Empresa marcada para desaparecer, com extinção prevista no Projeto de Lei 727/2019, que deve ser apreciado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) neste mês de agosto, a Desenvolvimento Rodoviário S.A. (Dersa) poderia ser o grande trunfo da administração estadual para evitar a crise iminente no transporte de cargas.
Quem afirma é o gerente de Planejamento da companhia, engenheiro Carlos Satoru. Segundo ele, a empresa que é um expoente na área rodoviária, na Região Metropolitana de São Paulo e até em um raio de 100 quilômetros, poderia agora colaborar para a expansão da ferrovia. “A malha em volta de São Paulo e das quatro grandes metrópoles – Campinas, Sorocaba, São José dos Campos e Baixada Santista – transporta 50% da economia do Estado e está se esgotando, estará totalmente saturada até 2030”, alerta.
Conforme o especialista, estão nessa condição os grandes eixos rodoviários que dão acesso à capital paulista – Imigrantes, Anchieta, Anhanguera, Bandeirantes, Dutra, Fernão Dias, Raposo Tavares, Castello Branco, Régis Bittencourt e Ayrton Senna. “Chegou o momento de dar ênfase ao modal ferroviário, especialmente para o transporte de carga, hoje feito 95% por caminhões; o trem contribui com 5%. Precisa ampliar, fazer novas ligações. A Dersa tem capacidade para atuar, tem todo o preparo. Não só para planejar, como para executar.”
Para Satoru, seria uma requalificação da Dersa para uma empresa de logística de transporte, utilizando o corpo técnico qualificado de que dispõe e a experiência acumulada em 50 anos. “Ao se desfazer, ficará um vazio, vai demorar para reconstituir, e a questão é urgente. São dez anos. Há risco grande de ter um colapso nos transportes na Região Metropolitana de São Paulo, com reflexo na economia”, alerta.
Corpo técnico dizimado
A necessidade de resposta rápida à demanda descrita pelo técnico, aparentemente, não foi devidamente considerada pelo governo. A mensagem encaminhada à Alesp juntamente com o PL que prevê a liquidação da Dersa afirma que suas atribuições, “como orçar, contratar e vistoriar obras, serão assumidas pela administração direta”. A questão é quem fará isso, já que o conjunto de 500 funcionários, entre os quais 75 engenheiros, aguarda demissão.
“Esse capital humano será perdido”, reforça Ricardo Goulart, engenheiro da Dersa e diretor do SEESP. Ele lembra que a empresa é referência no mundo em desenvolvimento rodoviário graças ao know-how acumulado e à competência de seu corpo técnico, também em assuntos específicos, como as travessias litorâneas.
Goulart lamenta ainda o tratamento que vem sendo dado aos engenheiros, com idade média de 63 anos e servindo a empresa há décadas. “É um descarte de ferramenta não servível, do pior modo possível, já usou, põe para fora, dando o mínimo.” Para agravar a situação, entre os que serão demitidos, dois terços ocupam os chamados cargos de livre provimento. Ou seja, em caso de demissão, não têm direito à multa de 40% do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), a aviso prévio e não podem recorrer ao seguro-desemprego. “São mandados embora e não recebem nada, mas estão há mais de 20 anos lá”, resume ele.
Embate na Assembleia
Antes que o projeto seja votado na Alesp, Satoru fará uma apresentação aos parlamentares paulistas com o objetivo de convencê-los a não aprovar o fim da companhia. Na ocasião, ele deve ainda se contrapor ao argumento segundo o qual as denúncias de corrupção na companhia seriam razão para sua extinção. “Se se cometeram pecados administrativos, isso aconteceu em vários setores de contratação do Estado, não se pode condenar a empresa por isso.”
O assunto foi objeto de nota do SEESP divulgada em 5 de junho último (http://bit.ly/2YvDQry), na qual a entidade exigia respeito aos profissionais que nada têm a ver com ilegalidades cometidas por dirigentes da companhia. A manifestação também propunha que fosse aprovada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Alesp para que a população tivesse “pleno conhecimento dos episódios que minam a reputação da Dersa e, injustamente, ameaçam manchar a carreira de seus empregados”.
As questões colocadas pelos engenheiros são encampadas pela oposição no Legislativo paulista, conforme afirma a deputada Márcia Lia (PT), líder da minoria. “Nós estamos tentando criar a CPI para ajudar a apurar os escândalos. A empresa e seus funcionários não podem sofrer com as más administrações. Grandes rodovias e obras portuárias passam pela Dersa. Há um acúmulo material e imaterial que não pode ser desprezado.
Sem planejamento
Por fim, ainda que o governo privatize todas as obras no setor em São Paulo, conforme anunciado, Satoru lembra que há necessidade premente de participação do Estado no processo. “Antes de executar, precisa projetar, planejar; se deixar totalmente com o agente privado, ele vai ver o interesse dele. O planejamento tem que ser público, do governo”, enfatiza.
Essa é exatamente a questão que permeia o debate em torno do fim da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano S/A (Emplasa), em processo de liquidação que deve durar cerca de um ano, segundo informação do governo estadual. A extinção da companhia foi aprovada pela Alesp em 15 de maio último. O projeto incluía a Companhia de Desenvolvimento Agrícola de São Paulo (Codasp) e a Companhia Paulista de Obras e Serviços (CPOS). “Essas empresas estavam em setores essenciais, especialmente para as prefeituras do interior. A Emplasa, por exemplo, fornece apoio técnico, de arquitetos, gestores e engenheiros, para o planejamento estratégico de cerca de 217 cidades em várias regiões metropolitanas. É uma empresa de 45 anos com um dos maiores bancos de dados do Estado, um acervo bibliográfico com mais de 1 milhão de downloads e um setor de TI de alto padrão. A Codasp cuidava das estradas rurais e da recuperação de lençóis freáticos, entre outros, e a CPOS tinha um trabalho fundamental no suporte técnico a muitos projetos. Vão fazer muita falta, na prática”, lamenta Márcia Lia.
O subsecretário de Ações Estratégicas da Secretaria de Governo, Pablo Uhart, informa que não haverá descontinuidade de atividades, porque essas serão desenvolvidas pela administração direta ou pela iniciativa privada. Segundo ele, as atribuições relativas ao planejamento já foram incorporadas pela Secretaria de Desenvolvimento Regional. Técnicos da Emplasa, no entanto, põem em dúvida a efetividade da medida, tendo em vista que a mão de obra qualificada – os 132 técnicos da empresa – será dispensada. “Não tem gente para dar sequência ao trabalho”, adverte a urbanista Sania Dias, diretora da Associação dos Funcionários da Emplasa (AFE), que previa a própria demissão ainda no início de agosto. A questão também foi levantada pelo deputado Campos Machado (PTB), que votou contra o PL do governo. Conforme divulgado pela mídia, o parlamentar considerou insatisfatória a inclusão de emenda sobre o destino das tarefas executadas pelas empresas. “Essa é a emenda 171”, disparou.
Na avaliação de Dias, a extinção da Emplasa reflete o desinteresse do governo pela visão estratégica, o que seria especialmente grave tendo em vista que as regiões metropolitanas concentram 80% da população e 85% do Produto Interno Bruto (PIB) paulista. “O que acontece é que eles não querem planejar”, concluiu ela.
Público x privado
“Não é à toa que existe uma separação entre o que é de Estado e o que é privado. E é absolutamente insano pensar o planejamento como atividade privada. A Emplasa não é para dar lucro. Não tem sentido”, afirma o engenheiro Lúcio Gregori, primeiro diretor-técnico da companhia, entre 1975 e 1979.
Dias corrobora: “Nossa obrigação é dar racionalidade ao gasto”, lembrando que a empresa produziu R$ 645 milhões em estudos cartográficos nos últimos sete anos, sem custos.
Para a urbanista, a tendência é que se estabeleça em São Paulo uma dinâmica que é “o inverso do planejamento”. “Fica tudo terceirizado e a iniciativa privada resolve o que quer fazer. Aparece uma Manifestação de Interesse Privado (MIP) e o governo diz que pode”, ilustra.
Gregori chama a atenção ainda para o risco de perda ou dispersão das atividades e do acervo técnico da Emplasa. “A lógica é exatamente o fato de lidar com a multiplicidade, porque a visão setorialista, antiquada e ultrapassada leva a incongruências muito grandes.”
Entrevista
Desmonte da inteligência
Para o engenheiro Murilo Pinheiro, presidente do SEESP, o processo de liquidação de empresas essenciais ao planejamento estratégico do Estado e de assessoria técnica aos municípios pode significar um desmonte da inteligência paulista, com prejuízo ao desenvolvimento e ao bem-estar da população. Ele defende a preservação da Dersa, cuja extinção está para ser votada na Assembleia Legislativa, e conclama os engenheiros a se mobilizarem nesse sentido.
Que avaliação o senhor faz da decisão do governo de extinguir a Emplasa, a CPOS e a Codasp?
A decisão vem numa lógica de Estado mínimo que, em tese, economizaria recursos públicos, já que, conforme o governo, essas empresas custam juntas R$ 70 milhões ao ano. No entanto, é preciso pensar estrategicamente, e não só olhando uma planilha contábil. O que o Estado e o povo paulista perdem ao abrirem mão dessas ferramentas? Obviamente, qualquer órgão público deve ser administrado de forma a fazer o melhor uso possível dos recursos, com eficiência, seriedade e transparência. Se há problemas nesses aspectos, é obrigação do gestor corrigi-los. Mas, como diz o velho ditado, não se joga o bebê fora com a água do banho. O fim da Emplasa, em especial, pode representar grave retrocesso e dificultará ainda mais a busca de solução para as regiões metropolitanas.
A Dersa ainda não teve sua extinção aprovada, mas um projeto de lei com esse objetivo tramita na Assembleia Legislativa e deve ser apreciado em agosto. É correto dar fim à empresa?
Isso é um equívoco lamentável. A Dersa, com seus 75 engenheiros, profissionais altamente qualificados e que detêm conhecimento e experiência inestimáveis no setor, tem papel fundamental a desempenhar no desenvolvimento do Estado. As denúncias de desvios em contratações pela empresa estão sendo investigadas, e esperamos que absolutamente tudo seja apurado e os responsáveis, processados e punidos conforme a lei. Mas não se pode abrir mão de um ativo que é referência no mundo e que muito ainda tem a contribuir. É papel da empresa planejar e projetar a superação do quadro de saturação dos eixos rodoviários paulistas, para dar um exemplo. A iniciativa privada pode construir e operar estradas, mas não desempenhará essa função fundamental.
O SEESP pretende atuar para impedir que seja aprovado o projeto que elimina a companhia?
Sem dúvida alguma, vamos atuar firmemente nesse sentido. É preciso demonstrar, aos deputados e ao governo, a importância da Dersa. Mas é necessário também mobilizar os empregados, especialmente os engenheiros, e a população.
Por Rita Casaro, com colaboração de Deborah Moreira e Jéssica Silva