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Parar a engrenagem que fere, adoece e mata os trabalhadores

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Jéssica Silva

 

No dia 28 de abril, o encontro gastronômico e cultural “Todo mundo tem que falar, cantar e comer!”, realizado tradicionalmente no último domingo de cada mês na Praça Memorial Vladimir Herzog e Espaço Cultural a Céu Aberto Elifas Andreato, na capital paulista, abre espaço a uma programação especial de mobilização por um tema premente: saúde e segurança no trabalho.

 

A data marca o Dia Mundial da Segurança e da Saúde no Trabalho e Dia Nacional em Memória das Vítimas de Acidentes e Doenças do Trabalho. O ato, com início marcado às 12h, reunirá centrais, sindicatos, representantes do setor público do mundo laboral, além de músicos, jornalistas, artistas e vários chefs de cozinha que têm estado à frente do cardápio no evento mensal. O objetivo é chamar a atenção da população, mídia e governos para a urgência em transformar uma realidade de tragédias sucessivas e preservar a vida dos trabalhadores. 

 

Pedro GleyPedro Tourinho de Siqueira (à esquerda) e Gley Rosa. Fotos: Acervos pessoaisConforme dados consolidados do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, em 2022 o Brasil teve 612,9 mil notificações de acidentes de trabalho registradas oficialmente na plataforma governamental para comunicação dessas ocorrências (CAT). Destas, mais de 2 mil com a informação de óbito. O Estado de São Paulo, com 204,2 mil CATs no mesmo ano, lidera entre as unidades federativas em que os trabalhadores mais se acidentam, com 34,6%, seguido de Minas Gerais (10,8%), Rio Grande do Sul (8,56%) e Santa Catarina (7,93%). No período, 592 trabalhadores paulistas perderam suas vidas no ambiente laboral; 38,7 mil foram afastados por acidente e 1,1 mil, aposentados por invalidez.

 

O cenário estarrecedor pode ser ainda pior. De acordo com o Observatório, há uma estimativa de subnotificação de pelo menos 18%, pois a apuração é feita a partir da emissão da CAT, não contemplando o trabalho informal ou qualquer outra situação em que o registro do acidente não é realizado.

 

Para Pedro Tourinho de Siqueira, presidente da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), o índice de subnotificações pode ser ainda maior, pois, na sua visão, há um esforço ativo em ocultar ocorrências. “A notificação do agente de trabalho pode onerar empresas, e aí existe uma cultura do ‘deixa disso’, ‘vamos voltar para o trabalho’, ‘foi algo pequeno’. Dessa forma, problemas graves vão se perpetuando, acidentalidade e adoecimento vão se tornando frequentes, particularmente o adoecimento mental relacionado ao trabalho, que hoje é uma epidemia”, afirma ele. O diretor do SEESP e engenheiro de segurança do trabalho Gley Rosa complementa: “Todo acidente tem uma causa, não é azar ou fatalidade. Os empresários não se preocupam, porque não tem fiscalização”.

 

Todo mundo tem que falar cantar e comer novembro2023 RitaCasaroEdição de setembro último do encontro “Todo mundo tem que falar, cantar e comer!” na Praça Vladimir Herzog. Foto: Rita Casaro

 

Desmonte

 

Os especialistas concordam que toda a estrutura pública voltada aos direitos e à segurança do trabalhador foi “sucateada” nos últimos anos. O próprio Ministério do Trabalho chegou a ser extinto durante o governo Bolsonaro (2019-2022) e, mesmo com sua reativação, a Secretaria de Segurança e Medicina do Trabalho continua inativa.

 

“A agenda de SST [Saúde e Segurança no Trabalho] está presente na Pasta, mas o ideal seria uma secretaria especial, com concurso próprio e quadro composto por especialistas, engenheiros de segurança, médicos do trabalho, técnicos”, ensina o diretor do SEESP Leonídio Francisco Ribeiro Filho, engenheiro com vasta experiência e atuação na área.

 

Segundo o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), o País tem 1.917 auditores ativos. “Um estudo do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], já em 2012, apontava a necessidade de 8 mil profissionais dessa categoria para atender todas as demandas do Brasil”, frisa a entidade.

 

No Estado de São Paulo, o mais populoso do País, são 183 auditores, de acordo com informações da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo. “O número de acidentes está totalmente ligado à incapacidade de fiscalização”, valida o vice-presidente do SEESP e engenheiro de segurança Celso Atienza.

Leonídio AtienzaOs engenheiros Leonídio Francisco Ribeiro Filho (à esquerda) e Celso Atienza.
Fotos: Beatriz Arruda/Acervo SEESP
 

Em 2022, um mezanino desabou durante um evento dentro de uma empresa em Itapecerica da Serra, Região Metropolitana de São Paulo. “Foram 37 acidentados com nove mortes. Mas apenas quatro CATs foram abertas”, conta Carlos Clemente, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e Região (Sindmetal). Conforme ele, a proteção ao trabalhador foi ainda mais prejudicada com a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017), que enfraqueceu a atuação dos sindicatos e até mesmo do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). “O acidente ocorreu por negligência ou omissão da empresa; cabe, nesses casos, à Previdência Social ingressar com ação regressiva acidentária, para obrigar que a empresa ressarça os cofres públicos. Mas, para que uma ação dessas aconteça, há que se ter uma boa estrutura, uma boa fiscalização”, aponta.

 

Política nacional

 

Divulgado no final de 2023, o Concurso Nacional Unificado, conhecido como “Enem dos concursos”, prevê 900 vagas para auditores-fiscais do trabalho. “Não é nem um refresco perto da realidade que temos, e, infelizmente, não há nenhuma vaga para funções de pesquisador na Fundacentro”, constata o dirigente do Sindmetal.

 

Desde 1966, quando foi criada, a Fundacentro tem como missão difundir a cultura de saúde e segurança no trabalho por meio de pesquisa e formação. Com sede na capital paulista e 12 unidades espalhadas pelo País, tem quadro operacional atual de apenas 145 servidores na ativa – no passado, já chegou a 800 trabalhadores. Muitos profissionais se aposentaram ou, sem perspectivas, saíram da instituição. “O último concurso foi em 2014”, conta o presidente da fundação, para quem é “inadmissível que um trabalhador perca a vida enquanto exerce o seu trabalho.”

 

O problema é que, na visão de Siqueira, por muito tempo a agenda de saúde ocupacional no Brasil foi tratada apenas como um gasto, um custo para empresários e governo. “Falar da garantia da dignidade básica na realização das atividades laborais não é um tema que deva ser compreendido como impeditivo. Pelo contrário, é pressuposto para que o trabalho possa acontecer”, defende. Nessa direção, Clemente reforça a importância da atividade planejada: “Temos que dar visibilidade ao tema e engajar toda a sociedade nessa luta, não apenas pela memória de uma data, mas pela construção de uma nova política.”

 

Como atesta Ribeiro Filho, discutir uma nova política nacional de segurança e saúde ocupacionais é premente, para “que de fato atenda a necessidade do atual mundo do trabalho”. Ele afirma: “As estatísticas mundiais mostram que quanto mais próximo o tema daqueles que têm o poder de decisão, mais os objetivos são atingidos e expressos na redução dos índices de acidentes.” “A gente tem um grande desafio civilizatório, que é fortalecer os mecanismos de vigilância e fiscalização e acompanhamento do universo do adoecimento relacionado ao trabalho. O fortalecimento dos sindicatos é condição sine qua non para que a gente possa avançar novamente nessa agenda”, frisa o presidente da Fundacentro.

 

 

Engenharia de Segurança

 

Toda atividade laboral pode apresentar riscos e, por isso, toda estrutura ou processo de proteção e prevenção é essencial. “O intuito das Normas Regulamentadoras (NRs) é Clemente Teixeira Serjão 2Da esquerda para a direita, Carlos Clemente, José Manoel Teixeira e Sérgio Gomes. Fotos: Acervo pessoal/Beatriz Arruda/Canal da Praçapromover o gerenciamento de riscos ocupacionais e estabelecer requisitos e medidas para prevenir acidentes e doenças”, confirma o diretor do SEESP José Manoel Teixeira. “Quando seguidas corretamente, podem diminuir ou até mesmo eliminar a probabilidade de risco”, atesta ele, que é engenheiro de segurança e integra Grupo de Trabalho Tripartite que realiza revisão das normas.

 

Na ótica de Ribeiro Filho, a engenharia tem papel fundamental para um ambiente de trabalho seguro. Ele foi eleito em março último para coordenar a Comissão de Estudo Especial de Segurança e Saúde Ocupacional da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT / CEE 1009). “Temos uma visão muito ampla e estamos presentes nos locais que podem apresentar riscos. É a engenharia de segurança que faz esse trabalho [de prevenção], a nossa área”, reitera.

 

Rumo ao 28 de abril

 

O ato e canto pela vida que acontecerá em 28 de abril, na Praça Vladimir Herzog, terá programação completa divulgada ao longo do mês, além da elaboração do manifesto que será lançado publicamente na ocasião. Com diversas obras do artista Elifas Andreato (1946-2022), o local escolhido é referência na defesa da democracia, trabalho digno e preservação da vida.

mão Elifas AndreatoArte de Elifas Andreato que será símbolo do ato de 28 de abril. 

“Aos 14 anos, o Elifas desenhou um cartaz de uma mão vermelha como um ‘basta’, em uma mobilização na fábrica em que trabalhava, devido ao alto número de acidentes no local. Foi a partir desse desenho que ele recebeu diversas outras oportunidades e se tornou o brilhante artista que conhecemos”, conta Sérgio Gomes, o “Serjão”, diretor da Oboré e um dos organizadores do “Todo mundo tem que falar, cantar e comer!”.

 

A ilustração foi resgatada em 2022 pelo próprio Elifas, a pedido de Serjão, para ilustrar a capa da publicação elaborada pelo Sindmetal chamada “Rosca sem fim”, que apresenta um panorama da situação atual de acidentes e doenças do trabalho em Osasco e região.

 

“A ideia é que essa arte seja também símbolo do nosso ato”, conta o jornalista. Em visita à praça, que fica a 300 metros de distância do SEESP, ele destacou ainda a localização muito próxima ao Edifício Joelma, atualmente chamado Edifício Praça da Bandeira, marcado por uma das maiores tragédias do País – o incêndio há 50 anos, em que 181 pessoas morreram e mais de 300 ficaram feridas. “Eram, em sua maioria, trabalhadores”, destacou Serjão.

 

 

Assim como Elifas Andreado, outros artistas brasileiros têm os desafios à vida do trabalhador como tema em suas obras. É o caso do cantor e compositor Chico Buarque, em sua música “Construção”, de 1971. Confira:

 

 

  

Agenda

Todo mundo tem que falar, cantar e comer! – Ato e canto pela vida dos trabalhadores

Data: 28 de abril de 2024

Horário: a partir das 12h

Local: Praça Memorial Vladimir Herzog e Espaço Cultural a Céu Aberto Elifas Andreato (Rua Santo Antônio, 33-139, Bela Vista, São Paulo/SP)

 

 

Imagem de capa: Freepik / Prefeitura de Cabreúva. Arte: Eliel Almeida

 

 

 

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