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18/11/2022

Ampliar presença negra na engenharia exige estímulo e melhoria da escola pública

Engenheiro civil e empresário do setor, Luciano Machado vê na escola, que não prepara adequadamente jovens negros para a engenharia, o principal problema a ser solucionado para que a profissão torne-se mais igualitária. "Sou muito esperançoso, tenho visto a mudança e faço parte dela, mas na educação ainda há muitos desafios", afirma.  


Rita Casaro – Comunicação SEESP

 

LUCIANO MACHADO 003 1 1Luciano Machado: Carreira de sucesso na engenharia após enfrentar dificuldades financeiras e preconceito racial. Foto: MMF ProjetosEntre as muitas iniquidades da realidade socioeconômica brasileira, está o desequilíbrio do acesso da população negra à engenharia. Sem estatísticas disponíveis sobre o número de profissionais pretos e pardos registrados, a escassa presença desse grupo no mercado de trabalho e nas faculdades é facilmente observada e testemunhada: “Eu fui o único em vários lugares em que trabalhei. No curso de engenharia, quando entrei, em 1996, éramos dois negros em 100”, conta o engenheiro civil formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie Luciano Machado.

 

Hoje sócio majoritário da MMF Projetos e tendo construído uma carreira bem-sucedida, ele avalia que vários obstáculos à chegada de mais jovens negros à engenharia se assemelham aos que precisou vencer há mais de 20 anos, como a falta de estímulo ao aprendizado e de qualidade no ensino das ciências exatas na escola pública, em geral inferior às instituições privadas frequentadas por alunos ricos e brancos. “Essa estrutura, por si só, já faz com que tenha uma quantidade inferior de meninos e meninas indo estudar engenharia. Eu estudei em escola pública até chegar à universidade. Teve muita matéria que aprendi na faculdade, não no colégio”, ilustra.

 

A preocupação de Machado é justificada pelo Censo da Educação Superior de 2021, conforme a sistematização produzida pelo Insper. Entre os formandos nos cursos que constituem o chamado Stem – ciência, tecnologia, engenharia e matemática –, apenas 32% eram pretos e pardos. A participação fica bem distante dos 56% da população brasileira composta por esse estrato.

 

“Tivemos agora eleição, a educação tem que ser o mote tanto do presidente quanto dos governadores”, defende o engenheiro. Mais uma vez as estatísticas confirmam a apreensão com o tema. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam queda na participação de pretos e pardos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2020 e 2021, período da pandemia do novo coronavírus. Totalizando 58% dos alunos que compareceram às provas em 2019, estes passaram a 51,8% em 2021. Ainda, um levantamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) aponta que apenas um em cada quatro dos que realizaram o exame em 2021 são oriundos da escola pública.

 

Mais oportunidades

Para os que conseguem ultrapassar a barreira do acesso à universidade e conclusão do curso, Machado vê boas perspectivas.  “As pessoas negras vão cada vez ter mais espaço nas empresas de engenharia e em todas as empresas. As oportunidades estão aí, o mundo já enxergou, o ESG é uma realidade, tem que pensar no meio ambiente, no social e na governança, é importantíssimo, mas precisamos ter engenheiros e engenheiras negras chegando até o final do curso."  Na sua avaliação, ampliando-se esse contingente haverá chances no mercado. A própria MMF, afirma, busca aumentar o número de profissionais negros, mas nem sempre encontra o quadro ideal. A empresa emprega 15 engenheiros, dos quais cinco negros. "Do ponto de vista profissional, sou muito esperançoso, tenho visto a mudança e faço parte dela”, afirma. 

 

Para Machado, o racismo que poderia inviabilizar carreiras hoje já não é aceito com a mesma naturalidade do passado, o que torna a ascensão profissional mais viável: “Sofri o preconceito, sim, mas não foi algo que pudesse me parar. Conheço colegas que ficaram pelo caminho por se sentirem deprimidos. Mas eu acho que a tendência é melhorar cada vez mais. As empresas precisam de resultados, e a diversidade traz, temos as provas nos números." 

 

Com um currículo diversificado, que inclui 11 empresas, entre as quais seis multinacionais, à fundação da própria companhia em 2014, Machado também buscou aprimorar a formação. Após a graduação, cursou MBA em Gestão empresarial na Fundação Getúlio Vargas (FGV), especialização em Geotecnia pelo Instituto Brasileiro de Educação Continuada (Inbec) e se formou em Filosofia pela Universidade Cruzeiro do Sul, no intuito de ampliar a visão de mundo no exercício da profissão. “A gente tem que pensar nisso e sair desse lugar de única e exclusivamente fazer cálculo, tem que pensar na humanidade, a filosofia tem feito isso. “O engenheiro é muito objetivo e muito prático, mas uma das especialidades que temos aqui é recuperação de áreas de risco, e você precisa pensar nas pessoas, na comunidade, num projeto que trará qualidade de vida. A engenharia dá a melhor solução de custo-benefício, mas muitas vezes isso não atende a necessidade humana”, conclui.
 

Confira a seguir a entrevista com Luciano Machado sobre o desafio de ampliar a participação dos negros na engenharia  

Não há estatísticas raciais disponíveis sobre profissionais de engenharia, mas empiricamente nota-se que pretos e pardos, embora maioria na população brasileira, são minoria na profissão.  Qual a sua percepção desse cenário?

Eu vejo que é uma questão estrutural que existe no País hoje, principalmente na escola pública, com os cursos da área de exatas não sendo tratados de forma correta, como algo difícil e inalcançável. É um paradigma a ser quebrado: matemática e física precisam ser estudadas. E existe também [a situação em que] os alunos de escola pública do ensino fundamental e médio têm aptidão para essas disciplinas e vão disputar as vagas com os alunos das escolas particulares: aí tem outro problema que é a diferença de possibilidade de aprendizado. Essa estrutura, por si só, já faz com que se tenha uma quantidade inferior de meninos e meninas indo estudar engenharia. Eu fui o único em vários lugares em que trabalhei. No curso de engenharia, quando entrei, em 1996, eram 100 estudantes; éramos dois negros em 100. Não existe estímulo ou não se tem preparação para estudar engenharia. Eu estudei em escola pública até chegar à universidade. Teve muita matéria que aprendi na faculdade, não no colégio. Nós, a comunidade negra, somos descendentes dos construtores das pirâmides, está no nosso DNA, não podemos perder. Temos brasileiros como os Irmãos Rebouças que participaram de projetos e da construção de rodovias e ferrovias. Precisamos levar essas crianças, meninos e meninas, para os bancos escolares, não só da engenharia, mas das carreiras de exatas em geral. Não podemos ter metade da população não olhando para isso como uma possibilidade.


Isso aponta para a necessidade de uma mudança na educação pública e de ações de distribuição de renda e justiça social, tarefas complexas.
É uma tarefa que está posta, é complexa e urgente. O Brasil é um país de dimensão continental com todo tipo de engenharia a ser feita, precisamos desse profissional. O desafio existe inclusive para nós, que já somos engenheiros. Aqui na MMF, que é uma incentivadora da diversidade, temos uma quantidade grande de engenheiros e engenheiras negras. Mas o fato de que a estrutura afasta esses jovens das exatas faz com que tenhamos escassez de negros na engenharia. Você tem toda uma dificuldade até chegar no banco escolar, passa por essa etapa, se forma e depois é outro desafio conseguir uma oportunidade na área que você busca. Quando essa ou esse profissional encontra essa oportunidade, ela ou ele não perde. Esse profissional no mercado de trabalho dá muito resultado.


Qual a sua opinião sobre ações afirmativas, a exemplo da política de cotas?
Apesar de estudar numa universidade privada, eu só consegui terminar porque o Mackenzie me concedeu uma bolsa num momento em que minha família não conseguia mais pagar a faculdade. E hoje a MMF tem 30 pessoas, não fosse o Mackenzie talvez não estivéssemos contribuindo com essas pessoas. Pensando num país como o Brasil, que teve durante séculos a escravidão como sistema econômico, essa ação de reparação é importantíssima. O efeito colateral das pessoas escravizadas é todo o preconceito que temos hoje. É uma doença que precisa de remédio, e a cota é um deles, não o único. Precisa de ação na base escolar, mas precisa das cotas por um tempo ainda para que possa equilibrar um pouco mais. Sou favorável que tenha uma definição de fim para a política de cotas, mas é muito importante apoiar o jovem que não teria condições de estudar. Durante muito tempo se falou sobre o desempenho dos cotistas, e as estatísticas mostram que têm a mesma capacidade. Eu tive dificuldade, teve matéria que tive que aprender na faculdade, mas aprendi e estou aqui hoje.


Como foi a sua trajetória para ingressar na engenharia e progredir na carreira?
Começa com a história do meu pai, um nordestino que veio da Bahia para São Paulo ainda criança e aqui fez todo tipo de trabalho. Na construção civil, foi servente, pedreiro, encarregado de obra, mestre de obra, pequeno e médio empresário. Eu cresci na obra, fui a muitas com meu pai; sou o mais novo de quatro filhos que não são engenheiros (o mais velho é economista e analista de sistemas, o do meio é arquiteto e minha irmã é advogada). Meu pai “quebrou” depois que entrei na faculdade, após o plano Collor, [enfrentou] uma situação financeira muito difícil, mas ele foi o grande incentivador. Volta e meia tenho esse privilégio de ouvir meu pai dizer que sente orgulho da minha carreira. A engenharia só me trouxe coisas boas. Assim que entrei na faculdade, comecei a fazer um estágio; depois fui trabalhar em projeto na área de telefonia; fui para uma empresa que faz produtos de construção civil e me achei na área comercial; depois disso fui trabalhar em banco por dez anos. Queria voltar para a engenharia, tive uma oportunidade na Camargo Correa Cimentos, e refiz minha carreira. São 11 empresas, seis multinacionais, essa experiencia permitiu que eu pudesse me estruturar para montar a MMF junto com meus sócios. Foi bom ter essa diversificação, que foi sendo construída ao longo do tempo, muitas coisas eu planejei e outras não.

 

Houve episódios de discriminação na faculdade ou no trabalho?
O mundo mudou, tem coisas que não se aceitam mais. Se você contar uma piada racista no ambiente de trabalho, ainda que entre pessoas brancas, com certeza será questionado; isso aconteceu muito na minha carreira. Eu tive bons gestores, que me deram oportunidades, tive maus, que travaram minha carreira, e aí não exclusivamente por racismo. Uma eu acredito que sim, que era uma pessoa preconceituosa e não queria que eu evoluísse por conta da cor da minha pele. O racismo estava presente de uma forma que hoje não é aceita. Sofri o preconceito, sim, mas não foi algo que pudesse me parar. Conheço colegas que ficaram pelo caminho por se sentirem deprimidos, achar que não precisam estar nesse ambiente tão agressivo. Mas eu acho que a tendência é melhorar cada vez mais. As empresas precisam de resultados, e a diversidade traz, temos as provas nos números.

 

A perspectiva para o futuro próximo é positiva?
As pessoas negras vão cada vez ter mais espaço nas empresas de engenharia e em todas as empresas. Precisa mudar a nossa pirâmide escolar: quem tem poder aquisitivo paga as melhores escolas até chegar à faculdade e depois não paga mais; o inverso acontece com quem não tem dinheiro. Sou otimista, mas precisamos achar uma equação para que essa competição seja um pouco mais igual. Dentro da questão da educação, tem muitos desafios e não sou tão otimista assim, mas quem furar a bolha, meninos e meninas que a gente conseguir levar para os cursos de exatas, não só para as engenharias, terão espaço no mercado de trabalho. As oportunidades estão aí, o mundo já enxergou, o ESG é uma realidade: tem que pensar no meio ambiente, no social e na governança. Mas precisamos ter engenheiros e engenheiras negras chegando até o final do curso. Do ponto de vista profissional, sou muito esperançoso, tenho visto a mudança, faço parte dela. A educação, sem dúvida nenhuma, é um dos grandes problemas no Brasil [a ser enfrentado para que o País tenha] mais equidade. Tivemos agora eleição, a educação tem que ser o mote, tanto do presidente quanto dos governadores, para a mudança.

 

Há hoje um debate importante sobre a aproximação entre engenharia e ciências humanas para que o profissional tenha uma formação mais abrangente. Como foi a decisão de estudar filosofia?
Os cursos que eu fiz foram muito pensando na carreira. Já com a MMF acontecendo, quis fazer algo por prazer, fui para a filosofia. Me formei durante a pandemia e foi muito mais desafiador do que imaginei. O engenheiro é muito objetivo e muito prático, mas uma das especialidades que temos aqui [na MMF] é recuperação de áreas de risco, e você precisa pensar nas pessoas, na comunidade, num projeto que trará qualidade de vida. Só a engenharia não dá isso; dá a melhor relação econômica, solução de custo-benefício, mas muitas vezes isso não atende a necessidade humana. A filosofia se encaixa nisso. Área de risco é uma paixão na qual eu tenho trabalhado, precisa ter política pública para isso e quem está me fazendo pensar nisso é a filosofia, olhar para o outro, me colocar naquele lugar. Tem uma série de pessoas que sentem que, junto com o verão, vêm as chuvas e com elas medo e dor, deslizamentos, alagamentos, enchentes. A gente tem que pensar nisso e sair desse lugar de única e exclusivamente fazer cálculo, tem que pensar na humanidade. Tenho tido essa oportunidade de pensar nas pessoas e não só nos números, em resultados. Quando você perde uma vida, quanto vale isso? Não tem como mensurar, esse é o ponto que a filosofia tem trazido para o meu dia a dia.

 

 

 

 

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