Rita Casaro
Com o compromisso de atuar pautada por “excelência científica, qualidade e eficiência produtiva em cultivos e criações, sustentabilidade ambiental, além de atentar para aspectos sociais e estabelecer parcerias com o setor produtivo”, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) foi criada em 1973. Comemorando 50 anos, a instituição cuja tarefa era “desenvolver a base tecnológica de um modelo de agricultura e pecuária genuinamente tropical” tem cumprido seu papel com louvor.
Quem avalia é Silvia Massruhá, que assumiu a presidência da Embrapa em maio último, tornando-se a primeira mulher a ocupar o cargo. “Considerando-se o impacto da pesquisa desenvolvida pela empresa, que elevou o Brasil à categoria de um dos maiores players mundiais na produção de alimentos de qualidade e com sustentabilidade, desenvolvendo tecnologia e inovação para produtores rurais, é possível dizer que a ciência está cumprindo o seu papel”, afirma.
Diante do cenário no qual altíssima produção – a estimativa para 2023 é de novo recorde com a safra nacional de cereais, leguminosas e oleaginosas, totalizando 305,4 milhões de toneladas – convive com a fome que atingiu, segundo levantamento de 2022, 33 milhões de brasileiros, ela identifica como principais desafios para a atualidade “o combate à pobreza e às desigualdades”, com base na sustentabilidade ambiental, econômica e social.
Graduada em Análise de Sistemas pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, mestre na área de Automação pela Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutora em Computação Aplicada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Massruhá é pesquisadora da Embrapa desde 1989, atuou como chefe de Pesquisa e Desenvolvimento do centro de pesquisa e foi chefe-geral da antiga Embrapa Informática Agropecuária, atual Embrapa Agricultura Digital.
Nesse segmento, aponta ela, está a base para a prosperidade sustentável da agropecuária. “Por meio dos recursos da tecnologia, o produtor tem condições de ter muito mais acesso aos instrumentos dos quais precisa para obter ganhos de produtividade, sem contar as possibilidades de antever e evitar os riscos das mudanças climáticas que afetam diretamente o dia a dia do campo”, pondera.
Para Massruhá, também fundamental ao avanço do setor são os profissionais da engenharia, “detentores da responsabilidade técnica, de extrema importância no contexto da transversalidade do conhecimento”. Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, ela fala ainda sobre a presença e importância das mulheres na profissão, no agro e na Embrapa, em especial. Confira.
A Embrapa foi criada em 1973 com o objetivo de desenvolver “a base tecnológica de um modelo de agricultura e pecuária genuinamente tropical”. Ao longo desses 50 anos, esse objetivo foi atingido? Quais são as grandes realizações da instituição que a senhora destacaria?
A própria avaliação da trajetória da Embrapa responde a essa pergunta. Considerando-se o impacto da pesquisa desenvolvida pela empresa, que elevou o Brasil à categoria de um dos maiores players mundiais na produção de alimentos de qualidade e com sustentabilidade, desenvolvendo tecnologia e inovação para produtores rurais, com o objetivo de facilitar o dia a dia no campo, obter mais produtividade e competitividade, compartilhando boas práticas de produção, entre outras, é possível dizer que a ciência está cumprindo o seu papel. Quanto aos objetivos, entendemos que eles acompanham o tempo, as demandas, a transformação dos cenários que se delineiam a partir das necessidades não só do setor agropecuário, mas da sociedade, ou seja, dos mercados consumidores interno e externo. A Embrapa vive em constante evolução na busca por soluções e, para isso, mantém grupos de estudos para identificação de tendências e elaboração de estratégias que contribuam e forneçam subsídios à pesquisa. Entre as realizações de impacto mais significativo, podemos citar a Fixação Biológica de Nitrogênio (FBN), o Zoneamento Agrícola de Risco Climático (Zarc), os sistemas de integração Lavoura-Pecuária-Floresta (iLPF) e os bioinsumos, que ajudaram a desenvolver a produção agropecuária em diferentes regiões do País.
Quais são os desafios da atualidade para a agropecuária brasileira e qual o papel da Embrapa na superação deles?
Hoje, posso dizer que entre os principais desafios da Embrapa está o nosso compromisso com todos os agricultores do Brasil, de todos os portes, incluindo o combate à pobreza e às desigualdades. O papel da Embrapa é criar condições para que as soluções se materializem em benefício desse segmento, fundamental ao desenvolvimento de um país justo e igualitário. O desafio da Embrapa é ser moderna para atender às demandas de maneira ágil e de mãos dadas com os nossos 5 milhões de parceiros, produtores rurais, garantindo o seu protagonismo na agricultura mundial. Nosso foco são as transições nutricionais, energéticas e ambientais, perante as mudanças climáticas, com foco na produção de alimentos saudáveis em bases sustentáveis, ou seja, a sustentabilidade nas três dimensões: ambiental, econômica e social.
O Brasil tem registrado safras e exportações espetaculares, ao mesmo tempo que parcela significativa da população enfrenta insegurança alimentar ou mesmo a fome. Como conciliar geração de riqueza pelo agronegócio, sustentabilidade socioambiental e garantia de bem-estar?
É justamente com esse enfoque que estamos trabalhando para contribuir com a superação desse cenário. Acreditamos que a ciência tem condições de desenvolver alternativas que façam a diferença. Muitas tecnologias sociais desenvolvidas pela Embrapa ajudam na geração de emprego e renda. Por meio do método Ambitec-Agro, desenvolvido pela empresa, são medidos os efeitos sociais do ponto de vista das mudanças na qualidade de vida do adotante de suas soluções tecnológicas. No Balanço Social de 2022, foram contabilizados mais de 95 mil empregos gerados por meio do aumento da adoção das soluções tecnológicas. A tecnologia hoje não pode ser considerada moda – trata-se de uma exigência, por isso nossa meta é fazer com que diminua o gap da tecnologia digital que persiste entre os grandes e pequenos produtores. As tecnologias sociais mais acessíveis têm promovido a produção de alimentos em pequenos espaços em áreas urbanas e rurais e já contribuíram com milhões de pessoas que puderam ser inseridas no universo do empreendedorismo e do desenvolvimento comunitário. O Sistema de Produção Integrada de Alimentos, conhecido como Sisteminha, por exemplo, acaba de completar 21 anos e já está sendo adotado em outros países, onde famílias de baixa renda têm conseguido produzir por meio de estruturas simples implantadas com os recursos disponíveis. Agora estamos envolvidos em importantes frentes do Governo Federal, como a anunciada no lançamento do Plano Safra da Agricultura Familiar, que visa estimular a produção e a aquisição de máquinas e implementos específicos para agricultura familiar. A Embrapa terá papel fundamental nessas ações. O fortalecimento da rede de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) e as tecnologias para a consolidação da Ater Digital também contribuem para a inclusão socioprodutiva de pequenos e médios produtores rurais.
E como conciliar os diversos modos de produção? Que papel tem cada um?
No País, temos a produção em larga escala, em grandes áreas, em sistema empresarial, e o sistema de produção familiar. O primeiro deles, fundamental à composição do PIB e à pauta de exportações, e o segundo, voltado para a produção de alimentos, com inclusão social e a geração de emprego e renda, porém não menos importante, porque consiste na garantia dos produtos básicos que compõem a mesa do brasileiro no dia a dia. Só para se ter uma ideia, na produção de frutas e hortaliças, foram gerados 62 mil empregos nas regiões Norte, Nordeste e Sul. Essas atividades estão relacionadas a pequenas propriedades de agricultura familiar. Conciliar esses segmentos tão importantes para o desenvolvimento do agro nacional requer a adoção de políticas públicas que atendam às necessidades de cada um dos segmentos com suas especificidades dentro do contexto da produtividade, competitividade, com qualidade e sustentabilidade. O novo Plano Safra é um exemplo de incentivos, com garantia de crédito rural, ações como compras públicas, assistência técnica e extensão rural, Política de Garantia de Preços Mínimos para produtos da sociobiodiversidade, Garantia-Safra e ProagroMais. No que diz respeito à Embrapa e à pesquisa, já estão sendo discutidas ações de cooperação para o acesso a tecnologias e inovação, cujos impactos atinjam os segmentos que demandam maior atenção no setor.
A senhora tem ampla experiência e conhecimento na chamada agricultura digital. Como esse aspecto entra na agenda brasileira do setor?
A agricultura digital é um dos pilares estratégicos para adicionar valor ao sistema de produção agrícola. Cada vez mais as tecnologias digitais são fatores determinantes para agregar valor, trazer mais transparência e atender ao novo perfil de consumidor, muito mais exigente e preocupado com a nutrição e a saúde. Por meio dos recursos da tecnologia, o produtor tem condições de ter muito mais acesso aos instrumentos dos quais precisa para obter ganhos de produtividade, com qualidade e de forma sustentável, sem contar as possibilidades de antever e evitar os riscos das mudanças climáticas que afetam diretamente o dia a dia do campo. Iniciativas nesse sentido têm se tornado cada vez mais concretas e se disseminam por meio de parcerias, a exemplo do Centro de Ciência para o Desenvolvimento em Agricultura Digital (CCD-AD/SemeAr), resultado da estratégia conjunta entre a Embrapa e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), baseada na certeza de que o avanço no uso de tecnologias digitais
é um dos fatores determinantes para que a agricultura brasileira mantenha sua capacidade produtiva de maneira sustentável, do ponto de vista econômico, ambiental e social. O objetivo será atuar na pesquisa, no desenvolvimento e na inovação, com foco na inclusão de pequenos e médios produtores rurais. Estão previstas várias ações, como os Distritos Agrotecnológicos (DATs) em diferentes regiões do Brasil, voltadas à promoção de soluções de conectividade em áreas rurais e a inserção de tecnologias, como inteligência artificial, sensoriamento remoto, automação, rastreabilidade e certificação. É mais um passo na concretização do que sempre acreditei como pesquisadora: levar tecnologias ao pequeno e médio produtor pode aumentar a renda, diminuir a desigualdade e a fome. Ter a visão do agro como um todo é o que irá fazer esse sonho virar realidade.
A pesquisa agropecuária pode contribuir para o ganho de valor agregado à pauta de exportação do Brasil?
Sim, com certeza. O valor de um produto contempla uma série de variáveis e essa relação que define qualidade e preço. No que diz respeito ao atual nível de exigência dos mercados, principalmente internacionais, a pesquisa agropecuária tem muito a fazer, como já tem feito, para que os produtos que compõem a pauta de exportações tenham diferenciais únicos, que conciliem, entre outros aspectos, a forma de produção que priorize a sustentabilidade. E nisso o Brasil detém tecnologia de referência, que chama a atenção no exterior quando o assunto é agregação de valor, dentro do conceito de preservação ambiental, saúde e qualidade nutricional. Além disso, a ciência pode ajudar a agregar valor aos produtos agrícolas quanto à aplicação em diferentes indústrias, como o setor químico e a indústria farmacêutica. Um exemplo é o açaí usado para produção de cápsulas de antocianina com propriedades terapêuticas. A nanotecnologia contribui com processos de rastreabilidade, conservação, qualidade e certificação de produtos agrícolas, o que também agrega valor. A biotecnologia possibilita o desenvolvimento de novos produtos. Todas são oportunidades que agregam valor e representam excelentes perspectivas para o futuro do agro nacional.
Qual a relevância da categoria dos engenheiros para alcançar os avanços necessários?
São profissionais de extrema importância no contexto da transversalidade do conhecimento. Em uma propriedade rural, por exemplo, são os detentores da responsabilidade técnica, cabendo a eles a análise, a avaliação, as tomadas de decisão e a recomendação técnica. Em período de constante crescimento produtivo e de competitividade nacional e internacional, a partir da adoção de novas tecnologias, eles contribuem para agregar resultados e propor ações de melhoria. Em benefício do desenvolvimento do setor, a multidisciplinaridade no atendimento às demandas é fundamental.
A senhora é a primeira mulher a presidir a Embrapa nesses 50 anos e é profissional de uma área ainda majoritariamente masculina, que é engenharia. Na sua opinião, como avançar na equidade de gênero na profissão?
Hoje, no atual quadro da Embrapa, de aproximadamente 7.813 empregados, 32,33% são mulheres. Na Diretoria Executiva, há muitos anos, 25% são mulheres e no último ano passou para 40%. Existe a intenção de aumentar para 60% a representatividade feminina na Diretoria Executiva. Nas 43 unidades da Embrapa, a representatividade das mulheres em cargo de chefia aumentou de 10% para 25% nos últimos anos, mas reconhecemos ainda ser muito pouco. A Embrapa, sendo uma empresa de pesquisa agropecuária, referência científica internacional, pode se destacar também na área da valorização e de visibilidade do potencial da mulher e contribuir com mais esse exemplo de instituição de pesquisa bem-sucedida. Vamos nos empenhar muito para que isso aconteça, ampliando as possibilidades de dar visibilidade e reconhecimento à capacidade e ao conhecimento acumulado por tantas mulheres na empresa.