O Projeto de Lei 4330, que regulamenta e expande a terceirização às atividades-fim, é “nefasto” e “vilipendia” o trabalhador brasileiro, afirma o professor Ricardo Antunes [foto ao lado], do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Mantidas as devidas proporções entre tempos históricos diversos, ele equivale a uma regressão à escravidão no Brasil”, declarou Antunes. Um pesquisador de Sociologia do Trabalho reconhecido mundialmente, Antunes lança neste mês a edição comemorativa de 20 anos de seu já clássico “Adeus ao Trabalho?” e o terceiro volume da série “Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil”, organizada por ele, que reúne ensaios de pesquisadores brasileiros e internacionais.
O Jornal da Unicamp, edição 624, de maio último, publicou uma entrevista com o sociólogo, que reproduzimos, a seguir, alguns trechos. Antunes rebate vários argumentos favoráveis ao PL 4330 – já aprovado pela Câmara dos Deputados, aguardando votação no Senado Federal: “É curioso ver a presidência da Fiesp (Federação das Indústria do Estado de São Paulo), a Febraban (Federação Brasileira de Bancos) de repente se tornarem defensoras dos direitos dos trabalhadores terceirizados”, comentou ele, com ironia.
Jornal da Unicamp – É correto dizer que o PL 4330 “rasga” a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), ou isso é um exagero?
Ricardo Antunes – Ele rasga a CLT porque acaba com o contrato entre trabalhadores e empresas, regido pela CLT, e estabelece uma relação entre a empresa contratante e a contratada. Esta relação negocial entre empresas macula a relação contratual entre o capital e trabalho. Então, nisso, ele rompe o princípio básico da CLT. E tem, feitas as devidas diferenciações, o efeito de uma regressão a uma sociedade do trabalho escravo no Brasil, ainda que seja uma escravidão típica deste século 21.
JU – Mas por quê? O que há no projeto que deixa os trabalhadores desprotegidos?
Ricardo Antunes – O artigo quarto deste projeto é a chave analítica para compreendê-lo. Esse artigo diz que as atividades terceirizadas passam a incluir as atividades inerentes, suplementares e complementares da empresa. Com isso, o projeto arrebenta a súmula do Tribunal Superior do Trabalho que distinguia entre atividade-meio e atividade-fim. Ao fazer isso, ao invés de beneficiar efetivamente os terceirizados, ela vai levar a lógica da terceirização, que incide sobre cerca de 13 milhões de trabalhadores e trabalhadoras hoje, para 40 milhões, 45 milhões.
E qual é a realidade concreta do terceirizado, hoje? É sobre esse contingente que incidem as mais altas taxas de acidentes de trabalho e as maiores burlas da legislação protetora do trabalho. Nossa pesquisa, nos três volumes do “Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil”, tem depoimentos que mostram trabalhadores que não têm férias há 3 anos, nem de um dia. Os trabalhadores terceirizados terminam um trabalho, vão atrás de outro, não podem dizer agora vou tirar férias, entende? Aqui, é preciso enfatizar a questão de gênero: são trabalhadores e trabalhadoras terceirizadas – contemplando a importante divisão sócio-sexual do trabalho – que nos permitem dizer que a exploração do trabalho terceirizado agride ainda mais intensamente a mulher trabalhadora.
E os terceirizados (homens e mulheres) trabalham mais tempo do que aqueles que são regulamentados pela CLT. E recebem em torno de 25% a menos, às vezes 30% a menos, no salário. Então, são os que sofrem mais acidentes, são os mais penalizados, e são os que não conseguem criar organização sindical para se proteger, porque a rotatividade é muito grande, o que dificulta essa organização.
JU – Mas os proponentes do projeto dizem que ele traz salvaguardas para corrigir essas distorções, como a responsabilidade solidária entre a empresa contratante e a contratada.
Ricardo Antunes – Eles sabem mais do que ninguém que essas salvaguardas não são salvaguardas. Imagine uma terceirizada que trabalha aqui no setor de limpeza da nossa Universidade. Se ela é demitida, ela tem condições de sair daqui, pegar um ônibus, ir para o fórum, contratar um advogado, entrar na justiça do trabalho, prestar depoimento, esperar dois, três, cinco anos, dez anos...? Então, o patronato sabe melhor que ninguém que essa é a salvaguarda da burla. Esta é a questão. Nós não temos um preceito constitucional que estabelece que o salário mínimo deveria garantir a vida digna do trabalhador, da trabalhadora, sua alimentação, saúde, previdência, cultura, lazer? Pois é. Com menos de 800 reais por mês, esses atributos constitucionais estão sendo efetivados ou burlados?
Então, as ditas salvaguardas – e o empresariado sabe melhor do que ninguém isso – são facilmente burláveis. Isso é tanto verdade que semanas atrás o ministro Levy [Joaquim Levy, ministro da Fazenda] foi ao Congresso manifestar preocupação com a perda de arrecadação por causa desse projeto. E por que vai ter menos arrecadação? Porque a burla é evidente. E o governo sabe melhor disso.
Se quisessem fazer uma lei para defender esses 12 milhões que já estão terceirizados, é muito simples: aprovamos um novo projeto, mas eliminando-se o artigo quarto, que estende a terceirização para as atividades-fim. Por que isto não ocorre? Porque o real objetivo deste PL não é regulamentar os terceirizados, mas sim destruir os direitos dos regulamentares. Esse é o fulcro da questão: o projeto destrói a relação capital e trabalho construída no Brasil desde a década de 30, mesmo com todos os seus limites!
Minha posição é cristalina neste ponto: o trabalho terceirizado avilta, subjuga e depaupera ainda mais os 12 milhões de terceirizados. Temos que ter, então, a coragem de dizer de modo claro: somos contra a terceirização. Em nossas pesquisas nunca nos deparamos com trabalhadores e trabalhadoras satisfeitas com esse trabalho. Eles e elas aceitam porque é esse trabalho ou o desemprego. Mas isso não deveria ser assim.
E em relação ao caso da responsabilidade solidária: alguém acredita mesmo que uma empresa, ao contratar, digamos, três mil trabalhadores de uma terceirizada vai conferir, um a um, o registro, o pagamento dos direitos... Se estivéssemos na Noruega, eu teria dúvidas. No Brasil, não paira dúvida: teremos mais burla.
JU – Há o argumento de que não haverá precarização para os trabalhadores das atividades-fim, porque eles exercem atividades consideradas mais nobres do que as dos atuais terceirizados. E, também, de que seria antieconômico realizar uma terceirização ampla de atividades-fim, logo não há o que temer nesse campo.
Ricardo Antunes – Esse argumento me faz recordar o título da peça de Shakespeare, “Sonho de uma Noite de Verão”. Vamos ver uma atividade tida como nobre? Pilotos de avião. Se os pilotos das grandes companhias aéreas de hoje, com direitos garantidos, sindicatos organizados, já sofrem com a intensificação do trabalho – outro dia vi um depoimento gravado de dois pilotos em que eles diziam, “olha não estou aguentando mais, não sei se vou conseguir aterrissar porque estou sem dormir, não estou mais vendo nada na minha frente...” – se assim é numa atividade regulamentada, se assim é onde o sindicato dos pilotos é forte... Se assim é com os médicos nos hospitais, se assim é com os professores, se assim é em tantas categorias regulamentadas e bem organizadas, é possível imaginar que vai ficar melhor quando esses trabalhadores tornarem-se terceirizados?
Então é preciso dizer: este projeto traz mais vilipêndio ao trabalho. Não é possível imaginar que ele vá trazer melhorias. O empresariado sabe melhor do que ninguém que é mais fácil demitir no regime da terceirização total.
Edição Rosângela Ribeiro GIl
Imprensa SEESP