Deborah Moreira
Satélite brasileiro de alta precisão, que poderá ser utilizado em aplicações como monitoramento do desmatamento em tempo real, o Amazônia-1 foi lançado em 28 de fevereiro último. A iniciativa tem tudo para ser um marco na história recente do Programa Espacial Brasileiro. Mas há dificuldades, já que o orçamento para ciência e tecnologia vem sendo reduzido radicalmente nos últimos anos e cientistas têm denunciado desmonte das instituições.
Previsto inicialmente para setembro de 2020, o lançamento do Amazônia-1 atrasou por conta da pandemia causada pelo novo coronavírus e por dificuldades no transporte. Em 20 de março do ano passado, quando foi publicado o decreto de calamidade pública no Brasil em decorrência da Covid-19, a equipe coordenada por Adenilson Roberto da Silva, do Programa de Satélites Baseados na Plataforma Multimissão do Inpe, realizava uma série de testes. No entanto, com os protocolos de segurança sanitária, foi necessário reduzir pessoal para respeitar o distanciamento social. Houve revezamento e testagem dos profissionais a todo momento.
“Trabalhamos remotamente no que era possível, mas era preciso realizar testes in loco. Caso não tivéssemos feito dessa forma, seguramente o satélite não teria sido lançado em 28 de fevereiro. Chegamos a ficar abril e maio parados, somente realizando manutenções temporárias para preservação dos equipamentos”, recorda Silva.
Uma dificuldade relatada por ele foi conciliar o transporte dos equipamentos e das pessoas até o local de lançamento, no Centro Espacial Satish Dhawan, da Organização de Investigação Espacial Indiana (ISRO – Indian Space Research Organization), na ilha de Sriharikota, no país asiático. Era preciso conciliar voos e conexões com as datas planejadas. Entre os requisitos para a companhia aérea, estava o de testar 100% dos passageiros. Ao desembarcarem, havia um protocolo: quatro dias em isolamento e nova testagem. Silva conta orgulhoso que não houve nenhum contaminado em solo indiano.
Para o satélite foi fretado um Boeing 777F, da Emirates Airlines, que pousou pela primeira vez no Aeroporto Internacional Professor Urbano Ernesto Stumpf, de São José dos Campos (SP), em 22 de dezembro último. Após carregar aproximadamente 20 toneladas em equipamentos, estimados em US$ 76 milhões, o avião cargueiro voou para Chennai, na Índia, com escala em Dakar, no Senegal, e Dubai, nos Emirados Árabes.
“Foi uma loucura. Foram quase 40 horas de viagem até chegar na base de lançamento. Só de Chennai até a base foram mais 12 horas, devido à liberação alfandegária. Fiquei sem dormir mais de 45 horas. Felizmente, todos os protocolos de segurança foram seguidos rigorosamente. Era um risco controlado”, lembra Silva, que nem chegou a encontrar os outros servidores que já trabalhavam no centro de lançamento, seguindo direto para a quarentena em um quarto de hotel, onde passou o Natal. “Confesso que já tinha participado de cinco outros lançamentos, mas não dessa maneira e como responsável geral. Acho que ganhei uns cabelos brancos, mas certamente uma experiência para levar para o resto da vida.”
A campanha de lançamento em solo indiano durou dois meses. Diversas idas e vindas foram registradas, totalizando 48 profissionais do Inpe, em sua grande maioria engenheiros. No primeiro, houve montagem, alinhamento e preparação do satélite, que viajou dividido em dois módulos (de serviço e de carga útil). Também foi feito teste elétrico, carregamento dos tanques de combustível e nova montagem, a 40 metros de altura, com o quarto e último estágio do veículo lançador, o foguete PSLV-C51, capaz de levar o Amazônia 1, com seus 640kg. No segundo mês foi realizado um trabalho conjunto com as equipes do lançador. Na semana anterior ao lançamento foram efetuados dois ensaios. Um só da parte do satélite e outro com o lançador.
O valor foi de cerca de R$ 145 milhões (US$ 26 milhões), incluindo transporte em solo indiano, seguro, uso das instalações da base e rastreio em órbita durante 15 minutos após o lançamento. O custo do satélite foi de R$ 380 milhões.
Plataforma Multimissão
Para um equipamento ir ao espaço é preciso passar por uma série de testes de qualificação que levam anos. Em 2002, a Agência Espacial Brasileira (AEB) teve a ideia de construir uma base sobre a qual poderiam ser embarcadas diferentes missões, não sendo necessário repetir os testes. Assim surgiu a Plataforma Multimissão, um módulo de serviço que faz o monitoramento, a alimentação elétrica, a orientação, o controle térmico, além de apontamentos, transmissão de dados e até correção de órbita do Amazônia-1.
O processo de validação da PMM começou desde o lançamento. Nos primeiros 15 dias, a engenharia do Inpe trabalhou com maior intensidade no monitoramento das funções. Depois, a equipe mais atuante é a que cuida da aplicação de dados, fazendo a calibração geométrica da câmera – que consiste na captação de imagens de diversos pontos para obter contraste e luz mais precisos.
“Ainda levará cerca de dois meses para completar todos os testes com os equipamentos de bordo. Ao final desse período, teremos dados concretos de como foi seu desenvolvimento frente ao que foi projetado e se haverá necessidade de ajustes. Estamos bastante otimistas sobre os resultados”, afirma o presidente da AEB, engenheiro Carlos Augusto Teixeira de Moura.
As imagens geradas pelo Amazônia-1, divulgadas recentemente, têm impressionado pela nitidez e beleza. Após a validação da plataforma, conforme Moura, a intenção é oferecê-la à iniciativa privada com o objetivo de fomentar a indústria espacial brasileira.
Sem dar detalhes sobre qual modelo de negócios em que se estabeleceria essa relação, ele explica: "A ideia é passar esse know-how para uma indústria brasileira, inclusive, temos até uma que manifestou interesse em fazer uso desse equipamento e gerar negócios a partir disso."
Ministro da Ciência e Tecnologia entre 2007 e 2010, Sergio Rezende, contudo, alerta quanto à transferência da PMM para a iniciativa privada: “O setor espacial é uma área estratégica, do Estado. Ainda mais em relação ao monitoramento territorial. O Brasil demorou muito tempo para desenvolver a tecnologia completa de um satélite de monitoramento. Se for simplesmente entregar [a PMM] para a iniciativa privada, não faz o menor sentido. Qualquer empresa privada só vai aceitar receber essa tecnologia se tiver garantias financeiras, e o governo não pode se comprometer com isso”, observa.
Outros projetos
Do ponto de vista governamental, Moura reconhece que haverá ainda um “gargalo para definir exatamente qual a próxima missão e com quais recursos”. Além da validação da PMM para satélites com mais de 500kg, o presidente da AEB conta que há planos de produzir uma plataforma semelhante, porém, menor, para satélites na faixa dos 100kg.
Tendência citada por ele são os nanossatélites, que têm o tamanho de uma caixa de sapato e estão passando por um processo de padronização das peças, o que torna o dispositivo mais acessível tanto do ponto de vista econômico quanto tecnológico. Um exemplo são os cubeSats, uma subcategoria que é construída por módulos de cubos de 10cm cada. Um cubo pesa cerca de um quilo. No dia 22 de março último, o País colocou em órbita, a partir de uma base russa, o NanoSatC-Br2, um cubeSat desenvolvido pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em parceria com o Inpe.
“O mercado de nanossatélites está crescendo muito. Acredito que, assim como sempre fomos muito exitosos na atividade aeronáutica, também podemos ser na espacial. Temos um território gigantesco, diversas necessidades de aplicação, temos indústria, nossa engenharia é forte. Só está faltando colocar uma liga em tudo isso e desenvolver o mercado brasileiro”, acredita Moura.
Outro projeto em andamento é a retomada do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão, onde se pretende investir no lançamento de satélites de pequeno porte. “Temos instalações que servem hoje para os pequenos lançadores brasileiros, usando estrutura governamental. O que queremos é entrar no mercado de lançamentos comerciais, abrindo para a iniciativa privada”, afirma o presidente da AEB.
O mercado mundial movimenta em torno de US$ 370 bilhões ao ano, com previsão de pelo menos triplicar esse valor em 20 anos, já que cada vez mais há equipamentos que dependem de comunicação com satélite.
Em fevereiro do ano passado, o Presidente da República promulgou o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com os Estados Unidos para uso da base de Alcântara e proteção da propriedade intelectual dos EUA, o que possibilitará o lançamento de satélites comerciais. Atualmente, cerca de 80% dos veículos lançados possuem algum componente estadunidense. Sem esse acordo, nenhum satélite com tecnologia norte-americana poderia ser lançado.
Baixos recursos
Desde 2013, quando o orçamento do Ministério alcançou a maior cifra, R$ 9 bi, o setor vem acumulando perdas. Em 2015, houve um corte de 20% dos recursos ao Ministério da Ciência e Tecnologia. A situação se agravou em 2016, com a fusão ao Ministério das Comunicações e a aprovação da Emenda Constitucional 95, que limitou por 20 anos os investimentos públicos. Em 2018, com um orçamento de R$ 3,4 bi, as perdas foram maiores que 50%. Para este ano, o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa), do governo federal, aprofunda as restrições impostas à ciência, tecnologia & inovação (CT&I), reservando R$ 2,735 bi, as chamadas despesas descricionárias. Segundo levantamento feito pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) na época em que o Ploa foi enviado ao Congresso Nacional, em 31 de agosto último, o orçamento sofrerá uma redução de 10,27%, se comparado com 2020.
É possível perceber o desmonte no orçamento da AEB. Entre 2013 e 2015, o valor liberado anualmente foi de cerca de R$ 300 mil. Em 2018 e 2019 foram R$ 182 mil, em cada ano. Em 2020, foram somente R$ 124 mil. Para 2021, caso o Ploa seja aprovado como está, será de apenas R$135 mil. Até o fechamento desta matéria, o Congresso Nacional ainda não havia votado o orçamento.
Já o volume de contratos assinados para projetos de inovação com empresas caiu 23% entre 2015 e 2017, segundo balanço da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Nesse período aumentou drasticamente o contingenciamento dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal fonte de financiamento de pesquisas tecnológicas no País, chegando a 60%.
Neste ano, o fundo tem R$ 5,3 bilhões, e a comunidade científica vem se mobilizando para garantir sua integridade. Até o fechamento da matéria, comemorava uma vitória: o fato de o Congresso Nacional ter barrado os vetos presidenciais à Lei Complementar 177/2021, que altera o FNDCT. Caso o Congresso não o fizesse, o contingenciamento de 90% dos recursos do fundo voltaria a vigorar, o que reduziria para apenas R$ 500 milhões a verba para a ciência. Somando os cortes de 2020, seriam R$ 9 bilhões a menos para o FNDCT.
Cientistas lutam desde então contra desmonte na área. Entre as mobilizações que contribuíram para pressionar os parlamentares está um manifesto assinado por 11 ex-ministros da Ciência e Tecnologia. Um dele é Sergio Rezende, que comemora: “Foi a principal motivação do manifesto e fomos atendidos pelo Congresso. A comunidade científica está risonha, esperando que isso se confirme, que não haja mais revezes. As coisas mudam totalmente de perspectiva com essa decisão.”
Naquele período, lançou um plano de ação de CT&I – com muitas convergências com as propostas do projeto "Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento" para o setor –que estabelecia áreas prioritárias, entre elas o Programa Espacial Brasileiro. “Não era uma carta de intenções. Era uma política pública. Tinha metas, participantes e, o principal, orçamento. O Amazônia-1, inclusive, está no plano”, observa.
Também estava prevista a criação da Alcântara Ciclone Space, para o desenvolvimento do foguete ucraniano Ciclone 4, ao lançamento de satélites. O projeto não teve continuidade, e a empresa foi extinta em 2019 para dar lugar a novos acordos, como o com os EUA. “O governo atual quer retomar Alcântara com os americanos. É uma configuração muito ruim do ponto de vista da soberania”, aponta.
A AEB rebate as acusações, afirmando que o País continuará responsável pelo centro. “Será como um aeroporto, onde há empresas nacionais e internacionais. Não há qualquer comprometimento de soberania ou de propriedade intelectual brasileira", afirma Moura.