Rita Casaro
A árdua luta pela sobrevivência da população brasileira na atualidade está demonstrada em inúmeros dados, inclusive pelo flagelo da fome que atinge 33 milhões de pessoas, e é visível a qualquer um que transite pelas cidades do País, tomadas pela pobreza crescente. No entanto, a compreensão dos fatores que resultam nesse quadro e a trajetória da derrocada socioeconômica nacional ganharam uma importante tradução com o estudo produzido pelos professores João Saboia, François Roubaud, Mireille Razafindrakoto, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ), e pelo economista João Hallak Neto, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Ampliando o escopo do já conhecido “índice de miséria”, que se baseia nas taxas de inflação e desemprego, com a introdução das variáveis rendimento do trabalho, inadimplência e subutilização da mão de obra, os pesquisadores desenvolveram uma forma de retratar as condições de vida dos brasileiros, mensurando-as numa escala de zero a 100 na qual quanto maior o número, pior o resultado. Utilizando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) contínua e da Confederação Nacional do Comércio, o trabalho apura a variação do bem-estar do povo brasileiro entre 2012 e o primeiro trimestre deste ano.
"São mostrados os últimos três governos do País, com variações dentro de cada um, mas o fato concreto é que, em termos médios, a piora é clara. Você tem 36 na média do governo Dilma, 54 no Temer e o índice médio do atual governo é 62, que é o nível mais elevado de toda a série que conseguimos construir", destaca Saboia. Conforme ele, aspecto evidente, segundo o levantamento, é que o índice de miséria cresce quando a economia vai mal, daí a disparada na crise observada em 2015 e 2016, com leve melhora no período seguinte em que houve crescimento fraco e o salto recorde em 2021, quando atingiu 87.
Professor emérito de Economia, mas com origem na Engenharia Eletrônica, com graduação e mestrado pela UFRJ e doutorado pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, Saboia alerta para a necessidade de enfrentar questões caras à categoria para reverter o cenário desalentador. É fundamental ampliar a produtividade do trabalho e do capital – quesito em que o Brasil perde inclusive para países latino-americanos de padrão de desenvolvimento similar –, bem como investimentos privados e públicos, o que tem sido inviabilizado pelo teto de gastos que engessou ação do Estado após a aprovação da Emenda Constitucional 95, em 2016.
Confira na entrevista a seguir e no vídeo ao final.
O que é o chamado “índice de miséria” e o que ele demonstra?
Esse índice foi criado nos anos 1970 pelo economista americano Arthur Okun. Está baseado no que a gente chama de “Curva de Philips”, muito conhecida na economia, que mostra uma relação inversa entre inflação e desemprego. Você mede as duas taxas, soma e chega ao índice de miséria. Para dar uma ideia desse índice hoje no Brasil: a taxa de desemprego é da ordem de 11%, a de inflação anual também da ordem de 11%. Se somar, tem 22%, que seria o índice de miséria atualmente. Quando se olha para trás, em 2014, período em que se estava quase entrando numa crise, mas com a economia ainda razoavelmente bem, tinha desemprego da ordem de 6% e uma inflação de 6%. Ou seja, o índice de miséria era muito menor que atualmente. Esse seria o pano de fundo do trabalho que a gente vem realizando.
Por que o senhor e os seus colegas decidiram trabalhar com outros indicadores, além de inflação e desemprego, para chegar ao índice? E que outras inovações foram feitas em relação ao modelo tradicional?
Essas duas variáveis – desemprego e inflação – são muito importantes e dão uma ideia de como a população está vivendo, mas nós achamos que faltavam outras, como renda e inadimplência. Pegamos o rendimento médio real do trabalho, acompanhando os trimestres desde 2012. Outra mudança foi que, em vez de desemprego, usamos a taxa de subutilização, que inclui o desalento, pessoas que desistiram de procurar emprego porque não encontram e aquelas que estão trabalhando poucas horas (menos do que gostariam). Na inflação, optamos pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), que tem mais sentido para as pessoas de renda mais baixa que o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo). Nós trabalhamos com dados trimestrais da PNAD contínua do IBGE, exceto inadimplência, que é da Confederação Nacional do Comércio. [Por fim], em vez de ficar somando taxas, achamos melhor transformar o índice em um número entre zero e 100 para ficar mais fácil [de compreender]. Transformamos cada uma das variáveis num valor entre zero e 100, somamos, dividimos por quatro, e tem-se a média.
Que quadro socioeconômico é apontado por esse levantamento desde 2012?
Conforme mostra o gráfico (veja abaixo), o índice de miséria cresce quando a economia vai mal. Até 2014, a economia estava crescendo e as variáveis mostram esse resultado; [o índice] atingiu algo perto de 14. Mas 2015 e 2016 foram anos muito ruins, com crise econômica séria; a inflação aumentou, o desemprego disparou, então vê-se o reflexo disso no índice, que dispara [chegando perto de 70] até o início do governo Temer. [Entra] um período mais favorável, 2017, 2018 e 2019, quando se tem crescimento fraquinho, mas há melhora, com flutuação em torno de 50. Aí vem 2020 e 2021, e há a disparada, chegando a 87 no final do ano passado. Tem um recuo mínimo no início deste ano e não sabemos exatamente como vai caminhar ao longo de 2022. São mostrados os últimos três governos do País, com variações dentro de cada um, mas o fato concreto é que, em termos médios, a piora é clara. Você tem 36 na média do governo Dilma, 54 no Temer e o índice médio do atual governo é 62, que é o nível mais elevado de toda a série que conseguimos construir.
Há estudos que, ilustrando outra faceta nefasta das condições socioeconômicas do Brasil, apontam um número alto e crescente de famílias que vivem sem renda do trabalho. Como esse dado poderia alterar a apuração do índice de miséria?
Quando você trabalha com a PNAD, com dados trimestrais, ela só divulga o rendimento do trabalho. Para discutir a questão da miséria e da pobreza no País, não se pode ficar restrito a isso, há aposentadorias, bolsa-família. Estamos pensando em fazer uma versão nova do índice, mas trabalhando com dados anuais para poder incorporar esses rendimentos. Temos que reconhecer que o auxílio emergencial foi essencial na sobrevivência das pessoas em 2020, quando houve queda de 4% no PIB (Produto Interno Bruto). Vamos trabalhar com todos os rendimentos e tentar olhar para a pobreza, verificando com quanto participam as pessoas que estão na base da pirâmide.
O índice de miséria consegue apontar as desigualdades sociais, além de dar esse quadro geral da situação da população?
Hoje em dia existem vários métodos para se estudar pobreza. Por exemplo, definir qual o percentual de pessoas que estão abaixo de uma certa linha. E outras medidas, [por exemplo], qual o percentual de renda dos 20% mais pobres. Uma questão importante que estamos com a ideia de incorporar no nosso índice é a desigualdade. Isso é tão importante no Brasil que Índice de Gini (utilizado para medir a concentração de renda) virou matéria de primeira página de jornal.
Como essa aferição pode ser utilizada para a reversão desse quadro? Quais “as pistas” apontadas para que se estabeleçam políticas de combate à pobreza a partir do índice apurado?
O índice é calculado com variáveis, o que indica que estas estão piores ou melhores. Mas vamos pensar na economia, no País e ver o que podemos fazer. Temos problemas seríssimos. Uma questão que me atrai muito e que certamente também preocupa muito os engenheiros é a produtividade que, comparativamente ao padrão mundial, é baixa. Ao pensar a produtividade do trabalho, o PIB por trabalhador, quando se faz a comparação internacional, o Brasil vai mal das pernas, mesmo em relação aos nossos irmãos latino-americanos. Às vezes está melhor um pouquinho que algum país, mas está pior certamente que Chile, Argentina, Uruguai e México, que têm padrão de desenvolvimento parecido. Se olhar para EUA e Europa, aí é covardia. Temos que melhorar, até porque o que se paga a quem trabalha está associado à produtividade. Para melhorar salários, renda, diminuir pobreza, tem que melhorar a produtividade do País. Isso tem um lado que é o do capital, mas o outro [diz respeito a] melhorar a mão de obra. E tem que começar lá atrás, com uma educação fundamental de alto nível, que tem que ser pública, ainda que complementada pela privada. Isso é nível municipal; não adianta só culpar o governo federal, são os prefeitos, os governadores, é o presidente, todo mundo tem responsabilidade, temos que colocar energia nisso. E obviamente os empresários também têm que fazer o papel deles, que é modernizar seus processos produtivos e investir mais. Temos um problema sério de investimento muito baixo. Como vai aumentar a taxa de investimento com essa confusão por que o País está passando, com esse quadro político terrível de insegurança? Para o investimento privado ser realizado, tem que ter boas expectativas, um quadro que atraia os empresários, mas tem o lado do investimento público no qual estamos paralisados pelo teto de gastos (instituído pela Emenda Constitucional 95 em 2016). Temos que enfrentar essa questão, não se consegue fazer a economia andar, está praticamente parada desde 2017. Precisamos ter uma retomada de investimentos públicos e privados, não tem como fugir. Tem que gastar para fazer investimento em educação, saúde e os necessários para que o País possa olhar para a frente e pensar “nosso futuro vai ser melhor”.
Assista à íntegra da entrevista
Foto no destaque: João Saboia / Acervo pessoal