Soraya Misleh
Na contramão das tendências mundiais de necessária transição energética de fontes poluentes para renováveis, o Brasil abre mão de suas vantagens potenciais e avança no desmonte do setor elétrico.
Nessa direção, o Congresso Nacional aprovou em junho último a Medida Provisória 1.031/2021, que possibilita a privatização da Eletrobras, após inclusão de um bando de jabutis (temas sem conexão com a proposição central para atender interesses específicos). A MP aguarda agora sanção presidencial.
Murilo Pinheiro, presidente do SEESP, classificou como “absurdo” esse retrocesso histórico. Fundada em 1962, a Eletrobras, enfatizou, “responsável por 30% da geração do País, detentora de várias usinas hidrelétricas e tendo a seu cargo a gestão de grande parcela do armazenamento de água utilizada no setor, é mais estratégica do que nunca para a soberania e o desenvolvimento nacionais”.
Roberto D´Araujo, ex-membro do Conselho de Administração de Furnas (2003-2005) e diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina), desmonta os argumentos utilizados no Parlamento para a aprovação da “MP do Apagão” – apelido mais que conveniente –, os quais denotam profundo desconhecimento do setor.
Um deles é de que as térmicas, mais poluentes e caríssimas, seriam necessárias, pois sem elas a indústria não cresceria. “Se fosse assim, Alemanha, Estados Unidos, China e Espanha estariam perdidos, pois há tempos substituem suas fontes fósseis por renováveis.” D´Araujo continua: “Nenhum país de base hidrológica como o Brasil privatizou.”
Entre os impactos esperados, aumento nas tarifas. “A Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] fala que vão custar ao País, até novembro, R$ 9 bilhões para serem despachadas. Quem vai pagar é o consumidor. A conta vai ser enorme”, alerta Ronaldo Bicalho, pesquisador do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estudos indicam elevação de 14% na tarifa, somando, nos 30 anos das concessões que serão estabelecidas a partir da privatização, prejuízo da ordem de R$ 450 bilhões nas contas de luz.
O consumidor já está pagando mais, com o acionamento de térmicas em função da crise hídrica. Valor que se elevará ainda mais a partir deste mês. Para o período, a Aneel anunciou, em 29 de junho, reajuste de 52% na tarifa extra da "bandeira vermelha nível 2".
São Pedro não é culpado
D´Araujo refuta a alegação de que “capitalizar” e “modernizar” a Eletrobras abrindo-a à iniciativa privada seriam as alternativas para assegurar investimentos necessários e, assim, superar a crise hídrica – cuja culpa recaiu mais uma vez sobre São Pedro, como um revival do que ocorreu no processo de desestatizações nos anos 1990.
O diretor do Ilumina desmonta essa falácia: “Dados históricos de afluências dos rios revelam que entre 1951 e 1956 houve período crítico pior do que o atual.”Ele lembra que ter momentos de escassez não é novidade. “Em um país tropical como o nosso, a variação é muito grande.”
O que poderia ser devidamente compensado, já que o País, conforme o especialista, tem registro de períodos de sobra de energia. “Entre 2009 e 2011 houve abundância de água. A hidrologia foi exuberante. ” Além disso, informa, o racionamento de 2001 resultou em queda de consumo mantida até hoje em 15%. No entanto, frisa, “o planejamento foi deixado para lá e não foram feitos os investimentos”.
Não obstante, agravante à crise hídrica apontado por D´Araujo é o desmatamento, que diminuiu a umidade na Amazônia e, assim, os “rios voadores”. A referência, conforme o Projeto Rios Voadores, voltado à educação ambiental, é aos “cursos d´água atmosféricos, formados por massas de ar carregadas de vapor, muitas vezes acompanhados de nuvens, e que são propelidos pelos ventos” para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, transformando-se em chuva.
Insegurança máxima
O cenário pode se complicar ainda mais caso avance no Congresso o Projeto de Lei 414/2021, que objetiva “aprimorar o modelo regulatório e comercial do setor elétrico com vistas à expansão do mercado livre”. Na concepção de Bicalho, fórmula para o fracasso.
Ele ilustra com o que aconteceu nos Estados Unidos: “No final dos anos 1990, em 26 estados americanos haviam sido implementados programas de desregulamentação e adotada a livre escolha do fornecedor. A crise na Califórnia em 2000-2001 e, na sequência em 2003, o blecaute gigantesco em todo o país fizeram com que esse número caísse para 16. Isso enterrou a reforma liberal nos Estados Unidos. O consenso que havia em torno da abertura dos mercados elétricos desapareceu.”
O Texas é exceção entre os estados americanos que seguem essa tendência e viveu no início deste ano apagões. Coube ao poder público socorrê-lo – como se viu também na série de apagões no Amapá como consequência da privatização, cuja ajuda veio da Eletrobras.
Segundo estudo intitulado O futuro é público, elaborado por pesquisadores reunidos no Instituto Transnacional, com apoio de diversas associações, não só nos Estados Unidos, mas também na Europa, Ásia e América do Sul mais de 2.400 cidades em 58 países reestatizaram serviços públicos entre 2000 e 2019, após observarem o fracasso nas privatizações. A edição brasileira do documento foi realizada pelo Comitê Nacional em Defesa das Empresas Públicas e pela Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal.
Não só as experiências internacionais, mas as lições do passado são ignoradas. Os técnicos encontraram na Câmara e no Senado ouvidos moucos. A promessa agora é de judicialização. Afinal, como observou a senadora Simone Tebet (MDB-MS) ao dar seu voto contrário, a MP se tornou um “monstrengo” com os jabutis incluídos, “imoral e inconstitucional”.
“Em pouco mais de uma hora, os senadores mudaram uma termelétrica de lugar durante a sessão”, assombra-se Clarice Ferraz, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretora do Ilumina. Engenharia e, portanto, planejamento e impactos não foram sequer considerados nessa troca, sob a promessa de cargos feita pelo governo federal, como denunciou o senador Izalci Lucas (PSDB-DF) à mídia no dia 23 de junho último, e atendimento a demandas contrárias ao interesse nacional. O parlamentar foi outro dos que votaram contra a “MP do Apagão”.
Em face das aberrações, Ferraz acredita que as medidas podem não sair do papel. “A fragilização é tão grande que o investidor internacional não vai querer vir para cá. É insegurança jurídica máxima”, enfatiza.
Confira os principais problemas da "MP do Apagão" clicando aqui.
Problemas estruturais
O resultado, na análise de Bicalho, é que “o Brasil está cada vez mais exposto ao risco hidrológico. Não fez a transição energética necessária, e o Estado perde sua capacidade de enfrentar essa situação”. De acordo com o pesquisador da UFRJ, em vez de fazer frente aos problemas estruturais do setor – a crise hídrica, a necessidade global de mudar a matriz e a falta de institucionalidade –, soma a esse conjunto agenda extemporânea, na contramão do mundo, de desregulamentação do setor e privatização.
JE 543 o diretor do Sindicato dos Engenheiros no Estado de Santa Catarina (Senge-SC) e presidente da Associação Brasileira de Engenheiros Eletricistas (Abee), José Antônio Latrônico Filho. “Daqui a dez ou 15 anos a matriz energética vai mudar e teremos as modalidades chamadas intermitentes – eólica e fotovoltaica. Os grandes reservatórios da Eletrobras, com energia renovável e barata, podem complementar tal geração e minimizar o uso das termelétricas, mais caras. Teríamos uma energia 100% verde, podendo usufruir de melhores condições de financiamento internacional”, pontuou.
A Eletrobras sob controle do Estado seria fundamental à transição energética, como salientou ao
Com a opção pelo caminho inverso, o racionamento, diz Bicalho, está no radar. “Devemos perguntar se vamos fugir do grande caos. A situação do setor é muito grave.”
Autossabotagem
Na ótica da professora da UFRJ, o Brasil tem se autossabotado. O País que dispõe, como lembra, de elevada insolação, ventos com altíssimo fator de capacidade de produção de energia limpa e 12% da água doce do mundo teria mais facilidades em “realizar a necessária transição energética, uma questão ecológica, equivalente a nova revolução industrial. Mas deixa tudo ser poluído” e opta por termelétricas, carbonizando sua matriz, em vez de investir em fontes renováveis, como solar e eólica. “Parece um ecocídio.”
A Bloomberg New Energy Finance, em relatório de 2018 citado por Ferraz, aponta o Brasil como potencial protagonista na transição energética global. No documento, a organização observa que no País “as fontes de energia de baixo carbono atualmente representam 84% da capacidade instalada, e a hidrelétrica, com um total de 102GW, é de longe a maior contribuinte. Embora a energia hídrica continue sendo uma fonte crítica até 2040, com 111GW em operação, outras tecnologias assumem a liderança em termos de novas adições: a energia solar, com 116GW de nova capacidade instalada, e a eólica, com 16GW”.
Pela sua previsão, o Brasil mais que dobraria a participação das renováveis não hidrelétricas até 2040. O impulso leva em conta, sobretudo, os “projetos fotovoltaicos (PV) de pequena escala, que respondem por 95% do total (111GW). As baterias e a capacidade flexível, praticamente inexistentes hoje, aumentam para 8% do total em 2040 e 14% em 2050”.
Marco legal como estímulo
Apesar dos reveses com a condução da política para o setor elétrico, entidades brasileiras das áreas de energia solar, tecnológica e de defesa do consumidor ainda apostam nesse estímulo, a partir da aprovação do Projeto de Lei 5.829/2019, que institui novo marco regulatório da minigeração e da microgeração distribuída. De autoria do deputado federal Silas Câmara (Republicanos/AM) e relatoria do deputado Lafayette Andrada (Republicanos/MG), que apresentou substitutivo ao PL, a proposição aguarda constituição de Comissão Especial na Câmara para sua análise.
A Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) enviou, em maio último, ofício a Andrada colocando-se à disposição para contribuir na discussão e expressando apoio integral ao substitutivo. Para Carlos Augusto Ramos Kirchner, diretor do SEESP, é importante aprovar o marco legal para “dar segurança jurídica a quem vai investir em geração distribuída, principalmente a proveniente da energia solar”. Ele explica: “Até então o que rege esse processo é a Resolução 482/2012 da Aneel.”
Carta destinada aos parlamentares, assinada por diversas entidades que apoiam a proposição, aponta os benefícios ambientais e socioeconômicos da geração própria de energia solar – segmento capaz de criar “mais de 1 milhão de novos empregos, R$ 139 bilhões em novos investimentos e aumento da arrecadação pública até 2050”.
Segundo o texto, estudos da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) demonstram que esta “evitará mais de R $ 173 bilhões em custos que seriam cobrados na conta de luz dos consumidores até 2050. A geração própria de energia reduz a utilização de termelétricas e diminui a terrível bandeira vermelha”.
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