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Revisão do Plano Diretor precisa tornar São Paulo mais justa e inclusiva

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Soraya Misleh

 

Aprovado em 2014 e em vigor até 2029, o Plano Diretor Estratégico (PDE) do Município de São Paulo não garantiu questões-chave previstas em suas diretrizes e objetivos estratégicos, como as áreas verdes que a cidade precisa e moradia à população de baixa renda próxima a locais que já contam com infraestrutura e malhas de transporte coletivo. Para especialistas, desafio central a se enfrentar é fazer com que prevaleça o interesse social, e não a especulação imobiliária.

 

Essa questão tem sido objeto de debates e controvérsias na revisão do PDE. Prevista no parágrafo único do artigo 4º. da lei que o aprovou (no. 16.050, de 31 de julho de 2014), esta ocorreria inicialmente em 2021. Ampla mobilização assegurou seu adiamento, em função da pandemia de Covid-19, de modo a garantir participação social.

 

Secretário adjunto José Armênio de Brito Cruz: rico processo participativo. Foto: SMULAgora a revisão encontra-se em sua terceira etapa. Nas duas fases anteriores, segundo o secretário municipal adjunto de Urbanismo e Licenciamento de São Paulo, José Armênio de Brito Cruz, foram 2.500 contribuições recebidas, número semelhante ao processo de confecção do plano. “Centenas são originadas de audiências públicas e reuniões setoriais com subprefeituras. Todas foram respondidas e classificadas. Temos uma equipe totalmente dedicada à participação social. É um processo bastante rico”, assegura.

 

A partir da elaboração de diagnóstico e orientação quanto ao que seria contemplado na revisão participativa, seguida dos debates e recebimento de propostas nas fases anteriores, a Prefeitura de São Paulo apresentou minuta do Projeto de Lei (PL) da Revisão Intermediária do PDE, a qual reúne 50 artigos e está aberta a consulta pública online até o próximo dia 17 de fevereiro. A conclusão do processo foi prorrogada para 31 de março, quando o PL deverá ser encaminhado à Câmara Municipal. Conforme o vereador Eliseu Gabriel (PSB), no Legislativo, a proposição deve ser avaliada e “muito provavelmente” haverá nova etapa participativa, com audiências públicas em várias regiões de São Paulo, antes de ser colocada em votação.

 

Confira aqui a minuta e participe da consulta pública.

 

Objetivos estratégicos e diretrizes

 

O texto apresentado pelo Executivo mantém os princípios que orientam a política de desenvolvimento urbano. Entre os primeiros, constantes do artigo 5º. da lei, estão garantir as funções sociais da cidade e das propriedades urbana e rural; equidade e inclusão social e territorial; direito à cidade e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; e gestão democrática. Os objetivos estratégicos, identificados como corretos e sem necessidade de adequações, são definidos de modo a cumprir com esses princípios.

 

Embora no PDE sejam apresentadas diretrizes a “uma cidade sustentável”, como uso racional de recursos naturais, “em especial da água e do solo”, na minuta da revisão, é proposto passo adicional: sua integração aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e que a aplicação de políticas setoriais contemple ações para enfrentamento das mudanças climáticas. Significa, como pontua o secretário, integrar o Plano Diretor aos acordos internacionais que a cidade assinou para garantir seu alinhamento aos ODS.

 

Ivan Carlos Maglio: cidade precisa de muito mais áreas verdes e parques. Foto: Portal IEA/USPConsultor de planejamento urbano e ambiental e mudanças climáticas, o engenheiro civil Ivan Carlos Maglio participou de debates e audiências públicas durante o processo de revisão. Para ele, que é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), é fundamental adequar o PDE à necessidade de proteção socioambiental em meio às mudanças climáticas, o que requer mapeamento da vulnerabilidade da Capital.

 

A ausência de metas e estudos prévios é um grande problema que considera no plano em geral. Quanto ao aspecto em questão, o especialista constata: com chuvas extremas, há locais que antes não inundavam e estão enfrentando esta realidade. “A cidade é pouco resiliente e precisa de muito mais parques e áreas verdes. São Paulo já tem problemas, e eles vão se agravar. A engenharia vai ter que pensar nas condições de resistência das infraestruturas e obras.”

 

No diagnóstico feito pela Prefeitura sobre a aplicação do PDE de 2014 a 2021, consta que estavam previstos 167 parques, no entanto, apenas oito foram ou estão sendo implantados. “A infraestrutura verde está no Plano Diretor desde 2002 [o anterior], mas não recebe a atenção devida nem os recursos para a ação acontecer”, destaca Maglio. E o modelo de concessão adotado para tanto, na análise de Maglio, não é o ideal. Ele cita como exemplo, os conflitos em relação ao Parque Ibirapuera, desde o início de sua entrega à iniciativa privada. O vereador Gilberto Natalini tentou barrar a concessão e, juntamente com o Ministério Público, teve que garantir na justiça regras claras à manutenção e conservação ambiental do parque e seu uso público. O que se verifica, ao contrário de garantir as áreas verdes que a cidade precisa, é, segundo o pesquisador do IEA, “devastação do território lindeiro, com muito mais impermeabilização”.

 

Um exemplo na contramão do desenvolvimento urbano sustentável é, como menciona, a aprovação em dezembro último da expansão da Marginal Pinheiros [em oito quilômetros] até Jurubatuba. “Esse projeto de intervenção urbana vai levar verticalização para a zona sul, área de mananciais.”

 

Adensamento populacional

 

Maglio enxerga “muita coisa no plano que seria positiva se tratada com seriedade”. Por exemplo, o correto conceito de “maior aproveitamento urbanístico onde há transporte de massa”, no entanto desvirtuado por construções de “alto padrão” nesses Eixos de Estruturação da Transformação Urbana – o que, acredita, “em vez de ser corrigido, tem sido fomentado”. O Executivo tem como horizonte mudanças voltadas a assegurar adensamento populacional nessas áreas e enfrentar o déficit habitacional estimado em 800 mil moradias na Capital. Estes são, conforme Brito Cruz, os principais pontos que devem ser focados na revisão do PDE.

 

Contudo, o secretário diverge sobre a razão por que tal objetivo não se cumpriu. O motivo foi, conforme sua afirmação, a impossibilidade de realizar o adensamento populacional nas Macroáreas de Estruturação Metropolitana (próximas aos rios Tietê, Pinheiros, Jurubatuba, Tamanduateí). Para tanto, demandava-se a implementação dos Programas de Intervenção Urbana (PIUs) – que agora a Prefeitura sugere que se designem como planos. Houve judicialização “à revelia de nossa compreensão, por questões ambientais”, e isso teria afetado, ainda de acordo com Brito Cruz, todo o crescimento da cidade. 

 

Sem cumprir seus objetivos estratégicos, Plano Diretor não respondeu à verticalização desenfreada na Capital e acentuou desigualdades. Foto: Jeferson ChomaO mercado imobiliário, descreve, que vivenciou boom a partir de 2018, com queda de juros e possibilidade de aumento do crédito, voltou seus investimentos totalmente para os eixos de transporte. “O adensamento construtivo se fez mais presente que o populacional. O objetivo de colocar pessoas junto aos eixos não foi cumprido”, reitera.

 

Na direção de corrigir esse desvio, a Prefeitura pretende utilizar ferramentas e instrumentos de regulação do desenvolvimento urbano, como aumentar o coeficiente de aproveitamento [que determina o potencial construtivo] para habitações de interesse social e conceder benefício na chamada outorga onerosa (como desconto zero) para usos não residenciais perto dos eixos, de modo a “trazer o emprego para perto da moradia”.

 

Outra intenção é limitar, na revisão, a área mínima de uma unidade habitacional a ser construída em 35m2. “A experiência na pandemia mostrou que não dá para ter unidades com 15 a 18m2.” Na adequação do PDE, explica Brito Cruz, não haverá proibição de construções menores, mas “isso não será fomentado como elemento de política pública”.

 

Especulação imobiliária

 

Maglio, por outro lado, considera que há um conflito entre interesse social e especulação imobiliária. “Há fenômeno de financeirização do mercado, o cenário é de terra arrasada. O zoneamento é muito permissivo, com gabarito ilimitado, coeficiente de aproveitamento maior.” Ele é categórico: “Sua aplicação tem se dado de maneira muito exagerada, em áreas de interesse ambiental, muito grandes, atingindo vilas ou bens culturais. Não é feita avaliação, nenhum estudo. Esse é o ponto mais crítico reclamado pela população em vários bairros, a qual tem feito propostas de redução das áreas nos eixos, alteração do perímetro de transformação urbana.” Mas, ressalta, “a Prefeitura pede para rever isso somente em 2030 [na discussão de um novo PDE] ou quando vier a lei de uso do solo. O plano contém um conflito territorial dentro dele”.

 

Conforme Maglio, já há casos de judicialização para impedir a destruição de quadriláteros inteiros e toda uma memória da cidade, por exemplo em bairros como Vila Madalena, Vila Mariana, Pinheiros, Butantã, Perdizes, Lapa e na zona leste.

 

O secretário refuta a existência de qualquer conflito com o mercado imobiliário, o qual enxerga como “parceiro do desenvolvimento urbano, como também o movimento social, que indica para onde [a Prefeitura deve] dirigir o investimento”. Sob essa ótica, argumenta: “A Prefeitura tem mais de R$ 1,6 bilhão no Fundo de Urbanização [Fundurb] e 30% se destinam a habitação de interesse social [HIS]. Quem deposita é o mercado imobiliário.” Maglio questiona a destinação do montante arrecadado de fato ao interesse social: “Onde tem aplicado o recurso? No Anhangabaú, para reforma absurda que custou por volta de R$ 100 milhões?”

 

Nabil Bonduki: falha na implementação. Foto: Acervo pessoalProfessor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e relator dos PDEs de 2002 e 2014, Nabil Bonduki afirma que o Plano Diretor garantiu o estímulo à HIS 1, que abarca faixa de renda inferior a três salários mínimos, a qual dependia de subsídios, programas sociais. “O poder público não investiu quase nada no período, usou muito menos que 30%. Agora criou um programa pequeno.”

 

Na sua avaliação, o problema central é a implementação falha do Plano Diretor. Ainda como exemplo, cita que para a faixa entre três e seis salários mínimos (HIS 2), a diretriz era a realização de unidades habitacionais pelo setor privado. “O mercado recebeu estímulo suficiente, inclusive financiamento federal, e produziu muitos empreendimentos na Santa Cecília, Bela Vista, Liberdade, Pari, Luz. Eram apartamentos muito pequenos, mas muito bem localizados. O problema é que a Prefeitura não fiscalizou nem definiu quem compraria, para favorecer a renda média baixa.” Consequentemente, de acordo com Bonduki, inúmeras dessas unidades acabaram “indo para a mão de investidores ou sendo vendidas para faixa de renda mais alta, por exemplo jovens de classe média e média alta”.

 

Segundo especialistas revelam em artigo publicado no portal LabCidade - Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade, da FAU-USP, a verticalização que tem se verificado não resultou em democratização do acesso aos locais com mais qualidade urbanística na Capital; pelo contrário, acentuou a desigualdade social e segregação racial: "as áreas historicamente com melhor infraestrutura da cidade são brancas e de média e alta renda" (veja infográfico abaixo) .

 

Infográfico produzido pelo LabCidade utilizando dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010). Elaboração: Pedro Mendonça/LabCidade

 

O relator do PDE identifica uma questão relativa a regulação. Como solução intermediária, segundo ele, o Plano Diretor definia apenas uma vaga de garagem, em área média de 80m2 por unidade. Para burlar a regra, nos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana, “incorporadores montaram empreendimentos com infinidade de apartamentos pequenos, de 25m2, 30m2, nos andares baixos (para Airbnb, flats), sem vagas, e nos altos, apartamentos muito grandes, de 150m2, com três vagas de garagem”. Assim, perfaziam a média de 80m2. “Mas a ideia do Plano Diretor não era só adensamento construtivo.”

 

Buscava corrigir, como continua, um problema dos últimos 40 anos, em que “bairros se verticalizaram, mas não cresceu a densidade populacional, e com esse adensamento perto do transporte coletivo para estimular seu uso. O princípio do plano é correto, mas precisaria de alguma regulação”.

 

Vagas em debate

 

Esse é outro impasse na revisão identificado pelo pesquisador do IEA: a resistência a limitar vagas de garagem nas construções, de modo a se incentivar o uso de ônibus, metrôs e trens e atender aos objetivos nos eixos. A minuta, complementa Bonduki, acerta em manter a estratégia urbanística, porém altera um pouco a regra em relação a esse ponto, na sua opinião, de forma insatisfatória. Como “solução intermediária”, aponta, no PDE foi definida uma vaga por unidade nos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana, sem cobrança de outorga onerosa.

 

Na minuta, a Prefeitura propõe a taxação para apartamentos com menos de 35m– a construtora pode optar por incluir no projeto, no entanto, uma vaga a cada 70m2 de área construída computável (excluindo as vagas) para manter a isenção. “É um equívoco, vai acabar encarecendo e reforçando sua apropriação por pessoas que não se encontram na faixa HIS 2”, critica. A mudança, acrescenta, “não guarda relação com a capacidade da infraestrutura viária onde a habitação está localizada”. O ideal, conforme Bonduki, seria que nas regiões bem servidas de transporte coletivo se restringisse ao máximo o número de vagas de garagem, e que o problema [identificado na implementação do Plano Diretor] fosse corrigido através de fiscalização ou demanda preestabelecida dentro da faixa de renda entre três e seis salários mínimos. “Mas o mercado não quer”, lamenta.

 

Eliseu Gabriel: regras à atividade econômica são necessárias. Foto: Soraya MislehCaberá à Câmara Municipal, diz Eliseu Gabriel, fazer a mediação, na busca por proteger o interesse da sociedade, sem deixar de enxergar a importância do mercado imobiliário. Porém, constata, “a atividade econômica tem que ter controle, regras, é isso que o Plano Diretor faz”.

 

Ele conclui ser importante retomar os planos de bairro para que haja consulta às comunidades de modo que a especulação imobiliária não se sobreponha e se levem em conta as particularidades locais antes de se construir impiedosamente, como tem acontecido por exemplo na Vila Madalena e na edificação de condomínios fechados totalmente apartados da cidade, “sem fachada ativa, como paredões, em que se faz tudo dentro deles, têm lojinhas, sala de ginástica”. Os planos de bairro estão previstos no PDE, mas Brito Cruz diz que na revisão devem ser de fato incorporados, via instrumentos e ferramentas, ao processo de planejamento urbano.

 

A discussão sobre qualidade de vida e desenvolvimento das cidades é contemplada no projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento”, iniciativa da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) com adesão do SEESP e demais entidades filiadas, por exemplo ao abordar a necessidade de garantir Engenharia de Manutenção também junto às administrações municipais para cuidar das obras de arte, com estrutura, equipe e dotação orçamentária próprias.

 

O sindicato tem também lutado para garantir os engenheiros que São Paulo precisa de modo a fazer frente aos inúmeros desafios da megalópole. Para Eliseu Gabriel, o SEESP pode ser protagonista importante nesse processo de revisão do PDE, ao apresentar suas propostas a uma cidade mais justa, inclusiva e humana.

 

 

Foto de capa: Visão panorâmica da cidade de São Paulo - Núcleo Pedra Grande da Serra da Cantareira / Jeferson Choma

 

 

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