Sem qualquer garantia de preservação de empregos e tecnologia no País. Assim a vice-presidente da Delegacia Sindical do SEESP em São José dos Campos, Rozana Nogueira, resume o “negócio da China” para a americana Boeing: a compra de 80% da área comercial da Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) ao valor irrisório de US$ 3,8 bilhões, conforme memorando de entendimento assinado entre ambas no início de julho – o custo se aproxima ao do desenvolvimento de um único produto da companhia, aponta ainda Nogueira, que é engenheira da Embraer.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) não está alheio aos riscos, e é categórico: a União – que tem o poder de vetar a transação ou definir pré-condições para tanto, por deter ações especiais (chamadas golden share) – não deve autorizar a venda acionária sem que se assegure a manutenção da produção e empregos no Brasil. O tema é objeto de ação civil pública instaurada em julho último pelo órgão junto à Justiça do Trabalho – o qual promete, segundo divulgado em sites de notícias, impetrar mandado de segurança para barrar o negócio, caso a recomendação de salvaguardas não seja levada em conta.
Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor da nota técnica (inserir link) sobre o assunto, que compõe a nova edição do projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento”, da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), cujo foco central é a retomada da engenharia nacional, Marco Aurélio Cabral Pinto ressalta: “Trata-se de patrimônio público. Com este governo que melancolicamente se despede, ilegítimo e impopular, na medida em que os candidatos a Presidente se posicionem sobre o assunto, no transcorrer de tempo até a eleição, torna-se progressivamente mais difícil para o núcleo político sobrevivente defender decisão sobre a golden share ainda neste ano.”
O timing é preponderante nesse caso, como atesta o engenheiro Amir Khair, consultor na área pública. “Tem havido movimentos (contra a venda) tanto na esfera técnica quanto política, e o governo está jogando contra o tempo.” Ele enfatiza o contrassenso de o conhecimento da Embraer ter sido construído com recursos públicos e todo o know-how resultante “parar nas mãos de empresa americana”.
Cabral Pinto ratifica: “Não é questão de preço, garantias ou taxas. A Boeing se confunde com o Departamento de Estado norte-americano. É uma gigante em setor que se beneficia do aumento da instabilidade política no mundo. O governo brasileiro pode e deve contrapor rol variado e extenso de exigências. Estas devem permitir o desenvolvimento de uma indústria aeroespacial no Brasil integrada, exportadora e com crescente autonomia tecnológica. A questão dos empregos depende disso.” Ele afirma: “Após o início da exploração em larga escala dos hidrocarbonetos do pré-sal, o Brasil não pode mais prescindir de uma política de defesa que seja imune aos humores fiscais. Os investimentos públicos em C,T&I também devem ser redobrados, canalizados para estratégia de desenvolvimento da base industrial e tecnológica de defesa.
Soberania em risco
A condição sine qua non ao Governo Federal aponta para uma das preocupações de Nogueira. Segundo ela, as outras duas áreas da companhia – defesa e executiva – são praticamente deficitárias. Apesar da justificativa de que a primeira – estratégica para o País – será mantida, a vice-presidente da delegacia sindical ressalta: assim como a executiva, não sobrevive “sem a comercial, a parte rentável que a sustenta”. E frisa: “O que está sendo feito é uma excrescência, um absurdo. A Boeing vai operar tudo e administrar, não é parceria, é venda. Ela pode simplesmente, quando quiser, parar de desenvolver avião no Brasil, de fazer projetos aqui, e mais de 5 mil pessoas trabalham nessa área. São 4.200 engenheiros na Embraer. Se isso se concretizar, a empresa se tornará uma mera montadora de avião.” Nogueira lembra que em 1996 a Boeing comprou a também americana Douglas McDougall e em dez anos fechou. “Não há garantia sequer de que ela vai continuar com a empresa no Brasil.”
Enquanto a Boeing tem muito a ganhar com o negócio, já que, como explica a engenheira, representa sua entrada no mercado de aviões menores, o País só tem a perder. Além do risco à soberania nacional e aos postos de trabalho dos cerca de 18 mil funcionários, toda a região será impactada com uma possível perda tecnológica. “São 70 empresas fornecedoras e mais 5 mil pessoas. Fora isso há outras companhias em um polo de negócios que orbitam pela Embraer.” A vice-presidente lamenta: “À sua criação, há quase 50 anos, não se pensou somente em uma empresa de avião, mas no desenvolvimento tecnológico nacional. O contrário do que está sendo feito agora.”
Na ótica de Maria Célia Ribeiro Sapucahy, diretora do SEESP e engenheira da Embraer, a venda acionária “é resultado de trajetória que se iniciou com a privatização da companhia em 1994, após mais de duas décadas de investimentos vultosos do governo”. Ela salienta: “Estamos abrindo mão de uma empresa estratégica de maneira inconcebível. Vão levar o conhecimento construído aqui e receio que, a médio prazo, seja o desmonte da engenharia.” O SEESP, com o apoio da FNE, visa articular as forças produtivas no País na busca por impedir a entrega do patrimônio público. “Vamos atuar para barrar esse processo”, assevera Murilo Pinheiro, presidente do sindicato.
Por Soraya Misleh