Jurandir Fernandes*
“Ele não sabe nada e pensa que sabe tudo.
Isso aponta claramente para uma carreira política”
George Bernard Shaw
Recente relatório técnico (“Tarifa Zero nas Cidades Brasileiras”) publicado pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), sediada em Brasília, traz dados e análises sobre o estado-da-arte da tarifa zero no transporte público do país.
Conchas (SP) com 15 mil habitantes e frota de 4 ônibus, é pioneira. Implantou a tarifa zero em 1992. Cantagalo (RJ) com 19 mil habitantes foi a última. Sua frota é de 5 ônibus. Em ambos os casos estão sendo considerados os aumentos da frota após a implantação da tarifa zero.
No País são 128 cidades com algum tipo de tarifa zero, sendo que em 108 a prática é universal (gratuidade em todas as linhas, todos os dias). O estudo da NTU ilustra o perfil destas cidades: apenas 31 delas tem mais de 50 mil habitantes. Caucaia é a mais populosa (355 mil hab.) com 70 ônibus em operação. Somadas as frotas das 18 maiores cidades analisadas tem-se menos de 550 ônibus. A maioria dos demais municípios opera com frota abaixo de 10 ônibus. Não são poucos os que operam com 2 ou 3.
Cerca de 70% da adesão à tarifa zero ocorreram a partir de 2022 em decisões sem nenhum aprofundamento técnico do que poderia acontecer dali para a frente. Qual seria o novo comportamento da população quanto aos seus deslocamentos pela cidade? De quanto aumentaria a demanda? Seriam passageiros novos? Antigos pedestres, motoristas de carro ou ciclistas? Ou seriam os mesmos passageiros fazendo trajetos mais curtos? Qual seria o impacto sobre a frota existente? De quanto aumentariam os custos para reequilibrar a oferta para a nova demanda?
Colaborou para essas decisões rápidas e rasas o efeito da pandemia escancarando a inviabilidade do financiamento do transporte coletivo com base apenas na tarifa paga pelo passageiro. Ficou evidente a necessidade de se subsidiar os sistemas de transportes existentes para que continuassem operando. A forma de remuneração dos transportes públicos entrou na pauta dos debates.
Em muitos municípios, cujo transporte coletivo era servido por frotas pequenas, verificou-se que a operação sob regime de permissão ou concessão era mais cara que a contratação direta de uma frota para prestar o mesmo serviço em regime de tarifa zero. A eliminação de todo o sistema de arrecadação financeira diminuía o custo do transporte contratado. Derrubava também o custo o fato de o prestador do serviço poder utilizar uma frota sediada em outra cidade com evidente economia de escala.
A proximidade das eleições municipais aqueceu o tema tarifa zero. Sem qualquer preocupação com a sustentabilidade econômica de longo prazo ou a viabilidade técnica da proposta. Com base nas cidades com gratuidade total, surgem propostas de tarifa zero até para metrópoles com milhões de habitantes com o argumento de que basta ter “vontade política” para que tudo se viabilize.
Será fundamental verificar se a “vontade política” tem a mínima viabilidade. Sem o afogadilho dos tempos eleitorais, urge analisar cenários sobre o impacto na mobilidade urbana em regiões metropolitanas ou aglomerados urbanos. Via de regra, nestes espaços entrelaçam-se transportes coletivos sob responsabilidade municipal, estadual e federal.
É fundamental saber que os deslocamentos urbanos tem características complexas e exponenciais. Imagine dois pontos: A e B. Dois deslocamentos podem ocorrer: de A para B e de B para A. Em seguida, dobre o número de pontos colocando-os nos vértices de um quadrado. Veja que de cada ponto posso me deslocar para outros três. O número de movimentos possíveis salta para 12! Este é o caráter exponencial do problema: enquanto o número de pontos passou de 2 para 4, o número de possíveis deslocamentos saltou de 2 para 12!
Por outro lado, além de exponencial, os movimentos urbanos guardam imensa complexidade pois podem ser feitos de diversas formas. Ou seja, entre os dois pontos A e B do exemplo, temos viagens de características diferentes. Podemos nos deslocar caminhando, pedalando ou usando um meio de transporte. E mais, os diferentes modos utilizados podem ser administrados por agentes das três esferas de governo.
Muitos pensam que se a tarifa zero funciona para uma cidade com 12 ônibus deve funcionar para uma cidade com 12 mil ônibus! Acredite ou não: há quem propõe tarifa zero na cidade de São Paulo! É totalmente desconhecido o impacto de uma medida como essa num espaço conurbado com 22 milhões de habitantes como é o caso da Região Metropolitana de São Paulo, uma das 4 ou 5 mais populosas do planeta!
Para os que ainda não perceberam vamos ser mais diretos: num município pequeno a tarifa zero pode impactar o orçamento em até 3% (como tem sido constatado em alguns casos). Numa metrópole, o comprometimento poderá ser de até 15% do seu orçamento zerando toda a capacidade de investimento em infraestrutura da cidade. Simples assim.
Não é por acaso que o conceito de METRÓPOLE não aparece em nenhuma proposta sobre tarifa zero. A questão está sendo tratada tendo em vista as eleições de outubro com o argumento de que é algo já consagrado em 108 cidades brasileiras pouco ou nada se esclarecendo sobre o perfil destas cidades! Ou se desconhece ou se esconde o real tamanho do problema.
No artigo seguinte, vamos tratar destas duas questões: do tamanho e da complexidade do problema. Vamos tratar de casos de cidades isoladas e daquelas localizadas em aglomerados urbanos ou regiões metropolitanas. Por fim, o fundamental: vamos tratar da questão dos recursos financeiros, orçamentários ou não, para implantar um projeto de tarifa zero numa metrópole com diferentes atores institucionais envolvidos.
*Jurandir Fernandes foi secretário de Transportes de Campinas e secretário de Estado dos Transportes Metropolitanos (SP). Presidiu a Emdec (Campinas), a Emplasa (São Paulo), o Denatran (Brasília) e os Conselhos de Administração do Metrô-SP, CPTM e EMTU-SP. Coordena o Grupo de Transporte e Mobilidade Urbana do Sindicato dos Engenheiros de São Paulo. É membro do Conselho Internacional do Centro Paulista de Estudos da Transição Energética (Unicamp) e do Conselho da Frente Parlamentar pelos Centros Urbanos (Brasília). É vice-presidente honorário da UITP (Bruxelas).