Jéssica Silva
Um ano após o cancelamento do acordo de compra pela norte-americana Boeing, a Embraer, principal exportadora de bens de alto valor agregado do Brasil e terceira maior fabricante de jatos comerciais no mundo, apresenta números de produção e pedidos do primeiro trimestre de 2021 que, mesmo diante da pandemia, demonstram ânimo no setor.
Com cerca de 3.500 engenheiros hoje no quadro de 18 mil funcionários, a Embraer entregou, de janeiro a março últimos, um total de 22 aeronaves para os mercados de aviação comercial e executiva, segundo dados informados pela empresa ao Jornal do Engenheiro. Só na aviação comercial, que concentra operações na cidade de São José dos Campos, foram entregues nove jatos – quatro a mais do que no mesmo período em 2020.
Além disso, possui 272 pedidos firmes, ou seja, que têm contratos assinados, de jatos comerciais (os E-Jets) para entrega ao longo de duas décadas. Em abril, anunciou a venda de 30 jatos modelo E195-E2 – para um cliente não revelado – e, em meados de maio, fechou dois contratos com os Estados Unidos, somando mais 17 aeronaves comerciais do modelo E175, com as primeiras unidades a serem entregues em 2022.
No entanto, o segmento segue fortemente impactado pela pandemia de Covid-19. O balanço divulgado está 18% abaixo em comparação ao primeiro trimestre de 2019, e a empresa ainda reportou prejuízo líquido de R$ 489 milhões.
Segundo a Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata, na sigla original em inglês), o impacto causado pela pandemia no ano de 2020 foi o maior e mais duradouro da história (veja na imagem abaixo). E mesmo com o avanço da vacinação contra a Covid-19 em diversos países, em 2021, os serviços aéreos internacionais permanecem próximos do mínimo, marcando 48% do considerado normal em 2019.
No Brasil, com as aeronaves em terra, a contribuição do setor ao Produto Interno Bruto (PIB) recuou de 1,4% em 2019 para 0,3% em 2020, segundo estudo da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear).
Sem plano estratégico
Observador atento da situação da empresa, o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marco Aurélio Cabral Pinto não vislumbra exatamente um céu de brigadeiro para a Embraer, apesar das encomendas divulgadas. “Está em cima de um caminho que já se encontra esgotado. O impacto dessas notícias todas é para o mercado financeiro justificar subida e descida de ações. Quando a gente olha para a empresa mesmo, a gente não vê futuro”, assevera.
O consultor do projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento”, da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), avalia que a companhia estava nessa mesma situação, “sem perspectiva”, no início das negociações com a Boeing. O “avião-chefe” da empresa nacional, a linha de aeronaves da família E-Jets, enfrentava saturação no mercado. “Não havia naquele momento uma percepção por parte dos interesses financeiros que tomavam conta da Embraer de uma estratégia para o futuro”, conta Cabral Pinto.
O engenheiro explica que a empresa brasileira se encontra sozinha no mercado desde que sua concorrente direta, a canadense Bombardier, foi vendida à Airbus. Na sua opinião, com o cancelamento unilateral da compra pela Boeing – cujo desfecho a Embraer quis não comentar ao JE –, a empresa tem a possibilidade “de se mostrar resiliente” se adotar como estratégia um planejamento de longo prazo.
“O Brasil se beneficia extraordinariamente da presença da Embraer no nosso território. Ela tem a possibilidade de organizar o setor aeroespacial brasileiro e prepará-lo para concorrência internacional. Hoje, temos diversas iniciativas em ciência e tecnologia, projetos, ideias que podem ter valor comercial, e aí a Embraer poderia, com o apoio do Estado brasileiro, se alçar numa condição de holding, fortalecer o seu papel, ampliando as suas competências e lançando uma luz sobre os projetos e pesquisas.”
Na visão do especialista, seria imprescindível política de defesa nacional, protagonista em compras, e de incentivo para potencializar as exportações. Caso contrário, alerta, corre o risco até de desaparecer. “Não há possibilidade da gestão atual, que é feita com base numa estratégia de curto prazo, encontrar caminhos que reportam para o longo prazo e, portanto, a participação do Estado brasileiro através principalmente do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] e do Ministério da Defesa é fundamental para garantir o futuro da Embraer”, afirma.
Engenharia nacional
A turbulência entre Boeing e Embraer, conforme abordou o presidente do SEESP, Murilo Pinheiro, em artigo, coloca em pauta a engenharia nacional do setor. “Ainda que a Embraer seja uma empresa privada e tenha optado pelo caminho que a levou a esse ponto, continua tendo a mesma importância estratégica para o País e seu avanço tecnológico”, defendeu Murilo à época.
Alegando crise trazida pela pandemia e devido aos gastos com a negociação com a Boeing – a empresa teve um custo de R$ 485,5 milhões para separar a aviação comercial, que seria vendida, dos setores de defesa e jatos executivos –, a Embraer realizou em 2020 corte no quadro de funcionários, com Plano de Demissão Voluntária (PDV) nos setores de engenharia e produção.
Parte do quadro remanescente de engenheiros da companhia, Roberto Bizon Garcia, vice-presidente da Delegacia Sindical do SEESP em São José dos Campos, atesta que é difícil avaliar se há estabilidade dos empregados na área. Ainda assim, ele acredita que é pelas mãos dos engenheiros brasileiros que a Embraer pode se fortalecer. "Durante as tratativas com a Boeing, nós tivemos visitas em que eles conheceram como nós seguimos com alguns processos principalmente na área de ensaios, os sistemas de testes em solo. Eles adoraram, porque realmente é um diferencial imenso”, pontua ele, que tem mais de 30 anos na casa.
Com sua experiência, Bizon avalia: “Aquilo que a Embraer representa no mundo, o que ela tem de cliente, o que já conquistou, o que tem de capilaridade e o que ela pode apoiar não têm comparação.”
A ponderação vai ao encontro do que Cabral Pinto classifica como papel da empresa, uma espécie de “software industrial-tecnológico” capaz de detectar antecipadamente nichos de mercado e, de maneira rápida e barata, transformar essas oportunidades em produtos de elevada qualidade e desempenho.
“A nossa engenharia tem um protagonismo formidável nesse sentido, porque ela tem sido capaz de fazer essas apostas tecnológicas com grande sucesso. Então a gente poderia dizer que os nossos engenheiros são os melhores especuladores tecnológicos no setor aeronáutico do mundo”, afirma.
Segundo a empresa, a Embraer tem buscado novas formas de inovação na obtenção de financiamentos, parcerias estratégicas e novas formas de negócios, com foco em desenvolver diversificação e conquistas de outros mercados. Isso garantiu 40% da receita da companhia em 2020.
Nos últimos 20 anos, foram desenvolvidas e certificadas 20 novas aeronaves, e o centro tecnológico trabalha também com projetos nas áreas de defesa e segurança, mobilidade aérea, aeroespacial, entre outros de base tecnológica.
Desde 2001, possui o Programa de Especialização em Engenharia (PEE), constantemente atualizado para adequar a especialização dos profissionais às necessidades e desafios da empresa, abordando hoje temas como indústria 4.0, ciência dos dados, prototipação de projetos em impressora 3D. Mais de 1.600 profissionais já passaram pelo programa que, segundo a companhia, se tornou a principal porta de entrada de engenheiros e engenheiras.
Novidade no ar
De olho num mercado pós-pandemia, a startup Desenvolvimento Aeronáutico (Desaer), aposta na evolução da Aeronave de Transporte Leve (ATL), por considerar a alta demanda por aviões de pequeno porte ocasionada pela própria pandemia, além da necessidade de atualização do setor, com transportes no ar das décadas de 1960 e 1970.
Quem conta é o sócio-fundador da Desaer, Evandro Fernandes Fileno, ex-funcionário da Embraer. O projeto da startup com previsão de voo em 2023 é o ATL-100, aeronave não pressurizada, com trem de pouso fixo, asa alta e turboélice, que pode atender demandas de passageiros e cargas em cidades pequenas.
Segundo levantamento realizado pelo empreendimento, o País utiliza cerca de 67 pistas das mais de mil que possui para o pouso da aeronave em questão. “Nos Estados Unidos tem bastante disso, você chega com um voo numa cidade grande e depois pega um avião para ir a outras. Aqui no Brasil não tem isso. A pessoa desce em Guarulhos, pega a Dutra e vai até a cidade dela. Às vezes o voo leva duas horas, e ela leva mais três horas de estrada depois, porque não tem voo para a cidade”, aponta Fileno.
Esse é o primeiro grande projeto da startup, incubada em São José dos Campos, pela Fundação Casimiro Montenegro Filho, e que está em busca de investidores hoje para poder contratar mão de obra e ampliar os trabalhos. No ano passado, a Desaer assinou joint venture com o Centro de Engenharia e Desenvolvimento de Produto (CEiiA) de Portugal, onde já tem um escritório de engenharia funcionando e, futuramente, segundo Fileno, uma fábrica.
“Como essa aeronave faz voos curtos, não atravessa oceano, planejamos ter uma fábrica no Brasil para atender as Américas, em Portugal para atender Europa e, quem sabe, uma na Ásia”, almeja.
A Desaer tem hoje sete sócios e 56 colaboradores, muitos deles com atuação na aeronáutica do exterior. “A engenharia do Brasil é referência [...], a maioria dos grandes projetos no mundo sempre tem engenheiro daqui, a mão de obra brasileira é bem qualificada e respeitada”, atesta Fileno.