Toda semana, pelo menos 37 milhões de brasileiros ficam sem o dinheiro da passagem para voltar para casa. Os números são da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos. Diante dos bilhetes caros e do orçamento apertado, são comuns histórias de quem tem de buscar abrigo na rua, enfrentando frio e insegurança.
Para a população de baixa renda, uma passagem diária: de R$ 5,50 pode inviabilizar as contas do mês. Especialistas cobram investimentos no setor.
O transporte público é responsável pelo deslocamento diário de 59 milhões de pessoas. Os ônibus respondem por 92% da demanda e movimentam R$ 25 bilhões por ano.
País tem 37 milhões de pessoas que não têm dinheiro para pagar passagem regularmente
Madrugada no Parque São José, bairro da periferia de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Às 4h30m, o operário da construção civil Lincoln Key Taíra, 49 anos, tira do bolso R$ 5,50 para a passagem de ônibus.
Ao sair de casa com destino ao trabalho, Taíra não tem a certeza de voltar para casa à noite, abraçar a mulher e os quatro filhos. Quando não consegue o dinheiro para pagar a tarifa, resta a ele procurar um lugar para dormir. Para não ficar na rua, Taíra recorre à calçada do Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro do Rio, como abrigo.
O morador de Belford Roxo é um dos 37 milhões de brasileiros que, semanalmente, não podem usar o transporte público de forma regular, por não terem como pagar a tarifa ou, simplesmente, como forma de economizar.
A estatística é da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) e tem como base estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Temos as tarifas de ônibus mais caras de toda a História, pesando cada vez mais no orçamento.
Não é uma exclusividade do Rio, é praticamente em todo o país afirma Ailton Brasiliense, pesquisador da NTU que se dedica há 35 anos ao estudo dos transportes.
Rotina árdua de ônibus lotados
O caminho entre a casa e o trabalho é longo para Taíra. São cerca de 40 quilômetros até o Centro do Rio que, muitas vezes, transformam-se em uma viagem cansativa que supera duas horas.
Além de o ônibus demorar para aparecer, anda sempre cheio e, quando chega na Avenida Brasil (uma das principais ligações entre a região central do Rio com a Baixada Fluminense e a Zona Oeste), o trânsito não anda.
O ônibus fica preso no engarrafamento reclama Taíra, que trabalha em uma empreiteira como calceteiro (pedreiro que faz calçadas) e presta serviço para a prefeitura do Rio. Sua jornada no emprego começa às 7h e vai até o fim da tarde. Para não se atrasar, ele sai de casa antes das 5h.
A renda mensal de Taíra é de pouco mais de R$ 1 mil. Ele economiza para garantir a volta para casa. Mas nem sempre consegue. Na madrugada do dia 4, fez do corrimão de acesso ao setor de emergência do Hospital Municipal Souza Aguiar uma cama.
O local, diz ele, é mais seguro, longe da violência, do sereno e do frio.
Hoje não consegui dinheiro.
Também não pedi emprestado disse Taíra, que se orgulha do sobrenome.
Meu filho descobriu, na internet, que meu pai é descendente de samurais japoneses. Herdei a força deles, só não aprendi a lutar brinca.
Segundo a NTU, o transporte público é responsável no Brasil pelo deslocamento diário de 59 milhões de passageiros. Os ônibus detêm 92% da demanda e, afirma Ailton Brasiliense, o serviço pouco difere nas capitais.
Para ele, os baixos investimentos refletem hoje no bolso dos brasileiros.
A falta de corredores exclusivos para ônibus, os engarrafamentos, ruas e estradas ruins, além da falta de planejamento das cidades, que empurraram a população para a periferia obrigando a ter linhas com percursos longos, contribuíram para a tarifa elevada.
Como não há investimentos, muitos passageiros deixam de usar o transporte público e compram um carro velho. Ou seja, mais engarrafamentos, poluição e queda na qualidade de vida das cidades, um caos.
O transporte coletivo movimenta R$ 25 bilhões por ano e gera 500 mil empregos diretos. A maioria dos usuários é de baixa renda. Nos últimos 12 anos, o sistema regular de transporte perdeu 30% da demanda.
Brasiliense ressalta que a carga tributária responde por 11,6% do valor das tarifas nas capitais, encarecendo o serviço. O pesquisador cita apenas Curitiba, capital do Paraná, como um exemplo de organização no transporte.
Os corredores exclusivos para ônibus começaram a ser planejados e implantados ainda nos anos 1960.
Isso aconteceu quando a cidade tinha apenas 340 mil habitantes.
Taíra não era o único a dormir no Souza Aguiar. Distante poucos metros, dentro do setor de emergência, o ambulante Paulo Gardino, 53 anos, morador na Vila Santo Antônio, em Duque de Caxias, também na Baixada Fluminense, encontrou abrigo. Com uma renda mensal de R$ 600, ele mantém uma rotina noturna de dormir no hospital ou em igrejas evangélicas, que promovem vigílias.
O ambulante tem como hobby a percussão. Toca em igrejas cristãs e participa de gravações de CDs de música gospel de cantores iniciantes.
O trabalho é garantia de reforço no bolso. Gardino conta que sempre foi ambulante. Sua renda não é suficiente para conseguir manter a casa, mulher e quatro filhos.
Acaba faltando para o transporte. De segunda a sábado, ele trabalha no Centro do Rio, próximo à Central do Brasil, área de comércio popular e de grande movimentação de pedestres.
Vendo de tudo, mas o que sai mais é refrigerante e água. Gostaria de ir todo dia para casa, mas nem sempre dá diz.
Fã de Roberto Carlos, ele sonha em se dedicar à música: Toco bongô, gosto de música.
Às sextas-feiras à tarde me apresento num culto, conta ele, que segue rígidas recomendações de seu pastor, que vão desde ser dizimista a nunca tirar fotos.
Aos sábados, quando volta para casa, o dinheiro economizado com o transporte financia uma pequena felicidade: ele leva os quatro filhos para passear no Parque do Flamengo.
Fonte: Agência O Globo
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