Fundacentro
Em 2022, o Brasil teve o registro de 16,4 mil óbitos por suicídio no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). O País assumiu o compromisso de reduzir em um terço as ocorrências até 2030, conforme os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU). No mundo, 700 mil pessoas morrem por ano pela mesma causa, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Os dados foram apresentados no primeiro dia do Seminário Nacional de Prevenção ao Suicídio e Trabalho, realizado pela Fundacentro, em São Paulo/SP.
A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), que contabiliza quase 100 mil suicídios por ano nas Américas, tem trabalhado o lema “Mudar a Narrativa” para o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio 2024-2026. A ideia é substituir a narrativa estigmatizante e fomentar cultura de apoio e prevenção, fazendo com que indivíduos, comunidades, organizações e governos realizem discussões sobre o tema.
Esse é o caminho percorrido pelo evento da Fundacentro. A publicação “Viver a vida - Guia de implementação para a prevenção do suicídio nos países”, da Opas, foi referendada assim como materiais produzidos pelo Ministério da Saúde, como VIVA: Instrutivo – Notificação de Violência Interpessoal e Autoprovocada.
Discussão necessária
O protagonismo das discussões foi levantado na mesa de abertura. O superintendente regional do Trabalho e Emprego de São Paulo, Marcus Mello, destaca a importância de se discutir o adoecimento psicossocial e de se perceber que, muitas vezes, o suicídio está ligado também a questões profissionais.
A presidente substituta da Fundacentro, Vânia Gaebler, cita o Movimento Nenhum Servidor a Menos, dos trabalhadores do Ministério Público do Estado de São Paulo (MSP), que teve casos de suicídio. “Demonstra a necessidade de estudar e discutir o assunto para evitar que a gente perca trabalhadores, pessoas em decorrência do trabalho”, afirma.
Já a diretora do Departamento de Análise Epidemiológica e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis, do Ministério da Saúde, Letícia Almeida, aponta que a prevenção ao suicídio requer olhar para determinantes relacionados à saúde mental, aspectos sociais e grupos minoritários, que são os que mais sofrem. No campo do trabalho, policiais e profissionais de saúde são os mais atingidos, mas ainda faltam dados nacionais.
A representante do Conselho Nacional de Saúde, Fernanda Magano, mostra a necessidade de se criar mecanismos de prevenção e posvenção. “O mundo do trabalho se sobrepõe a vários fatores da nossa vida e é fonte de sofrimento”, explica. O ideal seria que todos tivessem um trabalho identitário, no qual há a sensação de realização, reconhecimento e boa remuneração.
Para a secretária Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Symmy Larrat, trata-se de um debate preventivo e de cuidado. Também é um debate sobre território, gênero e sexualidade. “As pautas não devem ser dissonantes, porque o mundo do trabalho tem a ver com as relações cotidianas”, conclui.
“A questão do suicídio é um fenômeno de vários fatores. É fundamental identificá-los e pensar numa perspectiva de prevenção”, completa a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT), Cynthia Lopes. Em sua avaliação, é preciso descobrir onde está o problema que afeta o conjunto de profissionais e olhar para o trabalhador.
Diretrizes para prevenção ao suicídio
A mesa “Diretrizes de uma política pública de prevenção ao suicídio” contou com a coordenação do assessor da Presidência da Fundacentro, Marcelo Kimati. “Não se trata de uma análise simples, há mudanças complexas no mundo do trabalho, com debate importante de saúde mental e crescimento da pauta, dentro de um cenário epidemiológico que alguns grupos se tornam mais vulneráveis às questões de suicídio”, explica o assessor.
A Fundacentro tem o “Programa Saúde Mental dos Trabalhadores e Trabalhadoras” e Grupos de Trabalho, interno e interinstitucional, voltado para a questão. Uma das ideias é criar diretrizes para uma política na área. A realização do Seminário Nacional de Prevenção ao Suicídio e Trabalho é fruto dessas ações.
Para discutir as diretrizes de uma política pública voltada para a prevenção de suicídio, participaram da mesa Fernanda Magano, Letícia Almeida, Márcia Oliveira, assessora do Departamento de Saúde Mental, Álcool e Drogas, do Ministério da Saúde, e Deivisson Santos, docente do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e conselheiro da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
A Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio foi instituída pela Lei n° 13.819, de 26 de abril de 2019. Os objetivos são promover a saúde mental; prevenir a violência autoprovocada; pesquisar e conhecer os fatores determinantes e condicionantes da saúde mental; promover a articulação intersetorial para a prevenção do suicídio, envolvendo entidades de saúde, educação, comunicação, imprensa, polícia, entre outras; garantir o acesso à atenção psicossocial das pessoas com histórico de ideação suicida, automutilações e tentativas de suicídio. Outra ação importante é Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências.
Para Magano, é necessária a triangulação nos poderes, entre instituições e ministérios, para ações mais assertivas, e que trabalhadores sejam ouvidos e cuidados. Como medidas de prevenção, ela defende: tratamento adequado dos transtornos mentais; restrição de acesso a métodos potencialmente perigosos; capacitação da sociedade para identificação e abordagem a pessoas em risco; e fortalecimento de fatores de proteção, como vínculos sociais, habilidades de resolução de problemas, expressão emocional.
Letícia Almeida também ressalta a importância de levar aos trabalhadores o debate sobre prevenção ao suicídio. A notificação compulsória de violências autoprovocada é uma obrigação legal. No caso de tentativa de suicídio, a comunicação deve ser feita até 24 horas após o atendimento.
A diretora aponta que houve uma evolução das taxas de suicídio no Brasil, de 6.782 óbitos em 2000 para 16.468 em 2022. Os três estados com maiores taxas de suicídio foram Rio Grande do Sul – 12,8 (número de óbitos por 100 mil mortes), Mato Grosso do Sul – 12,6 e Santa Catarina – 12,3. As menores ficaram com Rio de Janeiro – 4,7, Pernambuco – 5,2 e Espírito Santo – 5,8.
Entre adolescentes e jovens, o aumento de suicídios foi acentuado. As taxas são maiores entre idosos – 17,3 – para pessoas com mais de 70 anos. Em seguida estão as de 40 a 49 anos – 16,6 – e de 30 a 39 anos – 16,3. A taxa de suicídio é maior entre os homens – 12,6 – do que entre as mulheres – 3,4. Também há uma maior taxa entre indígenas – 12,6 – em relação aos não-indígenas – 8,5.
Houve aumento das notificações de violência autoprovocada após a pandemia, com o registro de 271.064 casos em 2022. Desse total, um terço são de lesões autoprovocadas. Há o predomínio de notificações no sexo feminino – 71%. Também são maiores os registros entre jovens de 15 a 29 anos, que somam 51,4% dos casos.
Neste ano, o Ministério da Saúde publicou o Boletim Epidemiológico 4 – Panorama dos suicídios e lesões autoprovocadas no Brasil de 2010 a 2021. Um novo estudo – Pesquisa Nacional de Saúde Mental no Brasil – prevê questões sobre categorias profissionais. Outras ações foram apresentadas por Márcia Oliveira, que destacou questões de assédios moral e sexual, violências cotidianas no trabalho, importunações morais que levam ao sofrimento e a ocorrência de suicídios entre alunos de pós-graduação.
Por fim, Deivisson Santos avalia que existe uma tendência de aumento de suicídios no Sul Global, enquanto países do Norte apresentam redução, já que possuem políticas públicas há mais tempo. Os países nórdicos, que tiveram mais sucesso, investem em políticas de proteção social. Ele cita o caso da Dinamarca, em que as pessoas trabalham até as 15h e depois vão ao parque, ficam com os filhos.
“O suicídio é um drama pessoal que transcorre num palco de relações interpessoais, em um ambiente social, político e cultural”, define Santos, que é psiquiatra. Em relação ao trabalho, há uma maior sobrecarga em países como o Brasil. Muitas vezes busca-se resolver a questão, olhando apenas para aspectos diagnósticos com uma ação de saúde curativa e medicalizante, que culpabiliza o trabalhador pelo que está sofrendo. “Quando você fragmenta o processo de trabalho, não vê o sentido do seu trabalho. A alienação é conceito mestre para entendermos o sofrimento do trabalhador”, alerta.
O professor da UFPR defende a elaboração de políticas públicas que reconstituam os vínculos das pessoas. Os trabalhadores da Atenção Primária devem estar preparados para o acolhimento. Uma política de proteção social ampla que envolva a promoção de vida saudável da população também é fundamental.
Assista à abertura e às apresentações da mesa “Diretrizes de uma política pública de prevenção ao suicídio”, realizadas durante a manhã de 30 de setembro, no Seminário Nacional de Prevenção ao Suicídio e Trabalho, no canal da Fundacentro no YouTube.
Prevenção e posvenção
À tarde, a mesa “Experiências de prevenção e posvenção no campo da saúde do trabalhador” teve a coordenação da tecnologista da Fundacentro, Daniela Sanches, e as apresentações de Andreia Garbin, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), e de Hugo Almeida, professor do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Enfermagem da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Segundo Daniela, no período de pandemia, profissionais trabalharam em condições adversas, com intensificação do trabalho e dificuldade em ter recursos adequados. Além disso, neste cenário de perda de direitos, o suicídio ganha relevância. “Nossa sociedade nos coloca a lente de produtividade, excelência. O mal-estar, a tristeza, a falta de energia são tratadas como algo individual”, afirma. É preciso olhar para a organização do trabalho e construir espaços democráticos para falas e críticas.
Andreia Garbin aponta que a sociedade brasileira passa a falar mais sobre suicídio e trabalho a partir da campanha do setembro amarelo, em 2015. Mas na década de 1990 publicações de Christophe Dejours e de Margarida Barreto mostram casos de suicídios e tentativas que ocorreram no local de trabalho, na França e no Brasil, respectivamente.
Para a professora da USP, nos primeiros estudos falava-se de categorias com mais tentativas e suicídios consumados, no entanto, a intensificação do trabalho, a fragmentação das relações, situações de assédio e humilhação caracterizam cenário para reconhecer ocorrências relacionadas ao trabalho. Ela ainda apresentou caso de enfermeira que se matou no trabalho durante a pandemia, mostrando as ações de acolhimento, escuta e acompanhamento feitas durante a posvenção com os trabalhadores do local.
O professor da UFRJ também apresentou estudo com petroleiros a partir de casos de suicídio. Houve a constituição de um GT Suicídio e Trabalho, com participação de sindicatos, da Fundacentro, da Fiocruz e dos Cerests Rio e Santos. Ocorreram entrevistas semiestruturadas para conhecer o trabalho a partir da experiência dos mergulhadores.
A pandemia gerou mudança na escala de trabalho, antes ficavam 14 dias embarcados e 14 em casa, para 28 dias, com monitoramento de sete dias em casa e isolamento de sete dias em hotel. Também houve diminuição dos postos de trabalho com aumento da sobrecarga e intensificação. Os trabalhadores relataram maior competitividade, medo de perder o emprego e de se contaminar por Covid-19.
O GT recomendou intervenções na organização do trabalho, como reavaliação das escalas junto aos sindicatos e planejamento com antecedência; atendimento dos trabalhadores isolados em hotel; ações de prevenção e discussão da saúde mental relacionada ao trabalho.
Trabalho e sofrimento mental
A última mesa do primeiro dia do Seminário tratou de trabalho, sofrimento mental e vulnerabilização, sob a coordenação da tecnologista da Fundacentro, Solange Schaffer. Participaram como palestrantes Carlos Alberto de Assis, da Associação Brasileira de Prevenção do Suicídio (Abeps), e Paulo Navasconi, professor do Departamento de Psicologia Clínica da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
Assis critica a culpabilização do indivíduo e a negação da centralidade do trabalho, o foco das empresas costuma ser comportamental ou motivacional, mas isso não adianta sem mudar a cultura e o meio ambiente. “As organizações muitas vezes procuram isentar-se de sua responsabilidade, imputando, geralmente, o gesto suicidário a um ‘temperamento’ depressivo ou psicopatológico próprio ao suicida, ou ainda a conflitos afetivos que o mesmo desenvolvia na esfera privada”, afirma.
Em sua avaliação, é preciso compreender a determinação do trabalho sobre a saúde mental para construir ações políticas para a mudança dessa realidade. O representante da Abeps ainda falou sobre a Agenda ESG (environmental, social and Governance), que corresponde às práticas ambientais, sociais e de governança de uma organização. Os critérios ESG são relacionados aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Por fim, o professor da Unesp Paulo Navasconi destaca a importância de se pensar o sofrimento, que também é elemento político, a partir de marcadores sociais de diferença, como classe, gênero e raça. É preciso refletir sobre a saúde mental nos processos de vulnerabilização.
Para Navasconi, há uma lógica racial muito bem instituída, cujo modo operante é o capitalismo. É preciso ser um corpo máquina. Mas o que acontece com quem está
desempregado, em condições informais de trabalho? Pode ocorrer um processo de desumanização. Vive-se um Projeto de Estado em que existem desigualdades e processos de precarização do trabalho e da vida. Nesse cenário, a saúde mental é muito mais do que ausência de doença, é a capacidade de tomar decisões e se organizar, com condições dignas de trabalho.
O pesquisador defende a ressignificação de programas de prevenção e de promoção e das políticas públicas. O trabalho pode produzir perspectiva positiva e libertar, mas pode aprisionar. Em contextos precarizados, em que a flexibilização é colocada como uma das saídas, ocorrem mais contextos irregulares. Os laços são rompidos, e a solidão no trabalho domina. Sofrimentos criativos vão se tornando patogênicos.
“O que impera são modos de produção de não acesso, não cuidado e não pertencimento. Não é essa democracia que a gente deseja”, conclui Paulo Navasconi.
Assista às mesas “Experiências de prevenção e posvenção no campo da saúde do trabalhador” e “Trabalho, sofrimento mental e vulnerabilização”, realizadas durante a tarde de 30 de setembro, no Seminário Nacional de Prevenção ao Suicídio e Trabalho, no canal da Fundacentro no YouTube.