Uma inovação que revolucionou a medicina completa 60 anos em 2019: o coração-pulmão artificial de circulação corpórea. “A invenção permitiu que a cirurgia cardíaca se disseminasse no Brasil. Antes as máquinas eram importadas, caras, difíceis de transportar e sem manutenção”, afirma o engenheiro eletricista Marcelo Mazzetto, chefe do Laboratório de Hidrodinâmica da Divisão de Bioengenharia do Centro de Tecnologia Biomédica do Instituto do Coração (Incor).
A primeira versão do equipamento nacional foi desenvolvida na Oficina Coração-Pulmão Artificial, no Instituto Central do Hospital das Clínicas (ICHC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – hoje Divisão de Bioengenharia do Incor. Como conta Mazzetto, após experimentos em 1957, o professor José Euryclides Zerbini – que introduziu os aparelhos no País, pioneiro em cirurgia cardíaca no Brasil e em transplante de coração no mundo –, convidou no ano seguinte o professor Adib Jatene para coordenar o laboratório (este último recebeu em 1993 do SEESP o prêmio Personalidade da Tecnologia em Saúde). Inaugurada em 1959, a oficina concentrava-se inicialmente na criação de novos modelos de coração-pulmão artificial – equipamento que viria a ser desenvolvido em parceria com o Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia.
Uma ação que contribuiu foi a Caravana do Coração. O professor Zerbini e sua equipe realizavam cirurgias em diversos municípios, levando o conhecimento às equipes hospitalares.
A inovação
Até então, era usada a técnica de hipotermia (diminuir a temperatura do paciente), o que dava apenas dez minutos à realização de qualquer procedimento. A nova técnica aumentou o tempo para cerca de quatro horas, suficiente para qualquer tipo de intervenção. “E com o coração parado. Antes, era com o coração batendo”, enfatiza Mazzetto.
O equipamento tem como função prover a oxigenação e circulação de sangue do paciente, fazendo a função dos pulmões e do coração. O sangue é levado até um reservatório externo. Depois, ocorre a troca gasosa para desempenhar a função do pulmão e, em seguida, o sangue retorna ao paciente. E isso ocorre durante todo o procedimento cirúrgico.
Os experimentos inaugurais no mundo datam de 1890. Mas só em 1934 descobriu-se que algo simples como a bomba peristáltica poderia ser usado. O primeiro equipamento com a configuração atual surge em meados dos anos 1950: quatro bombas peristálticas, sendo uma para a função do coração e outras três para recolher o sangue da cavidade cardiotorácica.
A bomba realiza um movimento circular que faz com que o sangue passe por uma mangueira, sem entrar em contato com nenhuma outra parte do equipamento, evitando contaminação. A mangueira é fixada em um cabeçote e pressionada por roletes que, ao se moverem, a comprimem e fecham, criando o vácuo necessário para deslocar o fluido. Funciona com eletricidade. Caso haja falta de energia ou algum defeito, é possível acoplar uma manivela e manter seu funcionamento manualmente.
Engenharia pela vida
Atualmente, a máquina coração-pulmão já não é feita pela Divisão de Bioengenharia do Incor. Existe uma produção nacional suficiente. Pouca coisa é fabricada e fornecida à indústria nos quatro laboratórios da divisão. Além do chefiado por Mazzetto, há o de Materiais, o de Eletrônica, o de Mecânica e o de Engenharia de Tecidos.
Em 1992, eram mais de 60 funcionários, que atuavam também na produção de materiais descartáveis para o hospital e outros locais, até exportados para América Latina e Europa. Hoje, são cinco engenheiros, dois físicos, um médico, um biomédico e dez técnicos com formações diversas; e poucos materiais descartáveis são fornecidos para a indústria, em baixa escala. “Essa ideia de disseminar a tecnologia se mantém. Repassamos à indústria por meio da venda de patente, licenciamento e parcerias.”
Ao ser perguntado sobre a importância da bioengenharia, discorre: “Imagina o mundo sem um tomógrafo? Antes, as cirurgias eram feitas às cegas. Para o tratamento de válvula calcificada era feito um orifício na altura do coração do paciente, colocava-se o dedo lá dentro para abrir a válvula e fazê-la voltar a funcionar. Hoje temos raio-X, tomografia, ressonância, ultrassom e agora impressão 3D. Temos impressoras 3D para estudo de casos e preparação de cirurgias.” E conclui: “Temos processos de engenharia sistematizados: projeto, simulação no CAD, correção, construção do protótipo, ensaios e, após, verificação dos resultados.”
Um desses processos pode beneficiar a rede pública. Está em fase de negociação com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o uso de um ventrículo esquerdo artificial, adulto, para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). Vinte e três pacientes em situação crítica, que precisam de transplante e estão dentro do estudo, são os beneficiários imediatos da inovação. “Hoje só há equipamento importado, caro. O objetivo é disponibilizar para baixar custo e atender o maior numero de pacientes possíveis”, frisa Mazzetto – exatamente como ocorreu com o desenvolvimento do coração-pulmão artificial brasileiro, iniciado há 60 anos.
Por Deborah Moreira