Jéssica Silva
Contra a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981) e a própria Constituição Federal, está na pauta do Congresso Nacional a possibilidade de flexibilização ou mesmo dispensa do licenciamento ambiental. Relativo à matéria, o então Projeto de Lei (PL) 3.729/2004, modificado pelo substitutivo do relator, o deputado Neri Geller (PP-MT), foi aprovado na Câmara em 13 de maio último, por 300 votos a 122. A proposição, muitas vezes debatida e alterada durante a tramitação, encontra-se agora no Senado para deliberação, como PL 2.159/2021, sob relatoria da parlamentar Kátia Abreu (PP-TO). Em seu cerne, regras gerais para facilitar o licenciamento ambiental a empreendimentos e, em alguns casos, permitir sua dispensa total.
Para a agrônoma Luciana Barbosa, coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) em Meio Ambiente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o PL é um retrocesso e, associado à redução drástica da dotação de recursos aos órgãos responsáveis pela fiscalização ambiental e combate a incêndios florestais, dá margem a degradação ainda maior. Em 2021, o orçamento federal previsto para o Instituto Nacional do Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) teve queda de 27,4%, segundo análise do Observatório do Clima.
“O licenciamento é um procedimento previsto na Política Nacional do Meio Ambiente que visa estabelecer mecanismos de controle das ações potencialmente poluidoras [...] em que um órgão competente vai avaliar a solicitação, a atividade impactante e passar por todas as licenças previstas na Resolução do Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente]. É extremamente importante todo esse crivo”, explica ela, que é ainda presidente da Associação Brasileira de Limnologia, ciência que estuda águas continentais.
Para o consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), Maurício Guetta, os principais efeitos do PL serão “o aumento no desmatamento da Amazônia e outros biomas, a proliferação de desastres ambientais, o descontrole de todas as formas de poluição e consequente ameaça à saúde humana”. Ele pontua: “Trata-se do projeto mais nocivo ao meio ambiente e às populações afetadas por empreendimentos desde 1988.”
Autolicenciamento
Um dos pontos polêmicos do PL, a Licença por Adesão e Compromisso (LAC) é um meio de viabilizar instalação, ampliação e operação de atividade ou de empreendimento mediante autodeclaração, apelidada de “autolicenciamento” pelas entidades do setor ambiental.
“A LAC prevê que o empreendedor, a partir de um formulário eletrônico disponível na internet, possa solicitar a sua própria licença. Os requisitos para que isso ocorra e quais empreendimentos podem utilizar [esse mecanismo] serão definidos pelos próprios órgãos”, explica Sílvia Cappelli, diretora-presidente da Escola Superior da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa).
O texto é genérico, como aponta ela, que acredita que serão facilitadas licitações a empreendimentos de qualquer tipo, e não apenas para os de baixo impacto. “A LAC é mais do que uma licença simplificada, não tem nenhum critério. Quem vai dizer qual é a classificação da atividade é o próprio órgão licenciador. Não há nenhuma obrigação para o empreendedor”, destaca.
O resultado, na avaliação de Cappelli, que é procuradora de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, será uma “guerra interfederativa”. “Empreendedores vão buscar fazer seu licenciamento onde for mais fácil, onde houver menos requisitos, porque isso implica menos custos”, critica. E ressalta: “O PL rompe um sistema que decorre de uma estrutura constitucional de repartição de competências. Popularmente falando, cada um vai fazer o que bem entender.”
Passando a boiada
O texto aprovado na Câmara dispensa licenciamento de obras de saneamento básico, de manutenção em estradas e portos, de distribuição de energia elétrica com baixa tensão, usinas de triagem de resíduos sólidos, entre outras, além daquelas que sejam consideradas de porte insignificante pela autoridade licenciadora ou que não estejam listadas como de licenciamento exigido.
Os critérios para a definição de tais atividades, no entanto, não foram discutidos. “Não há uma justificativa técnica para isso [...]. A dispensa de licenciamento é totalmente inconstitucional”, vaticina Cappelli.
“São atividades muito impactantes e que utilizam recursos hídricos e solos, os dois elementos que mais demandamos e que estão entre os mais degradados atualmente em nível global”, aponta Barbosa, recordando o triste histórico de rompimento de barragens no País. Para a especialista, essas dispensas “estão apenas a serviço do ganho econômico”, ao encontro do objetivo expresso em reunião pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de aproveitar o momento de crise para “passar a boiada”, .
Barbosa avisa: “A poluição de corpos hídricos, solos, redução de área de mata, como a que está ocorrendo na Amazônia, vão impactar o balanço de carbono e também, imensamente, a forma como o Brasil vai responder aos acordos internacionais.”
Mais mudanças nefastas
De acordo ainda com o PL, o parecer de autoridade envolvida não necessariamente é vinculado à liberação da obra ou empreendimento. Significa que caso o licenciamento prejudique um bem ou patrimônio cultural, a manifestação do órgão tutor não o inviabiliza. Isso pode colocar em risco terras indígenas ou quilombolas, segundo Cappelli. “Atualmente o licenciamento pressupõe parecer de uma autoridade de competência da tutela daquele bem, como a Funai [Fundação Nacional do Índio]”, informa.
Os parlamentares favoráveis à proposição apoiam-se na Lei Complementar 140, que dispõe sobre a divisão de competências, o que, na análise da diretora da Abrampa, é uma falácia. A norma em questão, segundo ela, coloca a decisão do órgão licenciador acima dos técnicos apenas em casos de obras em divisas de estados, por exemplo, mas não desqualifica o parecer.
A natureza jurídica do licenciamento ambiental é também alterada pelo projeto, conforme destacado pela diretora-presidente da Abrampa. O PL o entende não mais como procedimento administrativo, mas como processo. Conforme Cappelli, a consequência prática dessa aparente pequena alteração é a “incidência do contraditório e ampla defesa”, pressuposta neste último caso. “Se isso passar, haverá muitos entraves, tudo vai ser questionado, e nós entendemos que pode haver a substituição de decisões fundamentadas na ciência e na técnica por decisões políticas”, detalha a procuradora.
Viabilizar o debate
Isso evidencia que o Senado não pode e não deve funcionar apenas como um “chancelador” da Câmara. Quem afirma é Antonio Augusto de Queiroz, o Toninho, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), sobre as perspectivas de votação do PL 2.159/2021.
Na sua visão, as entidades contrárias ao PL “devem atuar para que o projeto passe pelo maior número possível de comissões, inclusive como forma de viabilizar o debate. Trata-se de uma matéria de grande relevância, que precisa de tratamento adequado”.
Para Cappelli, uma lei federal sobre o tema ou normas gerais são interessantes ao setor, mas para dar segurança jurídica, colaborando com o desenvolvimento sustentável. Portanto, o inverso do proposto. Barbosa concorda e, nessa direção, propugna pela retomada dos investimentos à proteção e preservação ambiental.
Foto do destaque: Ibama
Atenciosamente, Comunicação SEESP.