A irrupção da maior crise de dimensão internacional no final de 2008 desde a Grande Depressão de 1929 interrompeu o início do mais longo ciclo de expansão dos investimentos no Brasil após a década de 1970. Em 2009, por exemplo, os investimentos como proporção do Produto Interno Bruto (PIB) foram reduzidos em 9,9%, após o ritmo de crescimento quase três vezes superior à expansão da produção nacional iniciada em 2004. Se diante da grave crise internacional de 2008, o Brasil tivesse optado por repetir o receituário governamental similar ao adotado durante a crise financeira de 1998 (de menor proporção), o comportamento econômico e social nacional teria sido bem diverso daquele que realmente foi constatado em 2009.
Ao invés da situação de relativa estagnação da produção nacional no ano passado (variação negativa de 0,2% em relação a 2008), o Brasil teria passado, provavelmente, por uma profunda recessão econômica, ao redor dos -5%. Isso porque em 1998, o país encontrava-se iludido pela perspectiva da ALCA (Acordo de Livre Comércio das Américas), o que implicava, entre outras coisas, a maior concentração das exportações nacionais nos países ricos. Ou seja, o Brasil seguiria na mesma direção do México que em 2009 registrou mais de 80% do seu comércio externo com os Estados Unidos.
Com a crise de 2008, cujo epicentro se deu nos países ricos, a forte queda nas exportações mexicanas para os Estados Unidos propulsionou ainda maior recessão econômica, próxima de 7% no ano passado. O Brasil, contudo, mudou a sua trajetória externa desde 2003, o que permitiu diversificar parceiros comerciais e reduzir o peso relativo dos países ricos nas exportações, que caiu de mais de 2/3 para menos de 50%, atualmente.
Mesmo com a diminuição das exportações de bens e serviços em 10,3% em 2009 enquanto componente da demanda agregada, observa-se que o seu impacto terminou sendo relativamente mitigado pelo avanço do comércio exterior com nações do âmbito sul-sul. Da mesma forma, nota-se que na crise financeira de 1998, a concepção governamental prevalecente era a de que o Estado se constituía na parte principal dos problemas da época.
Por isso, as opções de política econômica e social entre 1998 e 1999 se concentraram adicionalmente na asfixia do setor público, por meio da contenção de gastos de custeio e investimento, bem como da elevação da carga tributária em relação ao PIB (em 4,5%) como forma de financiar o pagamento adicional dos encargos do endividamento público originados pelo brutal aumento da taxa de juros em 136,8% (de 19% para 45%).
Nessas circunstâncias, as empresas e bancos públicos foram ainda mais estranguladas, com o corte de 16,6 mil funcionários públicos federais, enquanto a política social seguiu contrária a sua ação compensatória sobre os efeitos da crise. O tranco econômico e a amordaça do Estado resultaram em elevação do desemprego e da taxa de pobreza, que passou de 49,7%, em 1998, para 53,5% dos brasileiros (aumento de 7,6%).
Na grave crise internacional de 2008, a concepção governamental predominante foi outra. Ou seja, o Estado seria parte fundamental da solução dos problemas. Em função disso, os procedimentos adotados foram completamente diferentes dos perseguidos há 10 anos.
Coube ao Estado atuar estratégica e ativamente na adoção de medidas que permitissem reduzir a carga tributária em 1,6% (de 34,8% do PIB, em 2008, para 34,3%, em 2009), sem contração das despesas públicas fundamentais diante da diminuição dos gastos financeiros possibilitada pela prévia queda na taxa de juros em 36,4% (de 13,7%, em 2008, para 8,75%, em 2009).
Ademais, coube o imediato reforço das empresas e bancos públicos, com a garantia de recursos adicionais para ampliação do orçamento do BNDES, bem como do reposicionamento da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil que atuaram de forma anticíclica diante do encolhimento do crédito nos bancos privados. Com isso, o conjunto das operações de crédito do sistema financeiro nacional não foi reduzido em relação ao PIB, conforme a queda de 4,3% verificada em 1999 (de 28,1% do PIB, em 1998, para 26,8%, em 1999).
Também as empresas públicas como Eletrobras e Petrobras deram sequência ao planejamento de maior prazo reavivado pelo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) que desde 2007 focou na ampliação dos investimentos, sobretudo, em energia e infraestrutura nacional e, mais recentemente, em habitação popular.
Para além do importante papel das decisões governamentais inovadoras na economia, convém destacar a ousadia nas políticas de renda adotas na última crise internacional. De um lado, a elevação do valor real do salário mínimo em 5,8% no ano de 2009, contra apenas 0,7% em 1999. Por consequência, o impacto favorável para os beneficiários das políticas sociais (aposentados e pensionistas da Previdência Social), bem como para os brasileiros que tiveram ampliados o valor do benefício e a quantidade de atendidos pelo programa Bolsa Família e pelos receptores do Seguro Desemprego ao longo de 2009.
Por força disso, as famílias agregaram, em média, 2,8 mil reais em 2009 (acréscimo no consumo das famílias em 160 bilhões de reais). Idêntico procedimento anticíclico não se verificou por parte do governo há dez anos. De outro lado, percebe-se que a orientação governamental em defesa da produção doméstica correspondeu ao maior estímulo à geração de empregos formais (saldo líquido de quase um milhão de novas vagas em 2009, contra redução de 190 mil postos de trabalho em 1999), bem como a contenção mais rápida do próprio desemprego.
Diante disso, o Brasil entrou mais tarde e desvencilhou-se mais cedo da contaminação da crise internacional. A pobreza encolheu, uma vez que mais de 500 mil brasileiros abandonaram essa situação nas regiões metropolitanas, enquanto a desigualdade de renda do trabalho caiu 0,4%. Até a inflação não subiu, mesmo com a desvalorização cambial ocorrida em função da crise, pois terminou regredindo de 5,9%, em 2008, para 4,3%, em 2009. Na época da crise financeira de 1998 e 1999, a taxa de inflação subiu de 1,7% para 8,9%.
Sem a crise de 2008, o Brasil possivelmente não precisaria ter tomado medidas ousadas, que terminaram por solapar a lógica do tratamento da recessão econômica por meio das receitas neoliberais. É por isso que 2009 se tornou o ano da virada que consolida outro caminho de desenvolvimento que não seja a reprodução do passado.
* por Marcio Pochmann, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Artigo publicado no site da Rede Brasil Atual