Deborah Moreira
Quem tiver maior capacidade de gerar combustível por fonte renovável sairá na frente na corrida pelo hidrogênio verde (H2V), alternativa promissora para substituição dos combustíveis fósseis no mundo. A tecnologia representa amplas oportunidades aos engenheiros.
O H2V emite CO2 renovável, que não causa efeito estufa, além de não produzir componentes tóxicos como monóxido de carbono, hidrocarboneto, óxido de nitrogênio e material particulado, podendo ser adotado em veículos leves e pesados, substituindo, inclusive, o diesel e eliminando o material particulado.
Dados de 2019, divulgados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), demonstram que 83% da matriz energética brasileira é renovável,enquanto no mundo esse número cai para 27%. Além da hidroelétrica, que é predominante, como aponta relatório da consultoria McKinsey, a participação que mais cresce é dos recursos eólico e solar, que representam respectivamente 10% e 2% da capacidade brasileira de geração em 2020, devendo atingir 30% e 17% em 2040, motivados principalmente pela redução do custo dessas fontes. Em relação à capacidade total de geração, o Brasil é o sétimo país no mundo (175GW em 2021) e o terceiro que mais produz energia renovável, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.
Tanto do ponto de vista econômico quanto tecnológico a adoção do hidrogênio verde pode representar um salto ao País. Especialistas ouvidos chegam a comparar o momento atual com o Programa Nacional do Álcool (Proálcool), iniciativa governamental que estimulou a produção do etanol gerado pela cana-de-açucar para substituir a gasolina, devido à crise mundial do petróleo durante a década de 1970.
Agora, diante de uma nova crise de combustíveis e a guerra na Ucrânia, além da pressão climática – em que o governo brasileiro se comprometeu com uma meta mais ambiciosa de redução das emissões de carbono, passando de 43% para 50% até 2030, durante a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), em Glasgow, na Escócia –, o setor vislumbra a chance de investir não só em uma, mas em diversas rotas tecnológicas para alcançar escala e poder atender tanto o mercado interno quanto o externo.
No mundo o hidrogênio verde já é visto como o petróleo do futuro. Para o Pacto Ecológico Europeu de 2019, representa elemento fundamental para alcançar a meta de descarbonização dos países do bloco, que têm o objetivo de instalar eletrolisadores com capacidade de produção de energia de 6GW de H2V até 2024 e 40GW até 2030. O eletrolisador é um dos equipamentos utilizados para obtenção do hidrogênio a partir da quebra da molécula da água (H2O) por meio de um processo chamado eletrólise. Para garantir o selo verde, esse equipamento precisa ser alimentado por uma fonte de energia renovável.
Mercado global
Um dos países que mais tem investido é a Alemanha, que já possui 300 postos de abastecimento veicular a hidrogênio, como informou Alessandro Perecin, diretor executivo da Weber Ambiental, durante o seminário “Energia e hidrogênio rumo ao carbono zero”, realizado no dia 22 de março último pela Secretaria Municipal de Mudanças Climáticas de São Paulo. A empresa de origem alemã é responsável pelo tratamento de resíduos sólidos domésticos em Bragança Paulista, no interior paulista, que anunciou a obtenção de biometano a partir de processos de gaseificação e, futuramente, de hidrogênio verde. Além do tratamento dos resíduos, a companhia pretende substituir motores a diesel por motores GNV biometano de uma frota de 1.400 ônibus de uma empresa local, além da certificação do combustível verde para exportação.
“Temos uma parceria com o governo alemão para desenvolver um piloto para certificação de geração da energia verde a partir do biometano. Enquanto o Brasil se estrutura para receber esse mercado, a ideia é que esse material seguirá até o porto, onde será diluído em amônia, transportado para Hamburgo, Roterdã, na Alemanha, onde será transformado novamente em hidrogênio verde”, completou Perecin. Dos 100% de resíduos potenciais para exploração de biogás, 10% vêm dos resíduos sólidos domésticos e 90% do agropecuário. Segundo estimou o diretor executivo da Weber, atualmente há um desperdício de 100 milhões de metros cúbicos de biogás ao dia.
Em outubro de 2021, a Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ) anunciou um investimento de 34 milhões de euros para o desenvolvimento de projetos de produção de hidrogênio verde no País, durante evento organizado pela Câmara Brasil-Alemanha (AHK). Segundo a informação, além da construção e instalação de eletrolisadores de alta capacidade, o governo também quer colaborar com o marco regulatório brasileiro, que vem sendo desenvolvido a partir do Programa Nacional de Hidrogênio (PNH2).
O engenheiro mecânico Gustavo Pires da Ponte, superintendente adjunto da Superintendência de Planejamento da Geração da EPE, revela que o governo federal prepara um documento amplo detalhando a política desde a governança do programa até as alternativas para subsídios e isenções. “Queremos discutir com a sociedade, que inclui academia e industria, a partir de comitês temáticos para agregar contribuições, enxergar os gargalos e remover barreiras”, diz.
Ainda sem data para ser lançado, o documento reúne mais de 50 diretrizes, as quais foram apresentadas pelo Ministério de Minas e Energia (MME) em 4 de agosto do ano passado aos membros do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). Em cooperação com os ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e do Desenvolvimento Regional (MDR), com apoio técnico da EPE, elas estão estruturadas em seis eixos temáticos: fortalecimento das bases tecnológicas (para desenvolver possíveis rotas tecnológicas); capacitação de recursos humanos (alguns cursos estão sendo estruturados pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – Senai); planejamento energético (antever desafios para facilitar o desenvolvimento); arcabouço legal e regulatório (identificar o que já existe e ajustar as demandas do mercado); crescimento do mercado e competitividade (remover barreiras, prover informações para o mercado, estimular pesquisa e debater questão tributária para o desenvolvimento); e cooperação internacional (troca entre países como Alemanha, Reino Unido e Dinamarca).
“Temos que enxergar o que o mercado internacional precisa, olhando inclusive para a logística”, aponta o engenheiro da EPE, referindo-se a um dos problemas ainda a serem equacionados: o transporte do hidrogênio. Ele exige tanques muito específicos para evitar vazamentos, resfriados a uma temperatura muito baixa, o que acaba consumindo muita energia. Por isso, uma das alternativas é diluí-lo em amônia para o transporte.
“Atualmente, o Brasil ainda não possui uma economia comercial estabelecida de hidrogênio energético. Praticamente toda a produção vai para aplicações petroquímicas como branqueamento, refinamento, hidrólise, amônia. Não temos ainda os meios de produção de hidrogênio para fins energéticos, devido a problemas como de transporte e armazenamento”, explica Mario Leite Pereira Filho, professor e pesquisador do Laboratório de Usos Finais e Gestão de Energia (LGE) do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), .
Doutor em Engenharia Elétrica, ele comenta que se trata de um campo vasto para a engenharia: “A tendência que se desenha é que daqui a 20 anos o hidrogênio será constituído como uma cadeia permanente para substituição definitiva dos fósseis. Terá presença nesse mercado quem está trabalhando para aprender hoje. O esforço de engenharia brasileira precisa ser agora.” É o que aponta reportagem publicada no site da Associação Brasileira de Energia de Resíduos e Hidrogênios (Aberh), a qual revela que "quem deseja pleitear um emprego no setor deve buscar conhecer mais as empresas, se aprofundar no que é exigido para o trabalho e investir em capacitação".
Etanol é vantagem nessa corrida
Outra rota tecnológica para se obter o H2V é a partir de Célula a Combustível de Óxido Sólido (SOFC), dispositivo que converte energia química em elétrica. “São usados combustíveis líquidos ou gasosos que vão para a célula, compartimento que fica dentro do veículo. Ou seja, o veículo é uma miniusina de produção de hidrogênio que, por sua vez, vai mover um motor elétrico, que vai transmitir energia para as rodas e só vai soltar pelo escapamento vapor d’água e CO2 renovável”, detalha o engenheiro mecânico Olímpio de Melo Alvares Junior, fundador e membro da Comissão de Meio Ambiente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP).
Ele avalia que essa rota é a mais provável que se torne realidade no Brasil. “Está se utilizando o etanol como combustível renovável. Ou seja, deverá ser um carro que abastecerá normalmente com etanol, aproveitando a estrutura já existente da cadeia produtiva do País”, observa.
Alvares Junior se refere a um projeto da montadora japonesa Nissan, em parceria com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), para o desenvolvimento de um veículo elétrico movido a hidrogênio verde a partir do etanol. A cooperação foi firmada em 2019 e renovada no ano passado. Segundo Airton Cousseau, presidente da Nissan Mercosul e diretor-geral da empresa no País, os testes devem ser concluídos até 2025.
“Quando eu ouvi falar desse projeto, e que foram engenheiros brasileiros que o desenvolveram, senti ainda mais orgulho do nosso pessoal e do País. Estou muito entusiasmado, porque esse não é um negócio para a Nissan. É para o Brasil e para o mundo”, destaca.
Na visão do analista do IPT, para o Brasil é estratégico investir nesse projeto: “Diferentemente dos combustíveis fósseis, o hidrogênio pode ser obtido com fontes locais e nos libertar a longo prazo da pressão geopolítica das jazidas de combustível, se tiver desenvolvido uma cadeia produtiva.”
Pereira Filho estima que em até duas décadas os problemas de transporte e armazenamento terão sido equacionados. Já Alvares Junior acredita que é preciso uma politica energética de longo prazo tanto para o biogás, como biometano, quanto para a célula de combustível, que favorecem o desenvolvimento dessa tecnologia.
“Precisa ter uma cadeia de peças, com incentivo fiscal para a produção, reduzir custo e aumentar a escala, como foi com o Proálcool. O etanol era mais caro que a gasolina. Hoje não tem mais subsidio e é mais barato”, compara o membro da comissão da ANTP, que vaticina: “O hidrogênio ainda não percorreu toda a curva de aprendizado tecnológico, como foi com o etanol. Ainda tem muita coisa para ser aprendida e aperfeiçoada.” Aos engenheiros brasileiros, um desafio e uma oportunidade.
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