Jurandir Fernandes*
Bastou a Hertz vender 20 mil carros elétricos nos Estados Unidos para que youtubers anunciassem o fim desta nova era! Incrível! Não se dão ao trabalho de ler além da tela! A Hertz fez a venda porque a locação de veículos elétricos estava baixa devido ao pequeno número de carregadores instalados no país. A depreciação do volumoso capital pouco utilizado impactava suas margens de lucro. O custo financeiro para mantê-los era muito alto. Houve quem entendesse, até mesmo na grande mídia, que o custo de manutenção a que a Hertz se referia era da parte mecânica e elétrica dos veículos.
Como e por que está ocorrendo esta transição das carroças aos veículos elétricos? Os motivos, as dificuldades, os interesses em jogo, as cadeias produtivas afetadas, o que se torna irrelevante e o que ganha protagonismo. Nada acontece do dia para a noite. Décadas fluem entre eventos que ocorrem em espaços diferentes. Algumas tecnologias nascem e adormecem por longos períodos e ressurgem com muito mais força. É o caso dos motores elétricos que apesar de terem sido criados antes dos motores a combustão interna foram estes que reinaram durante o século XX.
No início dos anos 1900 ocorreram mudanças tecnológicas nos transportes urbanos de intensidade semelhante às que estão ocorrendo hoje. Os veículos com motores a gasolina davam início ao fim das carroças e carruagens e de toda uma imensa indústria que girava em torno da tração animal. Hoje a eletrificação ao lado da eletrônica embarcada estão em vias de dar fim aos motores a combustão.
Os desafios para a transição elétrica serão imensos, como foram no passado a passagem do cavalo ao motor a gasolina. Os que devem sair de cena lutarão para se ressarcir ao máximo do que capitalizaram ao longo de décadas. Estamos falando de duas das maiores indústrias da economia mundial: a do petróleo voltada aos combustíveis e a automotiva vinculada aos motores a combustão.
No início do século XX as ruas das grandes cidades eram congestionadas, poluídas e fétidas. O trânsito de Nova York, por exemplo, com cerca de 130 mil cavalos, se deslocava lentamente e de forma caótica, formando longas filas de bondes, carruagens e carroças. O esterco acumulava-se nas ruas criando um ambiente insalubre reforçado pela lentidão do descarte dos 55 animais mortos por dia (média no ano de 1890). A situação era cruel e alarmante.
Este quadro dantesco impulsionou a transição para veículos motorizados que prometiam revolucionar a mobilidade urbana. Mais velozes, sem esterco, sem cavalos e carcaças nas ruas teríamos menos congestionamentos, menos poluição e menos insalubridade! Nasce assim a indústria automobilística e com ela a utopia de um mundo novo.
O motor a explosão também teve adversários. Questionava-se sua complexidade, viabilidade e eficácia. Era visto como pouco confiável e propenso a falhas mecânicas. Duvidava-se se poderia suportar o uso diário intenso. Como manter e alimentar uma coisa dessa! Onde comprar combustível? Qual a autonomia dos veículos? Qual o risco de explosão ou incêndio de um tanque de combustível? Qual o risco para a cidade e sua população?
Os primeiros veículos a combustão eram extremamente caros. Inacessíveis. O ceticismo era generalizado. Passados 100 anos, cá estamos nós com mudanças pela frente. Agora a escala é planetária. Envolve não só a tração veicular, mas também, e principalmente, a origem da energia que utilizamos. Se é de origem fóssil ou é renovável. Se no seu ciclo de produção tem emissão líquida zero de CO2 ou não.
Voltemos à questão da mobilidade urbana. A questão é: como ocorreu com os cavalos, o motor a explosão tem seus dias contados no transporte de passageiros e de cargas? Diria que sim e destacaria duas razões: a imperativa transição energética e a maior qualidade do motor elétrico frente ao motor a combustão.
Na transição energética o Brasil possui forte vantagem: uma matriz elétrica com cerca de 90% de fontes renováveis. Além das hidrelétricas, a capacidade instalada de energia solar (fotovoltaica) e eólica cresce exponencialmente. Nossa capacidade bioenergética é invejável e no caso do álcool, além de sermos o segundo produtor mundial, temos etanol automotivo em todos os postos de combustíveis do território nacional.
O que tem a ver o etanol com a eletrificação veicular? Muito. De imediato, ele entra na rota dos veículos híbridos com motor a combustão flex. Em uma rota futura poderá ser fonte para a produção do hidrogênio, além do produzido por eletrólise da água, a ser utilizado em células a combustível.
Se já não bastassem as razões climáticas, pense na cidade com menor poluição química e sonora! Lembra-se como era bom caminhar pela cidade sem o barulho das motos?
Vamos à segunda razão: a superior qualidade dos motores elétricos. Eles têm muito menos peças móveis, o que reduz o custo de manutenção. Com menos peças móveis, sofrem menor desgaste ao longo do tempo. De outro lado, são muito mais eficientes que os motores a explosão. De cada 100 unidades de energia que recebem, transferem cerca de 90% como tração mecânica para o veículo. No motor a explosão este número é menor que 40%.
Apesar de todas estas vantagens, o fundamental para a retomada dos veículos elétricos foi a grande evolução tecnológica das baterias e a queda de 90% de seu preço entre 2010 e 2020. Segundo a Bloomberg, esta variação foi de US$ 1.100 por kWh para US$ 137 por kWh.
Há 100 anos atrás, duvidava-se dos veículos a gasolina porque eram caros e perigosos. Usavam combustível altamente inflamável, difícil de encontra e armazenar. Não havia mecânicos qualificados para fazer a manutenção deles. Os bancos não tinham linhas de crédito para eles e muito menos havia seguradoras para algo desconhecido e aparentemente de alto risco. Eram raras as indústrias voltadas para a tração animal que servissem de base para a indústria automotiva nascente. Quase tudo teve que começar do zero!! O primeiro automóvel construído em massa (Oldsmobille) nos Estados Unidos surge em 1901. A Ford surgiu em 1903 e doze anos depois produziu o milionésimo carro Ford Modelo T.
O carro elétrico já ressurge amparado pelas antigas indústrias e dá margem ao surgimento de outras. O Brasil tem chance de pegar esta grande onda com tecnologia totalmente própria. A engenharia nacional está preparada para a eletrificação da frota brasileira, principalmente em se tratando de ônibus. Temos uma das melhores e maiores produtoras de motores elétricos do mundo, temos encarroçadoras de primeira linha e um setor de autopeças pronto para o desafio.
*Jurandir Fernandes foi secretário de Transportes de Campinas e secretário de Estado dos Transportes Metropolitanos (SP). Presidiu a Emdec (Campinas), a Emplasa (São Paulo), o Denatran (Brasília) e os Conselhos de Administração do Metrô-SP, CPTM e EMTU-SP. Coordena o Grupo de Transporte e Mobilidade Urbana do Sindicato dos Engenheiros de São Paulo. É membro do Conselho Internacional do Centro Paulista de Estudos da Transição Energética (Unicamp) e do Conselho da Frente Parlamentar pelos Centros Urbanos (Brasília). É vice-presidente honorário da UITP (Bruxelas).