Rita Casaro
Estima-se que 30% dos 18 milhões de pontos luminosos instalados nas ruas do Brasil não possuam sistema de aterramento, procedimento essencial para evitar choques elétricos. A situação coloca em risco principalmente os trabalhadores do setor de telecomunicações, cujas tarefas, realizadas nos postes compartilhados por várias instalações, se dão em proximidade aos equipamentos de iluminação pública.
O alerta é feito na Ação Civil Pública proposta pelo SEESP em setembro último, que tramita na 6ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal. Em resumo, o pleito do sindicato é que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) seja obrigada a cumprir “suas próprias normas e regulamentos, de forma a manter a segurança dos trabalhadores que atuam na instalação e na manutenção das redes de energia elétrica e de transmissão de dados”.
A petição inicial do processo, que ainda não teve julgamento de mérito, ressalta que “numa breve pesquisa na internet irão aparecer centenas de publicações que relatam acidentes com choques elétricos ou mesmo fatais com trabalhadores do setor de telecomunicações em postes”. Um exemplo se deu na cidade de Bauru, em 7 de dezembro de 2022, quando Rodrigo Moraes da Silva sofreu uma descarga elétrica ao fazer manutenção de cabo de internet. Na ocasião, ele perdeu a consciência momentaneamente e suas roupas ficaram em chamas; acabou internado em estado grave, com várias e extensas queimaduras.
Confira aqui casos de acidentes do trabalho incluídos na Ação Civil Pública
“Os cabos de telecomunicações estão muito próximos da iluminação pública, a apenas 10cm; não só a pessoa que está no poste pode pôr a mão num braço de iluminação, como na hora que lança o cabo de fibra óptica, o que é sem controle, pode tocar”, ilustra o diretor do SEESP Carlos Augusto Ramos Kirchner, especialista e consultor em energia e iluminação pública da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE). Para evitar que os episódios sigam se repetindo, o sindicato quer que todas as novas ligações de iluminação pública fiquem condicionadas ao aterramento e que seja determinado prazo para que as já existentes sejam efetivamente regularizadas.
Regras e alertas ignorados
Kirchner informa que a regra está prevista na Resolução nº 1.000 da agência reguladora que, em seu artigo 30, determina a obrigatoriedade de sistemas de aterramento, conforme o padrão de cada distribuidora. No entanto, aponta ele, o tema vem sendo negligenciado sob a alegação de que a iluminação pública é responsabilidade dos municípios. “A Aneel fala que não é com ela, mas nós dizemos que sim, porque esse assunto é de fornecimento de energia. Se você constrói uma casa e pede a ligação, a distribuidora exige o aterramento, obriga o consumidor por medida de segurança. Em São Paulo, a norma técnica da Enel destaca a importância do aterramento da iluminação pública para a segurança das pessoas e proteção dos materiais”, exemplifica.
Antes que o SEESP recorresse à Justiça para buscar uma solução ao problema, a FNE enviou inúmeras manifestações à Aneel demonstrando a questão. Em uma delas, pontuava que as características da iluminação pública tornavam a precaução do aterramento ainda mais importante. “O que diferencia das demais classes de consumidores? Não se utiliza de um espaço físico próprio, mas compartilhado com outros ocupantes. Assim, eventuais irregularidades podem ter graves e fatais consequências para trabalhadores até mesmo da detentora da infraestrutura, que é a distribuidora.”
Especializado em iluminação e coordenador da Comissão de Estudos “Luminárias e acessórios” da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), o engenheiro eletricista Luciano Rosito lembra estar previsto que os equipamentos tenham ponto de aterramento. “Ou seja, está preparado e muitas vezes não é feito”, pondera.
Ele destaca ainda que o “aterramento correto não somente melhoraria as condições de segurança, mas aumentaria a possibilidade de preservar o equipamento quando ocorrer um surto, como por exemplo um raio, que gere distúrbio na rede, e o DPS
(Dispositivo de Proteção contra Surtos) atuaria com escoamento para a terra”.
Kirchner lembra que um fator favorável ao aterramento é a migração para a tecnologia LED, mais sensível às variações de tensão. Devido a isso, o procedimento é exigência dos fabricantes para fornecer a garantia da luminária. É o que acontece em São Paulo, segundo informações da SP Regula. A cidade tem 613.990 mil pontos de iluminação pública eficientizados em LED e estes têm aterramento, o que é obrigatório por contrato. Ainda conforme a agência, os cerca de 20 mil pontos que utilizam luminária tradicional também são aterrados, em rede exclusiva, no caso dos postes metálicos, ou pela distribuidora de energia, nos de concreto.
Segurança do Trabalho
Tanto nas tentativas de diálogo prévias quanto na ação judicial, o argumento do SEESP e da FNE é reforçado pela Norma Regulamentadora (NR) 10, que versa sobre segurança em instalações e serviços em eletricidade e determina o aterramento conforme regulamentação estabelecida pelos órgãos competentes. As entidades se baseiam ainda em nota técnica do Ministério do Trabalho e Emprego, emitida em fevereiro último, que reafirma a obrigatoriedade do procedimento.
Sem estatísticas específicas sobre problemas causados pela ausência de aterramento na iluminação pública, Rodrigo Vaz, auditor-fiscal do trabalho, salienta a ocorrência elevada de episódios ocasionados pela exposição à energia elétrica. Segundo ele, entre 2011 e 2020, foram registrados 61 mil acidentes, com 1.454 óbitos.
Na sua avaliação, o poste de serviço deve ser tratado como um posto de trabalho no qual devem ser seguidas obrigações específicas em termos de proteção coletiva e individual, incluindo treinamento em Segurança e Saúde do Trabalho (SST). Vaz pondera que não são apenas os trabalhadores das empresas de telecomunicações os expostos aos riscos, mas lembra ser necessário travar a discussão especificamente sobre essa mão de obra, “em atendimento às normas técnicas e regulatórias estabelecidas pelos órgãos oficiais competentes, para garantir a segurança da população, do trabalhador e do meio ambiente”.
Para ele, nesse contexto, há responsabilidade do detentor da infraestrutura, a concessionária distribuidora de energia, que deve garantir as condições de SST, e das prestadoras de telecomunicações, que expõem seus empregados ao perigo elétrico sem proteção. Kirchner faz coro e enfatiza: “Cumprir norma é uma obrigação, não cabe exceção. Se não sabe fazer do jeito certo, tem que sair do mercado. Esses serviços muitas vezes são subcontratados, executados por pessoas despreparadas.”
Em prevenção a esse cenário, o Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações (Sintetel) defende que operadoras contratem empresas idôneas, que treinam os seus trabalhadores, realizam cursos sobre a NR-10 e fornecem os equipamentos de segurança necessários. Para isso, a entidade propõe a criação do “Selo de Qualidade”, que selecionará e qualificará as companhias do segmento.
Na mesma nota, a entidade alerta os empregados a exigirem medidas de segurança efetivas. “Devem reivindicar das empresas o treinamento adequado, procurar se informar com o técnico de segurança e não assinar documento de participação em treinamento sem ter participado.”
Aposta na Justiça
Segundo Kirchner, todos esses argumentos técnicos vêm sendo apresentados e não foram refutados, mas as providências necessárias não foram tomadas. Sua expectativa agora é que a Justiça atue para corrigir o problema, embora não tenha concedido a liminar pleiteada na ação, que previa a tomada de medidas paliativas de segurança enquanto o aterramento não fosse efetivado. Estas seriam o uso de mantas isolantes protetoras ou a desenergização das instalações de iluminação pública, de forma temporária no período diurno, quando estivessem sendo lançados e instalados novos cabos de telecomunicações.
Ainda que tenha considerado incabível determinar provisoriamente as medidas, avalia Kirchner, o magistrado, em seu despacho de 13 de setembro, deixou registrado o que pode ser considerada manifestação prévia sobre o mérito: “A potencial inércia da Aneel será examinada e, confirmando-se, será potencialmente remediada com pronúncia em sentença, após o contraditório.”
Procurada várias vezes por meio de sua assessoria de imprensa, por e-mail e telefone, a Aneel não respondeu aos questionamentos da reportagem até o fechamento desta edição.
“Poste legal” que não legaliza
Ainda no esforço de garantir segurança à sociedade e o cumprimento das normas relativas ao compartilhamento da infraestrutura nas cidades, a Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) enviou, no dia 2 de outubro, ofícios aos ministros das Comunicações, Juscelino Filho, e de Minas e Energia, Alexandre Silveira. A iniciativa foi motivada pela Portaria Interministerial nº 10.563, de 25 de setembro, que institui a Política Nacional de Compartilhamento de Postes (PNCP), batizada de “Poste Legal".
Nos comunicados, a entidade alerta para as “incongruências” entre as regras estabelecidas e os objetivos e princípios apresentados pela portaria. Estes seriam reduzir riscos de acidentes envolvendo pessoas, infraestruturas e meio ambiente associados ao compartilhamento de postes e o atendimento às normas técnicas, de segurança e regulatórias estabelecidas pelos órgãos oficiais competentes.
Na avaliação da FNE, para cumprir o que anuncia, seria preciso que a nova portaria corrigisse a complacência da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e das distribuidoras de permitirem o compartilhamento de postes com instalações de iluminação pública na ausência de aterramento, o que, em desacordo com normas técnicas aplicáveis, tem resultado em muitos acidentes fatais, conforme argumentado em Ação Civil Pública proposta pelo SEESP em setembro passado e aguardando decisão da Justiça. Por fim, a federação questiona se os ministérios tomarão providências sobre o tema e solicita receber informações a respeito.
Para Carlos Augusto Ramos Kirchner, diretor do SEESP e consultor em energia e iluminação pública da FNE, também fica a desejar o plano de regularização aprovado pela Aneel e pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) no dia 24 de outubro, cuja meta é corrigir anualmente 2% a 3% dos problemas de ocupação dos postes. “Isso parte da premissa de que a irregularidade não aumenta, quando, na verdade, cresce pelo menos 5% ao ano”, critica. “Trata-se de situação de espaço aéreo irregular, tem que ser corrigido tudo, não tem meio termo”, enfatiza.
Aspecto positivo do novo regulamento, avalia o engenheiro especialista no tema, é a proposta de criar a figura da exploradora de infraestrutura, pessoa jurídica cessionária do direito de exploração comercial dos postes. “Em não se fazendo nada, está se fazendo algo para atender o aumento da demanda”, pondera.
O debate sobre a necessidade de dar fim ao emaranhado de cabos é já bandeira antiga da federação, que vem defendendo medidas para acabar com a ocupação desordenada da infraestrutura compartilhada por diversos serviços, como distribuição de energia, telecomunicações e iluminação pública. A entidade vem, inclusive, propondo modelos de legislação e suprindo municípios com informações para que esses possam fazer valer seus direitos quanto ao ordenamento territorial e aéreo urbano e à proteção das pessoas e de equipamentos. Confira aqui os conteúdos disponíveis sobre o tema. (Rita Casaro)
Foto no destaque: Pedro Ribas-SMCS / Arte: Eliel Almeida