Rita Casaro
Assegurar o direito humano e constitucional à liberdade de expressão e ao mesmo tempo combater a disseminação de desinformação que prejudique indivíduos ou a sociedade como um todo. Cumprir ao menos em parte essa tarefa que nada tem de simples é o objetivo do Projeto de Lei 2.630, de 2020, que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Apelidado de “PL das fake news”, nasceu originalmente com a intenção de definir o que seriam conteúdos falsos e impedir a sua circulação em redes sociais. Após dois anos de debates, a proposição ganhou contorno diferente e visa regulamentar o funcionamento das plataformas digitais, como Facebook, YouTube e WhatsApp.
“É uma série de regras que tornam a sociedade mais empoderada para enfrentar o atual cenário de desinformação sem entrar na discussão muito difícil de qual conteúdo pode ou não circular com base num conceito genérico”, resume a jornalista Renata Mielli. Uma das coordenadoras do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, integrante da Comissão Permanente de Comunicação do Conselho Nacional de Direitos Humanos e membro da Coalizão Direitos na Rede, ela participou ativamente da discussão do projeto e avalia que o resultado alcançado traz avanços relevantes. “É um passo fundamental para regular essas empresas privadas que fazem a mediação de boa parte do debate público”, ressalta.
Apesar do bem-sucedido esforço de diálogo para aprimorar o PL, sobram resistências ao tema. A tentativa de aprovar o regime de urgência para que a matéria pudesse entrar na pauta da Câmara, o que exigia maioria absoluta (257 votos), foi derrotada em 6 de abril último. Conforme Mielli, o objetivo era garantir a apreciação do projeto em tempo hábil para que a regras começassem a valer antes do período eleitoral, quando “a disseminação da desinformação, o uso e o mau uso das plataformas se intensificam”.
Para além da divergência no Congresso, o PL enfrenta a oposição das chamadas big techs às quais é dirigido, que lançaram forte ofensiva para ganhar a opinião pública contra a aprovação. “Esse é um comportamento que elas têm não só no Brasil, mas em todos os países do mundo que estão adotando legislações com o objetivo de impor qualquer regulação à sua atividade”, informa Mielli, que hoje pesquisa o tema como doutoranda no Programa de Ciências da Comunicação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). “A opacidade e a ausência de regras são o que garante o modelo de negócios que faz com que as companhias mais lucrativas do mundo, à frente até de petrolíferas, sejam essas que vivem da mineração de dados, da nossa presença intensa, comentando, compartilhando, produzindo e ajudando a monetizar”, completa.
Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, Mielli aborda ainda a polêmica sobre liberdade de expressão, direito que, em sua visão, embora fundamental, precisa conhecer limites para não ferir interesses mais amplos da sociedade. Confira a seguir e no vídeo ao final.
Como nasceu, o que propõe o Projeto de Lei 2.630, apelidado de “PL das fake news”, e por que é importante a sua aprovação?
O projeto recebeu esse apelido de “PL das fake news” porque nasceu no contexto do início da pandemia, num momento no qual a sociedade estava discutindo e muito preocupada com a disseminação de fake news. Então um conjunto de parlamentares que tem o que eles chamam de gabinete compartilhado, senador Alessando Vieira (PSDB/SE) e deputados Tábata Amaral (PSB/SP) e Felipe Rigoni (União Brasil/ES), apresentou na Câmara e no Senado esse projeto de lei que tinha como foco o combate às fake news. Na primeira versão, havia um conceito de fake news que gerava uma série de consequências, envolvendo obrigações das plataformas, inclusive a de fazer a moderação de certos conteúdos. Naquele momento, nós, das entidades que atuam historicamente no campo dos direitos digitais e pela democratização da comunicação, fizemos uma série de reuniões com os autores do projeto, principalmente na Câmara, onde aparentemente havia interesse e mobilização para votar. Na época, maio de 2020, o deputado Rigoni nos disse que o objetivo era aprovar em duas semanas. Era pandemia, a Câmara já estava vivendo num rito especial, as comissões não estavam funcionando, não havia possibilidade de audiência pública, mas nós conseguimos um diálogo diretamente com os deputados e iniciamos o apontamento de uma série de problemas que aquele projeto tinha e dos riscos que ele poderia trazer à liberdade de expressão e ao direito à comunicação. Principalmente porque, apesar da gente falar todo dia de fake news, não é algo simples de ser definido. A União Europeia e muitos pesquisadores adotam um conceito de desinformação vinculado a uma intencionalidade. Então é todo conteúdo que foi produzido com o propósito de causar dano a alguém ou a grupos ou auferir lucro. Só que, quando traduz isso para um projeto de lei, é genérico o bastante para fazer com que conteúdos que são legítimos possam ser excluídos [indevidamente] do debate público. E, uma vez definido o conceito, quem iria dizer, com base nele, o que é verdade ou mentira? As plataformas de redes sociais? [Pela redação inicial], uma empresa privada, não nacional, iria definir se determinado conteúdo poderia circular e isso seria feito com o estímulo para que retirasse o conteúdo, porque poderia ser penalizada. Nós começamos a mostrar que o tema não era tão simples e que o projeto não poderia ser aprovado em suas semanas, era cheio de complexidades. No Senado, fizemos um trabalho intenso, dialogamos muitíssimo com o autor do projeto, que entendeu e apresentou um substitutivo tirando boa parte dos problemas. Então deixou de ter como foco a discussão específica das fake news. O que a gente dizia era o seguinte: não
podemos fazer um projeto de lei que vai arbitrar sobre conteúdos que circulam na esfera pública; precisamos de um projeto que tenha como foco a regulação das atividades das plataformas. Sem debate público no Senado, o PL foi aprovado com problemas, mas muitas melhorias. Foi para a Câmara, onde passou por dezenas de audiências públicas que o foram aprimorando, e temos um projeto hoje que é um passo fundamental para regular essas empresas privadas que fazem a mediação de boa parte do debate público.
Quais são as regras propostas?
Um eixo do projeto são obrigações de transparências, ou seja, como atuam na mediação e no fluxo dos conteúdos que circulam no seu interior. Quais os critérios? Quantos conteúdos o Facebook modera (retira do ar, reduz alcance, rotula) num determinado período? E essa moderação é motivada pelo quê? Ordem judicial, política própria? Quantos usuários elas têm? Nós não sabemos, elas consideram esse um dado sensível, mas para a sociedade é fundamental. Para eu saber se a quantidade de moderação tem impacto na informação que está circulando, preciso saber a quantidade total. Qual a composição das equipes que moderam conteúdo? Falam como língua nativa o português? Ou estão em países como Filipinas e Indonésia, não falam português, não entendem a cultura local? Tem também um conjunto grande de obrigações que chamamos de “devido processo”. Essas plataformas precisam ser mais abertas ao questionamento que o usuário tem o direito de fazer quando tem seus conteúdos moderados, uma explicação com começo, meio e fim. Se cometeu um erro, eu preciso ter o direito de contestar a decisão e, se a minha contestação se provar correta, a plataforma deve reparar o dano por ter, por exemplo, rotulado um conteúdo como desinformação. [Prevê-se ainda] a transparência de impulsionamento e de publicidade, porque a gente sabe que fake news recebe muito dinheiro para viralizar. Quem está fazendo esse tipo de impulsionamento? É uma série de regras que tornam a sociedade mais empoderada para enfrentar o atual cenário de desinformação no interior das plataformas sem entrar na discussão muito difícil de qual conteúdo pode ou não circular com base num conceito genérico.
O que o projeto diz sobre a circulação de conteúdo por aplicativos como WhatsApp ou Telegram?
O projeto tem toda uma seção para definir regras e funcionamento de mensageria privada, como WhatsApp, Telegram e Signal. As regras valem para plataformas com mais de 10 milhões de usuários no Brasil, as pequenas não precisam obrigatoriamente seguir as determinações. Esses são serviços de mensagem criptografados, que têm múltiplas funções hoje, desde a mensagem interpessoal que eu troco com você e que é totalmente privada até uma dimensão de comunicação de massa, porque tem grupo de 100 mil pessoas, não é mais interpessoal. Essa dupla característica é que propicia que esses sejam espaços de grande viralização de desinformação. O PL tenta resgatar o caráter interpessoal dos serviços de mensagem privada, que precisam ser protegidos com todos os níveis de segurança, mas que devem ter a dimensão interpessoal e mecanismos que evitem a viralização de conteúdos. [Para isso], propõe a redução dos encaminhamentos, a proibição do uso de ferramentas de disparo em massa e [adota] mecanismo que é semelhante ao grampo telefônico para que, em caso de denúncia e investigação judicial, se possa fazer a busca dos metadados e chegar à pessoa que disparou a mensagem ilícita originalmente. Também tem uma parte para regular os serviços comerciais, contas que são usadas muitas vezes como forma de burlar [os limites] do privado. São questões, de novo, envolvendo os procedimentos relacionados à operação da plataforma.
Quem não gostou da ideia dessa regulamentação foram as chamadas big techs, que se manifestaram contrariamente ao projeto, lançando mão de suas próprias armas. Uma evidência era a prioridade a conteúdos contrários ao PL quando se fazia uma busca no Google, por exemplo.
Elas usaram desinformação para enfrentar o PL 2.630. Esse é um comportamento que tem não só no Brasil, mas em todos os países do mundo que estão adotando legislações com o objetivo de impor qualquer regulação à sua atividade. Porque a opacidade e a ausência de regras são o que garantem o modelo de negócios que faz com que as companhias mais lucrativas do mundo, à frente até de petrolíferas, sejam essas big techs que vivem da mineração de dados, da nossa presença intensa, comentando, compartilhando, produzindo e ajudando a monetizar essas empresas que não prestam nenhum tipo de informação sobre suas atividades à sociedade.
Sim, as empresas estão descontentes. E não era só [o resultado que se obtinha] quando fazia a busca. Teve um período em que ao entrar no Google, havia um link abaixo da ferramenta de busca [com chamada contrária ao PL]. Fizeram anúncio nos jornais dizendo que, em vez de combater fake news, o PL iria acabar com a padaria do bairro.
Diante dessa complexidade e oposição poderosa, como fica a tramitação do projeto? Havia um esforço para que fosse votado antes das eleições deste ano. Ainda há essa perspectiva?
Como o projeto tramitou basicamente durante o regime de funcionamento especial, foi instituído um grupo de trabalho para discutir a legislação da internet, o GTNet. O debate foi realizado com a participação de parlamentares de todas as matizes ideológicas que estão no Congresso e foram realizadas dezenas de audiências, chegando-se ao relatório do deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), que foi aprovado nesse GTNet. Em função do período especial, para entrar na pauta precisaria ter aprovação do regime de urgência. Havia todo um compromisso do presidente da Câmara, Arthur Lira, e também por parte do governo, que é contra o projeto, com a aprovação da urgência, porque [a medida] não debate o mérito, faz apenas com que seja discutido no Plenário. A votação da urgência estava então mais ou menos acordada, o que é comum no Congresso e não é compromisso com a votação favorável ao tema. Ocorre que o 2.630 foi o primeiro projeto polêmico e de interesse do governo que foi votado após a janela partidária. Na véspera da votação, embora tivesse o apoio do governo, parlamentares governistas mais radicalmente contra o projeto procuraram o Planalto para que operasse pela não aprovação da urgência. Foi ali um teste de fidelidade da base que tinha se movido para o Governo. A urgência não foi aprovada; teve a maioria (249 a 207), mas como exigia quórum qualificado, faltaram sete votos. A urgência pode ser posta em votação novamente, mas me parece que não foi a decisão nem do relator, nem do presidente, que estão avaliando alternativas que permitam a votação antes da eleição. Mas estamos em 26 de maio (data da entrevista ao JE), e não conseguimos encontrar um caminho para restabelecer a tramitação. Seria importantíssimo ser aprovado, porque a ausência de uma legislação que defina regras para a atividade das plataformas num período eleitoral (em que a disseminação da desinformação, o uso e o mau uso das plataformas se intensificam) faz com que alguém tenha que tomar as decisões, o que [caberá ao] Judiciário, que é muito discricionário. Com a legislação, teria de fato um parâmetro para balizar a ação de juízes no Brasil inteiro, e não ficarmos à mercê da interpretação de cada juiz, do TSE, dos TREs, o que causa grande insegurança no processo eleitoral.
Em meio a essa discussão no Brasil, surgiu o anúncio de que o bilionário Elon Musk havia decidido comprar o Twitter com o objetivo de tornar a plataforma livre de qualquer controle. No Brasil, as entidades que defendem liberdade de expressão também defendem regulamentação dos meios de comunicação em geral. Por que é necessário ter regras?
Nós defendemos a liberdade de expressão, que não fique nenhuma dúvida com relação a isso. Há anos temos feito o debate sobre a necessidade de se ampliar a liberdade de expressão, indispensável a qualquer sociedade democrática. No entanto, como no Brasil não se discutem muito esses assuntos no mérito, no conceito, há uma visão equivocada de que a liberdade de expressão é um valor absoluto e está acima de outros direitos. Isso não é verdade. Liberdade de expressão não é guarda-chuva para o abrigo de crimes de toda sorte que podem ser cometidos pela manifestação das pessoas. Racismo não é liberdade de expressão; homofobia não é liberdade de expressão; discurso de ódio contra segmentos vulneráveis da sociedade, por exemplo, os indígenas, não é liberdade de expressão. Isso é um tema bastante polêmico. A nossa Constituição defende a liberdade de expressão, que está colocada no artigo 5º de uma maneira preferencial de fato. Aprovada em 1988, traz uma mensagem política à sociedade: “a partir de agora, estamos fechando a porta de uma fase da história que violava direitos fundamentais de forma sistemática; estamos encerrando um período em que se promovia censura contra veículos de comunicação, contra a imprensa, contra jornalistas, em que se perseguiam e matavam pessoas porque manifestavam opinião política”. E não estabeleceu limites claros ao exercício da liberdade de expressão. Em função dessa visão preferencial, hoje tem um segmento grande da sociedade que usa a liberdade de expressão para promover discursos que não são protegidos por ela. Quando você sai às ruas e defende abertamente a cassação dos membros do STF [Supremo Tribunal Federal], a volta da ditadura, a tortura ou faz manifestação homofóbica, racista, nada disso está em acordo com a liberdade de expressão. É um terreno pantanoso e, mais que regras, precisamos definir parâmetros de forma pública, e deveria haver espaços multissetoriais que funcionassem como um certo observador de discursos que extrapolassem [o que foi estabelecido]. Isso não está acontecendo só no Brasil, o mundo inteiro vive essa pandemia de desinformação. Quando o Musk usa esse exemplo, que é parecido com o [Donald] Trump e [Jair] Bolsonaro, coloca a liberdade de expressão no campo do direito individual. Olhando as declarações de direitos humanos lá atrás, tinha uma dimensão individual muito forte, mas, com a complexidade dos meios de comunicação e o desenvolvimento da sociedade, não podemos deixar de encarar a dimensão coletiva da liberdade de expressão e a ideia de que o direito do indivíduo termina quando você tem um direito coletivo mais amplo. Eu tenho direito de dizer que a vacina pode causar autismo ou que mata, tudo isso é uma grande mentira, mas eu tenho direito de não vacinar meu filho. Será que tem mesmo? A vacina é uma questão de saúde pública, se cada pessoa tomar a decisão individualmente, doenças erradicadas vão retornar, foi o que aconteceu com o sarampo. Essa visão do indivíduo sobre o coletivo é inclusive estimulada por essas plataformas que são espaços individualistas, é a self, o eu, a minha imagem. Esse é o objetivo do Musk, permitir que discursos que favorecem seus interesses políticos e econômicos possam circular sem qualquer tipo de anteparo, em detrimento de interesses mais gerais da sociedade.
Curiosamente, o PL 2.630 defende inclusive interesses de usuários como esses que reivindicam total liberdade, já que banimentos e suspensões teriam que se basear em regras mais claras.
Isso é muito grave. A gente viu no Facebook Papers, nas várias denúncias que foram divulgadas pela funcionária [Frances Haugen] da empresa, que o Facebook fazia vistas grossas para contas de personalidades que tinham muito alcance. Então determinadas pessoas tinham uma margem maior para ferir os termos de uso da plataforma que os seres comuns. Por que baniu o Trump? Foi só aos 45 minutos do segundo tempo, quando já sabiam que não seria mais presidente. Mas, por mais que a gente não goste do Trump, é razoável que uma empresa privada tenha o poder de banir a conta de um presidente da República de qualquer país que seja? Com base em qual regra? E liberaram discurso de ódio e violentos contra russos. Não estou defendendo a Rússia e não quero entrar na polêmica da guerra, mas é razoável que uma empresa privada tenha tanto poder sobre a esfera pública de debate? Por isso precisamos de regras. Essas plataformas não podem ter mais poder ainda. O senso comum [indica] fazer com que retirem fake news. Mas quem vai decidir o que é fake news, a própria plataforma? E se forem responsabilizadas pelo conteúdo, qualquer coisa que parecer problemática vão começar a retirar. Inclusive, o PL 2.630 tem uma sessão para uso de contas de agentes públicos, que devem sofrer moderação também, porém, se suspender a conta de um deputado qualquer e ele conseguir uma ordem judicial provando que aquele conteúdo não agredia ninguém, não continha desinformação, a plataforma é obrigada a restituir a conta. Por outro lado, tem uma série de obrigações mais duras para agentes públicos, inclusive com proibição de monetização de contas. São regras que criam um ambiente mais ético e mais republicano por parte dos usuários e das plataformas, que terão que respeitar as leis e os ritos legais.
Assista à entrevista
Foto no destaque: Renata Mielli / Acervo pessoal