada como “4.0”, termo extrapolado de “Indústria 4.0” e que “abrange indústria, agricultura, cidades e diversos outros contextos, incluindo o educacional, onde se apresentam diversos desafios”, registra ele. Tal cenário tecnológico, acrescenta o engenheiro, demanda não apenas novas competências e diversos tipos de habilidades, mas também o aprendizado contínuo. “Por outro lado, esse contexto também é guiado pela personalização e isso também deve se tornar verdade para a educação”, avalia.

 

É a partir de um mundo guiado por tecnologias da informação e comunicação cada vez mais avançadas e que se renovam a todo instante, que Valiante Filho propõe a discussão da educação da engenharia, fazendo algumas questões: “Como educar em um cenário 4.0? Como educar para um cenário 4.0? Como educar usando tecnologias 4.0? Como educar centrado no humano e, ao mesmo tempo, empregar inteligência artificial (IA)? Como conciliar a necessidade de aprendizado massivo com a necessária individualidade? Como a educação pode fazer face à velocidade da inovação? Como treinar, ou atualizar o treinamento, para novas tecnologias? Como definir e desenvolver competências adequadas? Como modelar e desenvolver habilidades técnicas (hard skills) e comportamentais (soft skills)?”

 

O doutorando também agrega o tema da sustentabilidade, lembrando que, em 2015, a Organização das Nações Unidas (ONU) propôs os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com metas globais para o ano de 2030 em 17 áreas. O quarto ODS da ONU é “Educação de qualidade — Garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”.

 

Filippo 1 400Filippo Valiante Filho se submete à qualificação de doutorado no dia 3 de agosto próximo. Crédito: Acervo pessoal.Como resgata em seu trabalho de doutorado, em 2019 foram instituídas as novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) do curso de graduação em Engenharia com uma proposta de aprendizagem baseada em competências e considerando um perfil de engenheiro capacitado não apenas tecnicamente, mas também socialmente, criativo, inovador, globalizado, que aprendeu a aprender e a aplicar seu conhecimento. “Em suma, uma proposta que ecoa os ODS e prepara engenheiros aptos a implementá-los e atuar em uma sociedade dentro desse novo contexto”, defende.

 

Nesta entrevista exclusiva à área Oportunidades na Engenharia do SEESP, Filippo Valiante Filho antecipa algumas das observações e dados de sua pesquisa de doutorado e mostra como as transformações tecnológicas forjam um novo ensino e uma nova atuação profissional na área de engenharia.

 

Filippo, bem interessante a estruturação do seu projeto de doutorado. Você faz uma progressão da educação, mais especificamente o ensino da Engenharia, a partir dos grandes marcos do progresso técnico e tecnológico, as revoluções industriais. O que você poderia nos destacar sobre esse paralelo que você fez para a sua tese? Como o ensino da engenharia acompanha, se altera a partir desses marcos e como ele próprio também vai contribuir para as mudanças?
Quanto ao passado mais distante, acabei sendo um pouco mais generalista. O consenso é que era uma educação mais unidirecional, do professor para o aluno e muito baseada em memorização. O suporte tecnológico mais marcante foi a imprensa e o advento dos livros didáticos.

 

Especialmente no século passado vimos o desenvolvimento de novos suportes tecnológicos para a educação, o que teve a engenharia como protagonista. Surgiram o rádio, a televisão, mecanismos de gravação e projeção de áudio, imagem e vídeo, calculadoras e alguns outros equipamentos que foram usados na educação. Na metade do século, surgem os computadores e especialmente a partir da década de 1980 os microcomputadores que passam a ser usados na educação.

 

Na década de 1990, surge a web e neste século vemos a explosão da web e dos softwares educacionais com seus inúmeros repositórios de conteúdo multimídia, simuladores, ambientes virtuais de aprendizagem tanto para o ensino à distância como para o presencial, ferramentas de comunicação, ferramentas de análise e visualização de dados etc. Juntamente com esse desenvolvimento e incorporação de tecnologias na educação, há uma mudança de postura para um aprendizado cada vem mais colaborativo e para que o aluno desenvolva mais autonomia de estudo e espírito investigativo.

 

A engenharia assume a dinâmica de criar novas tecnologias que depois serão usadas na educação, na formação de novos engenheiros, que criarão novas tecnologias, formando um círculo virtuoso e cada vez mais acelerado. E se no mercado a engenharia se torna cada vez interdisciplinar e feita em equipe, isso também se reflete, ou deve se refletir, no ensino de engenharia atual.

 

Desde meados do século XVIII, esses grandes marcos parametrizaram processos industriais, relações de trabalho, relação com a natureza, a vida em sociedade e a própria educação. Como você situa, de forma breve, o profissional de engenharia ao longo desses paradigmas de desenvolvimento tecnológico – do padrão mecânico (primeira revolução industrial), padrão energético (segunda revolução industrial), padrão eletrônico (terceira revolução industrial) e padrão digital (quarta revolução industrial? Ou seja, onde estavam, estão e estarão esses profissionais nesses paradigmas e no apontamento do “5.0”?
O profissional de engenharia foi protagonista das quatro primeiras revoluções industriais, formando o círculo virtuoso que comentei. Inventamos, aperfeiçoamos e aplicamos as máquinas a vapor, a geração em escala e distribuição de eletricidade, as telecomunicações, a eletrônica, os computadores. E fomos especializando a engenharia nesse processo. Aliás, perdoem os exemplos mais tendenciosos à elétrica, eletrônica e computação, pois são as minhas áreas na engenharia. Mesmo que na quarta revolução esse protagonismo possa ser um pouco mais dividido com a computação, há uma intersecção bastante grande entre as duas áreas.

 

Engenheiros e engenheiras serão protagonistas novamente da quinta revolução industrial, mas essa revolução se anuncia conjuntamente com um despertar para que a tecnologia atenda às demandas sociais e ambientais, que seja uma engenharia atenta ao desenvolvimento sustentável da forma mais ampla possível.

 

Não temos mais como desenvolver a tecnologia desconectados das demandas sociais e ambientais e sem a cooperação com outras áreas do conhecimento. A pandemia de Covid-19 nos lembrou de como a intersecção com as áreas de saúde e medicina são importantes para a humanidade. São profissionais de outras áreas usando equipamentos desenvolvidos pela engenharia, ou em conjunto com a engenharia, em prol da humanidade para desenvolver vacinas, medicamentos, diagnóstico e dar suporte à vida.

Essa interdisciplinaridade e essa conscientização da relevância da engenharia são cada vez mais necessárias.

 

Somos os profissionais que sabem resolver problemas. Precisamos resolver cada vez mais os problemas mais relevantes e urgentes para a humanidade e o planeta. Não estamos falando de limitar o alcance da engenharia, muito pelo contrário! Estamos falando de sinergia. Precisamos desenvolver novas competências nos profissionais de engenharia de hoje e, principalmente, nos de amanhã. E precisaremos de muito mais profissionais de engenharia!

 

Filippo, você fala em contexto “4.0” que demanda “não apenas novas competências e diversos tipos de habilidades, mas também o aprendizado contínuo” dos profissionais de engenharia. Você poderia falar mais sobre quais são esses tipos de competências e habilidades mais relevantes para essa mão de obra altamente técnica?
Neste século temos visto uma mudança nas demandas da sociedade e do mercado que se refletem na educação. Anteriormente transmitia-se o conhecimento, mas com o maior acesso à informação, especialmente por meio da Internet, o conhecimento está muito mais acessível. É preciso, então, saber filtrar e processar essa informação, gerando o conhecimento, mas colocá-lo em prática, “saber fazer” a partir desse conhecimento, que são as habilidades, aplicando na solução de problemas.

 

Solucionar problemas reais de engenharia envolve trabalho em equipe, e em equipes cada vez mais interdisciplinares, ou diversas. Assim, o profissional técnico precisa desenvolver além das habilidades técnicas, outras habilidades como comunicação, negociação, empreendedorismo e criatividade. Em inglês usa-se os termos hard skills e soft skills para diferenciá-las. E sabendo fazer temos a atitude que é o fazer em si, que requer cada vez mais que a solução de engenharia atenda às reais demandas das pessoas, da sociedade e que sejam sustentáveis.

 

Competência é justamente a junção de conhecimento, habilidade e atitude. A formação do profissional técnico vinha focada no “abastecimento de conhecimento”. Com esse conhecimento muito mais dinâmico e acessível a formação precisa ser mais ampla, focando em promover a autonomia da aquisição e produção de conhecimento aliadas ao aplicar esse conhecimento de forma relevante.

 

O que é a “personalização” na educação, e ela poderia também estar no próprio exercício profissional do/a engenheiro/a? Essa pergunta me traz muito o seu epígrafe trazendo uma frase do pensador suíço Jean Piaget de que “a segunda meta da educação é formar mentes que estejam em condições de criticar, verificar e não aceitar tudo que a elas se propõe”.
Cada um de nós temos nossos gostos e preferências, mas não apenas isso. Pense por alguns instantes em como, ao longo de nossas vidas escolares, entendemos melhor alguns conceitos em livros, ou em filmes e desenhos, ou a partir de experimentos e vivências, ou em palestras, ou em jogos educativos etc. E talvez nossos colegas tenham achado muito melhor de uma outra forma, diferente da nossa. Temos diferentes estilos de aprendizagem.

 

É sempre um desafio para o professor tentar atingir uma maior quantidade de estilos de aprendizagem, oferecendo uma maior quantidade de recursos que permitam atender melhor uma maior quantidade de alunos.

 

Eu vivi uma experiência marcante que ilustra bem isso como professor. Ao encerrar um assunto denso que se estendia por quase oito aulas construí um mapa mental com os alunos. No final, um aluno disse que estava maravilhoso, ele podia “jogar fora” os mais de 50 slides e anotações e ficar só com o mapa mental. No outro canto da sala um aluno falou que os textos de apoio estavam ótimos, mas o mapa mental parecia o “rascunho do mapa do inferno”. Isso ilustra bem as características individuais. Mas seria uma utopia conseguir essa “personalização individual”? Acredito que na educação 5.0 poderemos.

 

Mas continuando a resposta, essas nossas características individuais se manifestam sempre em nossa prática profissional. Algumas vezes há maior ou menor espaço para isso, mas é sempre possível observar as características pessoais no exercício profissional do engenheiro. Afinal, na origem do termo engenharia temos máquinas e dispositivos, mas temos também a criatividade e a invenção. Acho que a frase do Piaget tem muito a ver com isso e, como você menciona, com a necessidade de se educar cada pessoa e de uma forma mais abrangente.

 

Filippo gráfico 2Reprodução da qualificação de Filippo Valiante Filho.

 

Filippo, o que é a Educação, a Engenharia e Sociedade 5.0?
Talvez seja interessante iniciar comentando que as TICs influenciaram tanto nosso cotidiano que, ao invés de usarmos números inteiros, ou mesmo algarismos romanos, achamos normal usar 4.0, ou 5.0. A Alemanha propôs por volta de 2010 um planejamento estratégico de alta tecnologia para 2020, chamando-o de Indústria 4.0. O termo e principalmente sua numeração se difundiram bastante. Essa era “4.0” em que vivemos incluem manufatura aditiva, impressão 3D, computação em nuvem, internet das coisas [IoT], big data & analytics, maior disseminação e largura de banda no acesso à Internet, realidade aumentada e virtual, o advento do 5G, aplicações práticas de inteligência artificial, dentre outros. É o nosso estado da arte. É o cenário tecnológico que nos ajudou a enfrentar a pandemia da Covid-19.

 

No meio da década passada venceram os objetivos do milênio da ONU e foram lançados os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), mais abrangentes, com metas para 2030. São 17 ODS baseados em cinco eixos, ou 5 “Ps”: Pessoas, Planeta, Prosperidade, Paz e Parcerias.

 

O Japão alinhou seu planejamento tecnológico com os ODS, lançando o plano de sociedade 5.0 para o ano de 2030. Será uma sociedade de altíssima tecnologia, não apenas automatizada, mas extremamente autônoma, combinando inteligência artificial, robótica, big data & analytics, IoT e futuras redes de comunicação. Mas isso com foco no bem-estar social, no cuidado com os mais idosos, com o envelhecimento da população, no cuidado ambiental, na sustentabilidade energética e na prevenção de desastres naturais.

 

Em resumo, a novidade dessa sociedade 5.0 é a promoção de um novo salto tecnológico alinhado com o desenvolvimento sustentável e o desenvolvimento social.

 

Nesse contexto é que vem uma engenharia 5.0 e uma educação 5.0. É preciso criar essa nova tecnologia, pensando do presente até 2030 e, chegando lá, atuar dentro desse novo patamar tecnológico para preparar o próximo salto. Mas isso atento ao desenvolvimento social e ao desenvolvimento sustentável, repito. Acredito que essa maior proximidade temporal esperada entre um contexto 4.0 e um contexto 5.0 venha de dois aspectos: uma maior autonomia da tecnologia a partir da inteligência artificial e uma maior preocupação com o lado social e ambiental, pois percebeu-se que que é preciso atuar quanto a isso enquanto ainda é tempo.

 

Quem é o nosso entrevistado
Filippo Valiante Filho tem 42 anos de idade e começou seus estudos na área como técnico em eletrônica, na então Escola Técnica Federal de São Paulo (ETFSP), concluídos em 1997, mesmo ano em que começou a atuar na área de telecomunicações. A graduação em engenharia elétrica foi, em 2003, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que abrangia, à época, “tanto elétrica como eletrônica. No final da graduação mudei para a área de projeto de hardware e sistemas embarcados”, explica.

 

Valiante Filho também teve uma pequena passagem pelas áreas de propriedade industrial e intelectual. Na sequência, como informa, ingressou no mestrado em engenharia elétrica na Escola Politécnica da USP, na área de computação reconfigurável, concluído em 2008. “Comecei a lecionar no ensino superior em 2005, atuando em cursos de Ciência da Computação, Sistemas de Informação, superiores da área de TIC e, claro, engenharia, especialmente engenharia de computação”, informa.

 

Ainda nesse período, acrescenta ele, teve oportunidade de trabalhar com gestão educacional. Em 2017, retornou à Escola Politécnica da USP para fazer o doutorado, inicialmente com ambiente inteligentes, dentro desse contexto 4.0, “mas percebendo a necessidade e a oportunidade, acabei focando na área de educação em engenharia, especialmente na educação 5.0 em engenharia”.

 

O profissional, após o doutorado, pretende continuar na carreira docente e de pesquisa, “atuando inclusive na pós-graduação stricto sensu, participando da formação de alunos e professores para essa nova era 5.0”.

 

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