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22/04/2015

Opinião - PL 4.330/04: maldade explícita e ilusão

1. A maldade explícita

Os defensores do PL 4.330/04 tentam vender a ideia de que estão fazendo um bem para os trabalhadores, apresentando a medida, inclusive, como necessária para ajudá-los, conforme relevado na exposição de motivos do projeto:

O mundo assistiu, nos últimos 20 anos, a uma verdadeira revolução na organização da produção. Como conseqüência, observamos também profundas reformulações na organização do trabalho. Novas formas de contratação foram adotadas para atender à nova empresa.

Nesse contexto, a terceirização é uma das técnicas de administração do trabalho que têm maior crescimento, tendo em vista a necessidade que a empresa moderna tem de concentrar-se em seu negócio principal e na melhoria da qualidade do produto ou da prestação de serviço.
No Brasil, a legislação foi verdadeiramente atropelada pela realidade. Ao tentar, de maneira míope, proteger os trabalhadores simplesmente ignorando a terceirização, conseguiu apenas deixar mais vulneráveis os brasileiros que trabalham sob essa modalidade de contratação. – grifou-se

Trata-se, no entanto, de argumentos carregados de perversidade, sobretudo quando tentam justificar e minimizar todas as maldades já cometidas pela terceirização, ao mesmo tempo em que consideram o aprofundamento da maldade como algo bom para as vítimas. Não significa nem mesmo de uma banalização do mal. Representa, isto sim, a convicção em torno da legitimidade da perversidade, configurando-se, no sentido do disfarce, uma afronta à inteligência humana.

De fato, a terceirização ao longo de 22 (vinte e dois) anos em que se instituiu no cenário das relações de trabalho no Brasil, desde quando foi incentivada pela Súmula 331, do TST, em 1993, serviu para o aumento vertiginoso da precarização das condições de trabalho. É impossível ir à Justiça do Trabalho e não se deparar, nas milhares audiências que ocorrem a cada dia, com ações nas quais trabalhadores terceirizados buscam direitos de verbas rescisórias, que deixaram de ser pagas por empresas terceirizadas, que sumiram.

Esses trabalhadores, além disso, que já passaram, durante o vínculo de emprego, por um processo de segregação, de discriminação, de fragilização, quando não de invisibilidade, ainda se veem obrigados a suportar anos de lide processual para receberem apenas parte de seus direitos.

E o projeto vem preconizar que terceirização “é técnica moderna de administração do trabalho”! Mas, de fato, representa uma estratégia de destruição da classe trabalhadora, de inviabilização do antagonismo de classe, servindo ao aumento da exploração do trabalhador, que se vê reduzido à condição de coisa invisível, com relação à qual, segundo a trama engendrada, toda perversidade está perdoada. E, repita-se, essa perversidade vem sendo cometida, concretamente, ao longo de 22 (vinte e dois) anos, sendo certo, aliás, que esteve presente nos primórdios da formação do modo de produção industrial, tendo dado origem, inclusive, ao preceito jurídico da proibição da intermediação de mão-de-obra em razão do reconhecimento dos problemas gerados aos trabalhadores por tal sistema.

O próprio projeto se trai e revela, na incoerência, a sua verdadeira intenção. Diz que a terceirização advém da “necessidade que a empresa moderna tem de concentrar-se em seu negócio principal” – grifou-se. Ocorre que o objetivo principal do projeto é ampliar as possibilidades de terceirização para qualquer tipo de serviço. Assim, a tal empresa moderna, nos termos do projeto, caso aprovado, poderá ter apenas trabalhadores terceirizados, restando a pergunta de qual seria, então, o “negócio principal” da empresa moderna? E mais: que ligação direta essa empresa moderna possuiria com o seu “produto”?

E se concretamente a efetivação de uma terceirização de todas as atividades, gerando o efeito óbvio da desvinculação da empresa de seu produto, pode, de fato, melhorar a qualidade do produto e da prestação do serviço, então a empresa contratante não possui uma relevância específica. Não possui nada a oferecer em termos produtivos ou de execução de serviços, não sendo nada além que uma instituição cujo objeto é administrar os diversos tipos de exploração do trabalho. Ou seja, a grande empresa moderna, nos termos do projeto, é meramente um ente de gestão voltado a organizar as formas de exploração do trabalho, buscando fazer com que cada forma lhe gere lucro. O seu “negócio principal”, que pretende rentável, é, de fato, o comércio de gente, que se constitui, ademais, apenas uma face mais visível do modelo de relações capitalistas, que está, todo ele, baseado na exploração de pessoas conduzidas ao trabalho subordinado pela necessidade e falta de alternativa.

A realidade futura que se extrai do PL 4330, caso venha a ser aprovado, é de empresas constituídas sem empregados, com setores inteiros da linha de produção, da administração, do transporte e demais atividades geridos por empresas interpostas cujo capital social é bastante reduzido se comparado com a contratante, gerando, por certo, uma redução de ganhos, além de um grande feixe de relações jurídicas e comerciais, que se interligam promiscuamente, mas que servem para evitar que os diversos trabalhadores, das variadas empresas, se identifiquem como integrantes de uma classe única e se organizem.

De fato, ter-se-á a formação de uma espécie de shopping center fabril, onde o objeto principal de comércio é o próprio ser humano.

Toda essa engenharia legislativa voltada à ampliação da terceirização se põe, inegavelmente, a serviço da reprodução do grande capital que, inclusive, visualizando os benéficos que esse mecanismo lhe proporciona não raro chega, ele próprio, a constituir empresas de prestação de serviços para execução de tarefas na suas empresas principais, fazendo-o, por certo, de forma disfarçada.

Na perspectiva do setor público, que não se encaixa nem perifericamente ao argumento da justificativa do projeto no aspecto da modernidade do processo produtivo, a terceirização aparece como mera estratégia de diminuição de custos para proporcionar ajustes orçamentários. O projeto bem que tenta uma justificativa jurídica para a terceirização no setor público, com os seguintes argumentos:

No caso de contratação com a Administração Pública, o projeto remete à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que “regulamenta o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências”.

Isso significa que a Administração Pública é solidariamente responsável quanto aos encargos previdenciários, mas não quanto às dívidas trabalhistas. – grifou-se
Esquece-se, no entanto, de forma proposital, que os serviços referidos do inciso XXI, do art. 37, da Constituição Federal, não são os serviços atinentes à dinâmica permanente da Administração, pois para tais serviços, que são executados por servidores públicos, há o requisito do concurso público, previsto nos incisos I e II do mesmo artigo, sendo que as únicas exceções se situam no âmbito do percentual dos cargos de confiança e da execução de tarefas temporárias de caráter excepcional.

É tão óbvio que a expressão serviços contida no inciso XXI não pode contrariar a regra fixada nos incisos I e II, que chega mesmo a ser agressivo tentar fundamentar o contrário. Ora, se um ente público pudesse contratar qualquer trabalhador para lhe prestar serviços por meio de uma empresa interposta os incisos I e II não teriam qualquer eficácia, já que ficaria na conveniência do administrador a escolha entre abrir o concurso ou contratar uma empresa para a execução do serviço.

O inciso XXI, evidentemente, não pode ter tal significação. Tomando o artigo 37 em seu conjunto, os “serviços”, tratados no inciso XXI, só podem ser entendidos como algo que ocorra fora da dinâmica permanente da administração.

Não se pode entender, a partir da leitura do inciso XXI, que o ente público, para implementar uma atividade que lhe seja própria e permanente, possa contratar trabalhadores por meio de empresa interposta, até porque, se pudesse, qual seria o limite para isto?

Se na expressão “serviços”, a que se refere o inciso XXI, pudessem ser incluídos os serviços que se realizam no âmbito da administração de forma permanente não haveria como fazer uma distinção entre os diversos serviços que se executam, naturalmente, na dinâmica da administração, senão partindo do critério não declarado da discriminação, retomando, ademais, o caráter escravista que influenciou a formação da sociedade brasileira. Mas, isto, como se sabe, ou se deveria saber, fere frontalmente os princípios constitucionais da não discriminação, da isonomia, da igualdade e da cidadania.

Vale a pena perceber que o PL 4.330 não limita as possibilidades de terceirização e a Lei n. 8.666/93, citada no projeto, também não estabelece um critério para diferenciar o serviço que pode ou não ser terceirizado. Assim, em breve se verá o argumento de que a nova lei permitiu uma terceirização mais ampla – e até irrestrita – também no serviço público. Claro que se pode objetar a essa previsão com o argumento de que uma ampliação irrestrita da terceirização no setor público não teria respaldo constitucional. No entanto, a Constituição também não dá guarida à terceirização nos serviços de limpeza e de vigilância e mesmo assim ela está aí, sem qualquer enfrentamento de constitucionalidade, sendo praticada nos próprios entes responsáveis pela aplicação da Constituição…

Concretamente, na esfera do serviço público, já se pode verificar a perversidade do projeto com o reforço da ideia de que o ente público não é responsabilizado pelos direitos trabalhistas dos terceirizados. Ou seja, comete-se uma agressão à Constituição, que não permite a terceirização no setor público, e tenta-se levar a situação ao extremo, afastando o ente público da obrigação de garantir a efetividade dos direitos daqueles que lhe prestam serviços, sob o falso manto da legalidade, qual seja, o art. 71, da Lei n. 8.666/93, que, em verdade, sequer teria aplicação no caso. Ora, se a Constituição não traz qualquer regra prevendo a terceirização no setor público como a lei infraconstitucional pode regular tal situação fática?

De fato, a Lei n. 8.666/93, de 21 de junho de 1993, que regula o processo de licitação, considera como “Serviço – toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais” (inciso II, do art. 6o.), pressupondo o seu caráter temporário, conforme previsão do art. 8o. da mesma lei: “A execução das obras e dos serviços deve programar-se, sempre, em sua totalidade, previstos seus custos atual e final e considerados os prazos de sua execução.” – grifou-se

Mas nada disso interessa para os defensores da terceirização. O que interessa mesmo é formalizar um ajuste entre os interesses econômicos e políticos em torno do comércio de gente. O econômico caracterizado pela a lógica da redução do custo, o aumento da exploração e a destruição concreta das possibilidades de resistência por parte da classe trabalhadora. O político pela preservação do poder, o que é favorecido pelo ato de agradar ao poder econômico, sem desconsiderar os interesses orçamentários dos entes públicos, que se dá com a redução do custo da mão-de-obra que a terceirização possibilita e com a manutenção da eficiência em termos de arrecadação. Veja-se, neste último aspecto, que, nos termos do projeto, ao contrário do que se passa com os direitos trabalhistas, é solidária a responsabilidade das empresas tomadoras no que se refere às contribuições previdenciárias.

É fácil perceber, portanto, toda a maldade em que se apóia a estrutura valorativa trazida no PL 4.330.

Aliás, vale um registro de forma enfática: a terceirização é um mal em si porque representa, na essência, a mercantilização da condição humana e porque tenta se justificar, exatamente, pela situação de extrema necessidade e dependência a que o próprio sistema econômico conduz o trabalhador.

A terceirização, ainda, visa a dificultar que se atinja a necessária responsabilidade social do capital. Nesse modelo de produção, a grande empresa não contrata empregados, contrata contratantes e estes, uma vez contratados, ou contratam trabalhadores dentro de uma perspectiva temporária, não permitindo sequer a formação de um vínculo jurídico que possa ter alguma evolução, ou contratam outros contratantes, instaurando-se uma rede de subcontratações que provoca, na essência, uma desvinculação física e jurídica entre o capital e o trabalho, tornando mais difícil a efetivação dos direitos trabalhistas, pois o empregador aparente, aquele que se apresenta de forma imediata na relação com o trabalho, é, quase sempre, desprovido de capacidade econômica ou, ao menos, possui um capital bastante reduzido se comparado com aquele da empresa que o contratou. Vale lembrar que o capital envolvido no processo produtivo mundial é controlado, efetivamente, por pouquíssimas corporações, que com a lógica da terceirização buscam se desvincular do trabalho para não se verem diretamente ligadas às obrigações sociais, embora digam estar preocupadas com ações que possam “salvar o mundo”!

Em várias situações o próprio sócio-empresário da empresa contratada, dependendo do alcance da rede de subcontratações, não é mais que um empresário aparente, um pseudo capitalista. Ele não possui de fato capital e sua atividade empresarial é restrita a dirigir a atividade de trabalhadores em benefício do interesse produtivo de outra empresa. Na divisão de classes, suplantando as aparências, situa-se no lado do trabalho. São, de fato, empregados daquela empresa para a qual prestam serviços, mesmo que seu serviço se restrinja ao de administrar o serviço alheio.

É interessante perceber que essa situação da precarização do capital, como efeito da terceirização e principalmente das subcontratações em rede, foi visualizada pelos autores do projeto de lei em comento, tanto que tiveram o “cuidado”, na perspectiva do interesse do grande capital, de prever que não se forma vínculo de emprego entre o sócio da empresa terceirizada e a empresa contratante, embora tenham tentado, é verdade, minimizar os problemas daí decorrentes com a exigência de um capital mínimo para a constituição da empresa terceirizada, o que, no entanto, como se verá adiante, não constitui garantia eficiente ao trabalhador e não anula o problema maior do afastamento entre o capital e a responsabilidade social.

A revelação mais importante que se extrai do projeto de lei acima mencionado é a de que o negócio principal de uma empresa é a extração de lucro por intermédio da exploração do trabalho alheio e quanto mais as formas de exploração favorecerem ao aumento do lucro melhor, sendo que este aumento se concretiza, mais facilmente, com redução de salários, precariedade das condições de trabalho, fragilização do trabalhador, destruição das possibilidades de resistência e criação de obstáculos para a organização coletiva dos trabalhadores, buscando, ainda, evitar qualquer tipo de consciência em torno da exploração que pudesse conduzir a práticas ligadas ao antagonismo de classe.

Eis, concretamente, o que significa a terceirização e, por óbvio, os segmentos irresponsáveis da classe empresarial, sobretudo ligados ao investimento estrangeiro, que pouco se importam com a vida na realidade social brasileira, querem que esse modelo se aprofunde ainda mais. Para estes, quanto mais perversidade melhor, embora queiram enganar a si e a todos, tentando fazer crer que praticam o bem…

2. A ilusão

A ilusão é a de que a ordem jurídica constitucional, que foi pautada pela lógica da prevalência dos Direitos Humanos e da proeminência dos Direitos Sociais, exatamente para inibir que os interesses puramente econômicos fossem utilizados como argumentos para reduzir o patamar de civilização historicamente alcançado, pudesse ser utilizada como fundamento para garantir valores sem qualquer sentido social, como a “liberdade de contratar” e a “segurança jurídica”.

A liberdade de contratar, no âmbito trabalhista, só existe dentro do projeto de ampliação da condição social dos trabalhadores e a segurança jurídica só está garantida quando os negócios não tentam desvirtuar o propósito constitucional.

A terceirização, como a experiência demonstra, caminha em direção inversa do projeto constitucional, sendo certo que a Carta de 88 garantiu aos trabalhadores, como valor fundamental, a relação de emprego, que é o vínculo jurídico entre o trabalho e o capital, da qual emergem todos os direitos que buscam dar efetividade ao princípio da melhoria da condição social.

Não será, pois, uma lei ordinária, votada por pressão da bancada empresarial, que vai conseguir fazer letra morta da Constituição ou mesmo impedir que juízes trabalhistas cumpram o seu dever funcional de negar vigência a qualquer lei que fira a Constituição e impeçam a eficácia dos Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais Sociais.

Em suma, se os segmentos empresariais querem segurança jurídica que passem, então, a respeitar a Constituição e não queiram alavancar seus empreendimentos por meio da supressão de direitos trabalhistas, pois, do contrário, serão envolvidos em uma autêntica ilusão jurídica, ainda mais quando tenham como fundamento apenas um dispositivo legal encomendado.

Além disso, é ilusório também acreditar que os trabalhadores, que são os autênticos protagonistas da história, assistam a toda supressão de seus direitos de modo inerte e sem lutas.

Nesse contexto, a situação que envolve a votação do PL 4.330/04 é preocupante para os trabalhadores, mas não é, de modo algum, o fim da história, podendo-se constituir, caso seja aprovado, bem ao contrário do que se poderia imaginar, um grande complicador para os segmentos empresariais que desprezam sua responsabilidade social e o projeto constitucional.

 

* Jorge Luiz Souto Maior, juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e de um dos artigos da coletânea Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013)

 

 

 

 

 

 

 

 

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