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Garantir manutenção e novo modelo de cidades na reconstrução do RS

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Soraya Misleh

 

Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre (DMAE) inicia reconstrução do talude do Arroio Dilúvio. Foto: Divulgação/DMAE/PMPA - 21/6/2024“Não adianta deixar tudo pronto para ser destruído de novo, é necessário reconstruir melhor.” Assim Fernando Dornelles, professor de Hidromecânica e Hidrologia do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), resume sua visão sobre como deve ser conduzida a recuperação do estado gaúcho, após a tragédia que se abateu sobre sua população em abril e maio último. Ele defende que esse processo se fundamente em estudo de predição dos impactos das mudanças climáticas, assegurando adaptabilidade e resiliência, e que se corrija um problema central que a tragédia escancarou: a falta de manutenção do sistema de proteção a inundações.

 

Em reunião na sede do SEESP, na Capital, no dia 20 de maio, a contribuição dos engenheiros para a reconstrução do Rio Grande do Sul e para se pensar soluções a que novas tragédias não se reproduzam não apenas no estado, mas nas cidades brasileiras como um todo, esteve na pauta. Como encaminhamento, decidiu-se pela constituição de um grupo de trabalho para se debruçar sobre essa tarefa. O encontro contou com a presença de representantes do Sindicato Nacional de Engenharia e Arquitetura Consultiva (Sinaenco), seção São Paulo, e especialistas, além de dirigentes da entidade e do consultor sindical João Guilherme Vargas Netto.

 

No ensejo, Murilo Pinheiro, presidente do SEESP, chamou a atenção que a tônica deveria ser “solidariedade” ante a tragédia. Segundo balanço atualizado em 27 de junho último da Defesa Civil, como consequência, 95% dos 497 municípios do estado foram afetados, totalizando quase 2,4 milhões de habitantes. Cento e setenta e nove mortes foram registradas no período e 806 feridos. Os desalojados superaram durante a ocorrência mais de 580 mil pessoas e cerca de 80 mil tiveram que ir para abrigos.

 

Reunião na sede do SEESP, na Capital, pauta contribuições da engenharia para reconstrução do Rio Grande do Sul e como evitar tragédias. Foto: Paula BortoliniPara Murilo, caso tivesse sido levada a cabo a proposta de se instituírem Secretarias de Engenharia de Manutenção, com equipe e dotação orçamentária próprias, nas três esferas de governo – municipais, estaduais e federal –, poderia ter se evitado desastre como o que se vivencia no Rio Grande do Sul. Portanto, implementá-la para impedir novas tragédias se torna fundamental. A medida consta do projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento”, iniciativa da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE), cuja nova edição, intitulada “Cidades inteligentes – Garantir qualidade de vida à população”, será lançada oficialmente na sede do SEESP no próximo dia 15 de julho, às 15 horas. Engloba temas cruciais para a melhoria da infraestrutura urbana, que a tragédia no Rio Grande do Sul escancarou, como o enfrentamento da crise climática e a necessidade de adaptação das cidades aos eventos extremos, reiterando ser imprescindível a garantia de engenharia de manutenção para evitar sofrimento humano, devastação e perdas materiais.

 

As falhas no sistema

 

Com extensão de cerca de 68km, o sistema de proteção a inundações de Porto Alegre inclui, de norte a sul da capital do Rio Grande do Sul, o muro de contenção da Mauá (no centro histórico, entre a rodoviária e a Usina do Gasômetro), diques externos e internos. Conta ainda 14 comportas, além das que constam em 23 casas de bombas, as quais o conectam ao sistema de drenagem pluvial. Uma das comportas se rompeu totalmente e houve vazamentos pelas frestas de outras.

 

Saiba mais sobre o sistema de proteção aqui

 

Os principais córregos, lagoas e rios de cinco bacias hidrográficas da região do Guaíba desaguam no rio de mesmo nome, na capital gaúcha. Conforme manifesto apresentado em coletiva técnica no Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio Grande do Sul (Senge-RS), no dia 23 de maio último, assinado por mais de 40 profissionais da categoria, o sistema de proteção, quando totalmente fechado, impede o extravasamento das águas sobre a cidade de Porto Alegre até a cota de alerta de inundação acima de seis metros. A falha se deveu a falta de manutenção permanente, confirmam os engenheiros.

 

“No ano passado, quando o sistema foi acionado, durante as inundações com início no Vale do Taquari [em setembro] e que também inundaram a Região Metropolitana, as deficiências nas comportas ficaram visíveis. Fáceis de serem sanadas, mas não foram”, apontam os profissionais, em seu manifesto. No documento, eles observaram que até mesmo as casas de bombas, bem como as Estações de Bombeamento de Água Bruta (EBABs), foram inundadas. Construído, de acordo com Dornelles, na década de 1970-1980, após uma chuva em 1967 cujo nível de água chegou a 3,13 metros, o sistema foi usado pela primeira vez somente em 2015 – quando o Guaíba subiu 2,94 metros. A primeira grande enchente no Rio Grande do Sul em 1941 registrou 4,75m; em setembro foram 3,18m; e agora, 5,32 metros.

 

O sistema precisa agora também ser redimensionado, como indica o engenheiro, empresário e consultor José Roberto Bernasconi, em face da previsão de que eventos extremos como o que se abateu sobre o estado sejam cada vez mais frequentes e intensos. A tragédia em questão se inscreve nos maiores desastres climáticos recentes. O professor do IPH confirma que as águas do Guaíba tiveram subida atípica. “Em 1941 levou dez dias para atingir o pico de inundação; desta vez foram três dias.”

 

Desastre anunciado

 

Evento promovido pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) no dia 21 de maio último, intitulado “Lições do evento climático extremo no Rio Grande do Sul para o Brasil”, evidenciou que desastres como esse já são amplamente previstos e anunciados; também já há muitos relatórios, alertas e estudos sobre os impactos das mudanças climáticas e a necessidade tanto de reduzir a emissão de gases de efeito estufa quanto de adaptação e resiliência das cidades.

 

Da esquerda para a direita, Celso Atienza e José Marengo: mais prevenção e melhor preparação. Fotos (na ordem): Rita Casaro/Acervo SEESP e Leonor Calasans/IEA-USPSegundo informou na oportunidade José Antonio Marengo, pesquisador titular e coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), em relação à tragédia no Rio Grande do Sul, o próprio órgão ao qual está à frente, juntamente com o centro meteorológico, emitiu alertas de risco muito alto de desastres hidrológicos e geológicos dias antes, na região do Taquari, e defesas civis foram informadas. Apesar do evento extremo, ele observou que desastres de tal monta se dão por uma combinação de fatores, que incluem a vulnerabilidade e a exposição ao risco da população, o que tem a ver com políticas públicas.

 

A reconstrução tem agora que considerar mudanças climáticas, como vaticinou. No Rio Grande do Sul ele diz que há um plano específico nesse sentido, mas só no papel – e lamentavelmente essa é a regra na maioria das cidades brasileiras, como se evidenciou pelos especialistas presentes no evento. “É preciso maior prevenção e melhor preparação. Realocar cidades para reduzir a exposição e a vulnerabilidade. Não tem como parar as chuvas, mas podemos proteger a população”, frisou. Marengo chamou a atenção que, para gerir desastres como esse, o Brasil gasta quase o triplo em relação a prevenção. Nos últimos dez anos, com tais ocorrências, “perdeu-se mais de R$ 480 bilhões”.

 

O professor do IPH corrobora, lembrando que um “dominó de problemas” levou a desastre de tamanha magnitude. “Faltou entendimento sobre a seriedade de manter o sistema em dia e não permitir ocupações sobre o dique, que o enfraqueceram. Tem até rampas de acesso para veículos em cima. E o dique do Sarandi, da década de 1980, que deveria ser para cota de sete metros pelo projeto, foi construído pela metade. Extravasou e houve inundação.” Ele continua: “No Vale do Taquari, casas que foram destruídas agora estavam dentro da zona de passagem da cheia. Teria que desurbanizar a área.” Dornelles observa que 10 mil residências foram atingidas no Rio Grande do Sul, muitas construídas em áreas de risco.

 

Celso Atienza, vice-presidente do SEESP, ratifica a questão de uma urbanização no estado que não preveniu esse problema, sem que no planejamento se integrasse a engenharia de segurança, o que precisa mudar. Este é o caminho, acredita, para que se garanta a implementação da engenharia de manutenção de forma adequada, inserida num sistema de gestão. Tal precisa prever, segundo o dirigente do sindicato, as condições climáticas e a revitalização de áreas verdes, bem como reurbanização em moldes distintos.

 

Não bastasse a falta de solução para o problema habitacional e a ausência de planejamento, o sistema de proteção a inundações, diz Dornelles, vinha sendo sucateado. “O Cais Mauá foi privatizado [em fevereiro de 2024] e seriam construídos prédios na área. Estava em discussão a derrubada do muro da Mauá, sua retirada completa sem substituição devida. Chegou a se cogitar que uma pequena arquibancada serviria de dique ou barreira móvel, com um sistema de borracha, todas as comportas emendadas ao longo de seus 3km e tantos”, descreve. Quatro fabricantes, todos estrangeiros, como informa, estavam envolvidos nessa proposta, sem conhecimento da realidade nacional. A assinatura do contrato de concessão foi suspensa temporariamente em função da tragédia.

 

Soluções técnicas

 

Além da recuperar diques, vedar comportas, estancar pontos de vazamento nas casas de bombas e adaptá-las, o professor recomenda utilizar tampas competentes e herméticas nas galerias de águas pluviais, elevar alças de acesso sobre a Avenida Assis Brasil, em Porto Alegre, construir pontes mais altas ou com vão livre e garantir maior flexibilidade e adaptação das obras de arte no projeto, já que esses eventos extremos vão acontecer com mais frequência e intensidade, em função das mudanças climáticas. Também sugere pensar “zoneamento de inundação e de sustentabilidade”.

 

José Roberto Bernasconi (à esquerda) e Fernando Dornelles: resiliência e adaptação a eventos extremos. Fotos (na ordem): Acervos SEESP e pessoal“O sistema de proteção deve sofrer adequação, ter manutenção e ser feito levantamento topográfico da área ano a ano. O aeroporto [bastante atingido] fica em solo orgânico mole. Os diques podem estar sofrendo recalque por adensamento do solo.” Na Holanda esses equipamentos contam com inspeção e vistoria frequentes. “É feito levantamento topográfico a laser uma vez por mês. Aqui a engenharia era voz distoante.” Havendo manutenção, frisa, você consegue identificar qualquer anomalia e tomar as providências preventivamente.

 

Na opinião de Bernasconi, os sistemas de drenagem estão subdimensionados, “porque o tamanho dos eventos agora está desproporcional ao que estávamos acostumados”. Assim, defende a necessidade de se fazer uma revisão, “eventualmente uma ampliação das galerias de águas pluviais e de todos os sistemas e processos de limpeza, desentupimento de bueiros, desassoreamento de todos os rios, canais, córregos, sem contar os lagos de barragens, e muito cuidado com relação às inspeções”.

 

Na sua visão, deve demorar 20 anos para o Rio Grande do Sul se recompor. Nesse processo, ele propugna que se repensem as cidades, como tem sido feito no mundo todo. “Evidentemente vai ter que escolher os lugares para reconstruir, não permitir assentamentos em áreas de risco, fazer controle estrito do uso e ocupação do solo urbano e também ter cuidado com as áreas não urbanas, que têm que ser desenvolvidas de tal forma que estejam prevenidas com relação aos fenômenos climáticos nas encostas. Tem que fazer ocupação, o plantio, em terraços para que a água desça como se fosse uma escada, reduzindo sua velocidade.” O engenheiro propõe ainda recomposição da mata ciliar nas margens dos rios. “São providências de curto e longo prazo que têm que ser tomadas.”

 

As ações dos governos

 

Apesar de sua importância, no Plano Rio Grande, apresentado pelo Governo do Rio Grande do Sul em 17 de maio último para recuperação no estado, não está indicada a prevenção da infraestrutura após concluídas as obras. O plano, dividido em três fases, prevê R$ 911,9 milhões em investimentos. No curto prazo, como emergenciais, estão elencadas ações de “coordenação dos serviços essenciais de recuperação, como limpeza, realocação habitacional, desobstrução das vias, reparos dos serviços básicos”. No médio, “avaliação contínua do progresso das diferentes frentes de reconstrução, priorizando áreas de atuação com base na evolução da situação local”. No longo, reconstrução de infraestrutura, fortalecimento da resiliência da comunidade e diversificação econômica.

 

Limpeza de terreno em frente a casas destruídas no município gaúcho de Roca Sales. Foto: Bruno Peres/Agência BrasilTambém estão incluídas as denominadas “cidades temporárias”, abrigos provisórios a serem instalados nas quatro cidades mais atingidas pelas inundações: Canoas, Porto Alegre, Guaíba e São Leopoldo. Não obstante, essa alternativa tem sido contestada por parlamentares locais, pesquisadores e especialistas. As críticas vão desde a exclusão do direito à cidade, em função da distância dos locais escolhidos para tanto, ignorando a enorme quantidade de áreas ociosas em Porto Alegre – o que levantou preocupação de que se tornem uma espécie de campos de refugiados climáticos –, à falta de participação cidadã no processo de planejamento e discussão da melhor alternativa.

 

Já o governo federal elencou uma série de ações de auxílio à reconstrução de infraestrutura e habitação, além de medidas assistenciais, que incluem liberação de créditos extraordinários e benefícios tributários, num total aproximado de R$ 86 bilhões. Através do denominado “Auxílio Reconstrução”, como divulgado pela Agência Brasil em 17 de junho último, foram feitos “repasses de R$ 5,1 mil para cada família que teve prejuízos diretos causados pelas chuvas e enchentes, como forma de ajudar na retomada das atividades normais nos lares. Até o momento, mais de 100 mil pessoas já receberam o repasse único, e mais de R$ 663 milhões já foram pagos. Na parte da habitação, foi lançado plano de aquisição de moradias prontas, novas e usadas para doação a famílias desabrigadas. E o programa Minha Casa Minha Vida/Reconstrução já está recebendo o cadastro de habitações”.

 

Lições da tragédia

 

Como pontua Bernasconi, “as cidades estão cada vez mais pavimentadas, portanto, impermeabilizadas, o que faz com que a água corra muito rapidamente em direção aos pontos mais baixos e seja pouco absorvida no solo. É preciso uma revisão por exemplo nas grandes capitais”. Ele sugere que no planejamento se avaliem modelos internacionais como das chamadas “cidades-esponja”, além de jardins de chuva, mais parques, repensar a urbanização e nas áreas rurais, conjugar pastos, florestas e lavoura. “É uma maneira de fazer com que convivam temporariamente como uma cultura, temporariamente como um pasto, mas sempre com florestas, vegetação de maior porte, que possam dar uma condição maior de estabilidade pra aquele terreno.”

 

Leia aqui a Palavra do Murilo: Engenharia de Manutenção para evitar tragédias

 

Para Atienza, os problemas só serão resolvidos com a integração da engenharia de segurança no planejamento e projeto para as cidades. Esse profissional, diz, “tem plano contra catástrofes e emergências”, com detecção por exemplo de áreas de risco e indicação de onde as construções podem ser feitas. Bernasconi saúda a importância da coalizão da engenharia como “oportunidade de se mobilizar competências para, a um tempo, entender melhor as causas, ver como minimizar suas consequências, tomar medidas de correção e prevenção das consequências de um evento climático de proporções grandes”.

 

No evento promovido pelo IEA/USP, Marengo trouxe a conclusão: projeções climáticas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) segundo o grau de aquecimento já indicam que a tendência de que essas ocorrências sejam mais frequentes e intensas deve se manter no futuro, com maiores impactos no sul e sudeste do País. A maioria dos municípios brasileiros está despreparada para essa situação. A tragédia no Rio Grande do Sul revelou a urgência de se mudar essa realidade, ao que as contribuições da engenharia não podem mais ser ignoradas.

 

Confira nos links a seguir nota técnica e repositório de mapas elaborados pelo IPH/UFRGS:

 

A cheia de 2024 no estado do Rio Grande do Sul e as linhas de ação para a resiliência contra eventos extremos (Núcleo de Pesquisa em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos, 9/5/2024)

 

Cheias no Rio Grande do Sul - Base de dados e informações geográficas na Região Hidrográfica do Lago Guaíba e na Lagoa dos Patos em 2024 (atualização em 18/5/2024)

 

 

Imagem de capa: Erosão em função das chuvas levou a desmoronamento de trecho do talude do Arroio Dilúvio, na capital gaúcha, que começa a ser reconstruído. Foto: Dmae/PMPA - Arte: Eliel Almeida

 

 

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