Para tanto, deve pesquisar e indicar processos produtivos que visem não apenas o lucro, mas o bem-estar da sociedade e do meio ambiente.
Rosângela Ribeiro Gil
Oportunidades na Engenharia
A engenharia química, ligada ao processo de transformação de matérias primas em produtos e bens de consumo à sociedade e à própria atividade econômica, é um dos ramos da engenharia que está diretamente ligada à primeira Revolução Industrial, que se inicia na transição dos séculos XVIII para o XIX na Inglaterra. Historiadores indicam que o impulsionamento da engenharia química se deu realmente nos Estados Unidos durante as duas grandes Guerras Mundiais – 1914-1918 e 1939-1945. Para a profissional Zuzilene da Silva Evangelista, no século XXI, a profissão precisa se reposicionar e se desenvolver longe de conflitos bélicos ou ligados à intolerância, “precisamos ligar esse saber à transformação do mundo, para que este transforme indignidade em dignidade, ódio em afeto e desrespeito em respeito. O desenvolvimento da área precisa estar ligado a questões mais nobres, como o bem-estar das pessoas e do planeta”.
Evangelista é a entrevistada da área Oportunidades na Engenharia do SEESP para celebrar o Dia do Engenheiro Químico, neste 20 de setembro. A profissão, segundo estatísticas dos conselhos federal e regionais de engenharia (Confea-Creas), tem 20.576 engenheiros químicos em todo o País, sendo 8.396 registrados como sexo feminino e 12.180, como masculino.
Para afastar esse passado bélico, Evangelista traz uma importante definição para a sua área de atuação profissional desde 2007, nos tempos contemporâneos: “A Engenharia Química é uma ferramenta de desenvolvimento e transformação social via processos físicos, químicos e biológicos, e isso pode ocorrer na pesquisa acadêmica, no ensino e na indústria.”
Todo esse saber, prossegue ela, vai permitir a criação de diversos elementos fundamentais para a vida humana, “estou falando dos alimentos, medicações, combustíveis, materiais de construção, água e esgoto tratados, semicondutores, tecidos, gases hospitalares, enfim, um complexo, importante e refinado ramo da engenharia diretamente ligada a sociedade”.
A relevância da área, inclusive, foi sentida pela sociedade mundial com a pandemia da Covid-19 (2020-2021), “quando o papel transformador da engenharia química saltou em nossas vidas com a produção, em larga escala, de vacinas, álcool, sabão, luvas de borracha, protetores faciais e máscaras descartáveis”.
O interesse pela engenharia química, como afirma Zuzilene da Silva Evangelista, cearense de Fortaleza, remonta à infância, pois “desde criança, o universo do petróleo, da química e o modo como as coisas se transformam me interessam. Lembro que por volta dos 9 anos [de idade], me inscrevi para o Prêmio Jovem Cientista, voltado para crianças, do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Fiquei encantada ao receber uma caixa com revistas ilustradas, coloridas, explicando, de forma simplificada, alguns processos químicos. Até hoje, lembro dessa caixa com muito carinho”.
Por isso, de início, aos 18 anos de idade, ela se inscreveu, e passou, no vestibular para o curso de química na Universidade Estadual do Ceará (UECE), “mas no segundo semestre passei para o curso de engenharia química e me formei em 2007”.
Desde a graduação, ou seja, há 15 anos, Evangelista se dedica a pesquisas acadêmicas e já atuou na docência, por oito anos, nos cursos de Engenharia de Petróleo, na Universidade Santa Cecília (Unisanta), em Santos (SP). Atualmente, está fazendo doutorado em Engenharia de Petróleo, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Marcadores enfrentados
Na graduação, foi uma aluna exemplar, fez estágios na área e formações complementares e já iniciou pesquisas para um futuro emprego na área. A dificuldade inicial em se enquadrar no mercado de trabalho como engenheira acabou sendo promissora e levando-a para a área de pesquisa. Fez pós-graduação em Engenharia Química na Universidade Federal do Rio Grande do Norte [UFRN], e enquanto cursava o mestrado, recebeu convite para desenvolver sua pesquisa na Universidade de São Paulo [USP]. À época, estudava tratamento de efluentes de indústrias de refino.
A responsabilidade e o saber na área de estudo e atuação profissional têm um significado ainda maior para Evangelista, porque o Brasil, ela expõe, “é um país de muitas diferenças e desigualdades, que podem ser vistas em indicadores que apontam déficits educacionais, econômicos e sociais que realimentam o ciclo da pobreza”. Situação, assevera a engenheira, que se perpetua de forma gritante “em uma sociedade machista, racista e que desvaloriza a educação”.
Ela acrescenta que “como mulher e negra, esse enfrentamento é constante, o que reverbera de sobremaneira na entrada e permanência e de mulheres como eu [na profissão]”.
Produção do Vale da Morte
Zuzilene da Silva Evangelista traz a consciência da história na qual está inserida para fazer análises sobre a profissão e o tempo econômico e social. Por isso, avalia, se viu, principalmente no Brasil, país periférico na hierarquia capitalista, uma “produção industrial extrema voltada para o super lucro se utilizando de uma tecnologia pouco desenvolvida com a conivência do Estado”.
Tal cenário, lembra, resultou em problemas graves ambientais e de saúde pública. Ela acredita que o caso mais emblemático dessa época desenfreada e inconsequente da produção industrial é o polo petroquímico do município de Cubatão, em São Paulo, construído a partir da década de 1940 e iniciada a operação nos anos 1950, “que rendeu cifras bilionárias à indústria e ao município, mas também o inesquecível título de poluidora de Vale da Morte”.
Na década de 1980, chegou-se ao ápice de uma situação de caos naquela região. “Dessa forma, visando não somente a manutenção da produção industrial, mas também da vida foi necessária uma mudança de valores. As pressões sociais, obrigatoriedades legais e a fiscalização governamentais forçaram o desenvolvimento tecnológico e a engenharia química deu força desenvolvendo formas de remediação ambiental mais efetiva e processos mais limpos”, observa Evangelista.
O resultado, segundo ela, não demorou a aparecer, “conseguiu-se a redução de emissão de gases, resíduos e efluentes poluentes, apontando para uma indústria mais limpa e comprometida”. Para ela, esse é um caminho sem volta: “Repensar a forma de viver estabelece novas e desafiadoras metas.”
Nesse sentido, ela destaca que o compromisso real de redução de gases de efeito estufa, demanda uma maior participação de matriz energética renovável para reduzir, ao máximo, a emissão do gás de dióxido de carbono [CO2]. Como ela observa, a engenharia química é forte e grande aliada dessas transformações sustentáveis, “seja no desenvolvimento de novos processos de geração de energia, tais como o uso de biodiesel, etanol, eletricidade e hidrogênio; o que já transforma inteiramente a complexa cadeia industrial e econômica associada”.
Compromisso social
Evangelista traz o compromisso social da profissão, pois, afirma, uma análise da produção em termos econômicos e ambientais passa também pela engenharia química. “Temos condições e conhecimentos para avaliar o mercado e os riscos, elaborar, dimensionar e executar o projeto, bem como operar a produção. Essa visão integrada da produção habilita a tomada de decisão para escolha de produtos e de processos industriais que atendam a uma agenda ambiental e social em acordo com o plano de negócios”, diz.
Isso equivale, define Evangelista, a entender que a definição da política industrial é estratégica para um país, “estamos falando em forma, onde e como vai se desenvolver o setor industrial e, consequentemente, quais os empregos que serão criados”.
Neste momento, todavia, Evangelista critica “que o atual governo brasileiro não apresenta soluções viáveis para o setor da indústria vencer o fechamento de seus empreendimentos. Não apresenta um desenho de investimentos em PD&I [Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação] que impacte a inovação de processos e produtos. É inapto em olhar para a vasta e complexa indústria nacional; e mantém pesadamente o foco no agronegócio e nas exportações. Uma verdadeira implosão da indústria, da tecnologia e da empregabilidade no setor”. Ela é taxativa: “Infelizmente, de forma geral, no Brasil, em função de sua carente atenção à indústria e tecnologia nacional, não temos acompanhado a evolução tecnológica em curso, e isso não é bom porque precisaremos de muito mais tempo para correr atrás do prejuízo.”
Interpretação de dados
Em meio a necessidade de transformações que visem a sustentabilidade em todos os complexos industriais – “porque as emergências climáticas estão aí” –, a engenharia química, assim como qualquer profissão, está dentro de um cenário pesado de automação e de compartilhamento de dados. “É cada vez maior a utilização da inteligência artificial, da robótica, da nuvem e da internet das coisas, desenvolvendo operações e processos tecnológicos mais eficazes, rápidos, seguros, autônomos e integrados”, ressalta.
Evangelista observa, contudo, que não existe a supremacia do dado por ele mesmo. Ela explica e exemplifica: “Um dado só é uma informação quando existe uma interpretação correta sobre ele. Imagine quando você abastece seu carro e sente que a gasolina não é boa. Considerando que seu carro está bom, você duvida da qualidade do combustível, lembra onde abasteceu, se pergunta sobre o armazenamento do combustível no subsolo do posto, como foi transportado até o posto e como o combustível foi produzido. Imagina agora se você, como consumidor, pudesse ter acesso, a esses dados. Como seria feita uma análise para identificar o(s) problema(s) em toda essa cadeia que levou ao problema no seu carro?”
A engenharia química, responde Zuzilene da Silva Evangelista, é a área que pode transformar esse grande volume de dados, o big data, em informação. Para tanto, deverá efetuar o pré-processamento desses dados, visando verificar qualidade e tratar apenas os dados de interesse.
Evangelista nos dá uma verdadeira aula de tratamento de dados a partir do olhar do engenheiro químico: “Necessita organizar o caminho desses dados em todo seu curso, efetuar tratamentos estatísticos para conhecer a correlação entre os dados para que a partir daí, haja uma aproximada resposta/informação sobre a qualidade do combustível utilizado. Digo aproximada porque uma análise refinada precede o conhecimento dos processos produtivos da gasolina: extração e separação do óleo bruto na plataforma de petróleo, transporte até os terminais, transporte até as refinarias, separação por destilação, conversão, tratamento, transporte para as distribuidoras, adição de etanol ou aditivos e, finalmente, o transporte aos postos de abastecimento. A essa análise de dados, incorporada aos processos envolvidos, é conhecida como big data analytics, e é feita com maestria pela engenharia química, um exemplo de TI [tecnologia da informação].”
Por operar in loco, aponta Evangelista, a engenharia química conhece “os gargalos do processo, ou seja, a fase lenta da reação, como se diz na área. Vale dizer que isso requer estudo, pesquisa e investimento”.
Processos limpos e ESG
A Conferência das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas de Paris, COP21, estabeleceu um acordo coletivo para redução de gases de efeito estufa, os quais estão relacionados diretamente com o aumento da temperatura global pós surgimento da indústria. “O Brasil, como signatário, comprometeu-se, por exemplo, em aumentar a participação das energias renováveis na matriz energética, bem como promover novos padrões de tecnologias limpas na indústria. É um campo fértil e promissor para a engenharia química”, observa Zuzilene da Silva Evangelista. Porém, ainda observa, na contramão da COP21, se vê o “desesperador aumento devastação da biodiversidade amazônica, impulsionada pelo setor pecuário, cujo governo atual favorece sem medidas. Ação como o hub de produção e exportação de hidrogênio verde no Estado do Ceará é exemplo positivo à redução do aquecimento global”.
“O hidrogênio combustível é produzido via eletrólise a partir de fontes renováveis, como a energia solar. Nesse processo químico, o hidrogênio é separado do oxigênio da molécula de água. Esse tecnologia advém de fonte renovável e não produz CO2, o mais importante gás de efeito estufa. É um importante passo que políticas públicas assumem rumo a processos que reduzem o aquecimento global”, explica e defende.
Ela observa que a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), com os seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), “estabeleceu um caminho global para o desenvolvimento sustentável e erradicação das desigualdades sociais, através da cooperação do Estado, sociedade civil e empresas”. Para ela, os 17 ODS estão intimamente ligados às mudanças nas práticas ambientais, sociais e de governança, hoje reunidas na prática ESG – acrônimo em inglês de Environmental, Social and Governance.
“A pandemia causada pelo [novo] coronavírus mostrou como alguns países pensam e agem sobre si em relação ao mundo. Países detentores de empresas produtoras de vacinas em larga escala definiram sua comercialização e distribuição. Muitos países, grande parte deles localizados no continente africano, até a data de hoje estão defasados em termos de cobertura vacinal. Um exemplo fundamentado em uma visão racista e ultrapassada, que vai na contramão da Agenda 2030. Um exemplo global a não ser repetido. O mundo empresarial e corporativo necessita responder para além do seu próprio desenvolvimento, nesse sentido virão reais mudanças nas práticas ambientais, sociais e de governança”, acredita a engenheira química Zuzilene da Silva Evangelista.
Por último, Evangelista se define: “Sou uma cearense que sonha e deseja um mundo possível de ser vivido com dignidade e afeto. Como conselho às mulheres que estão e que virão: estejamos juntas, firmes, conscientes politicamente do importante papel da Engenharia Química: transformar o mundo. Eu acredito nisso!”