Rita Casaro
A relevância das atividades intensivas em matemática para a geração de riqueza, a elevada qualidade dessas ocupações e o potencial ainda desperdiçado pelo Brasil são alguns destaques do estudo “Contribuição da matemática para a economia”, de Marcelo Viana, pesquisador especialista em sistemas dinâmicos e teoria do caos e diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), órgão vinculado aos ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação e da Educação.
Os dados do levantamento patrocinado pela Fundação Itaú revelam, por exemplo, que 7,8% da mão de obra ocupada no Brasil se valem de conhecimentos relevantes na disciplina. Esse conjunto, cuja renda média é o dobro da verificada no geral e que tem maior índice de formalização e estabilidade no emprego, tem contribuição de 4,6% ao Produto Interno Bruto (PIB) – em 2022, R$ 455 bilhões. Em condições similares às observadas em países desenvolvidos, aponta Viana, esse montante poderia chegar a R$ 1,7 trilhão, incrementando a economia brasileira em R$ 1,3 trilhão.
Para tanto, seria preciso ampliar o número de pessoas dedicadas a ofícios com ênfase em matemática e estas precisariam estar concentradas principalmente nas áreas tecnológicas, e não em finanças e administração, como ocorre atualmente. “O Brasil é uma peculiaridade nesse aspecto. É sabido que a nossa engenharia precisa ser reforçada. [É preciso] promover um desenvolvimento que faça com que a indústria, os setores produtivos necessitem de mais engenheiros. Porque só formar não resolve. O que importa é o engenheiro atuando na linha de frente”, ressalta Viana.
A batalha para graduar mais profissionais, reduzindo a evasão nos cursos de engenharia, pondera ele, tem relação com outro grande desafio nacional, o aprendizado de matemática no ensino básico. “Entra numa questão de raiz. Estava vendo as estatísticas sobre o percentual de jovens formados no ensino médio que alcançaram a proficiência esperada em matemática e é absolutamente estarrecedor, é 5%, 3%, sobretudo na rede pública, que é a que forma mais estudantes”, alerta.
O artigo aborda ainda a desigualdade no acesso às profissões intensivas em matemática, majoritariamente masculinas e brancas. “O fato de termos poucas mulheres, poucas pessoas negras no mundo de ciências e engenharia não é por acaso, é porque existem todas essas barreiras”, critica.
Viana, que já foi presidente da Sociedade Brasileira de Matemática e vice-presidente da União Matemática Internacional, lançou neste ano o livro “Histórias da matemática” (Tinta da China Brasil, 25 págs.), que traz uma coletânea de artigos publicados no jornal Folha de S. Paulo, espaço em que transmite conceitos e curiosidades da disciplina ao público leigo. Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, ele discute também como fazer com que a mais temida das matérias escolares se torne acessível e agradável, bem como a importância de iniciativas como as olimpíadas voltadas aos alunos da rede pública, promovidas pelo Impa. E defende ainda que haja um fluxo do conhecimento de alto nível existente na academia ao setor produtivo. Confira a seguir e no vídeo ao final.
Como surgiu a ideia de um estudo sobre a contribuição da matemática para a economia?
Eu acho que vale a pena contar rapidamente a história, que começou dez ou 12 anos atrás, quando a Agência de Pesquisa de Ciências e Engenharia do Reino Unido decidiu encomendar um estudo para determinar objetivamente a contribuição que as profissões que utilizam a matemática dão para a economia. O resultado foi surpreendente para todo mundo, inclusive para nós que sabemos que a matemática vale muito. Nem nós esperávamos que o resultado fosse o seguinte: 16% do PIB do Reino Unido é produzido por profissões que usam matemática de forma intensiva. Também, essas profissões correspondem a 10% dos novos empregos gerados a cada ano no País. A surpresa só passou quando outros países seguiram o exemplo do Reino Unido, caso da Holanda, da França, da Austrália e, um pouco mais tarde, da Espanha, todos com conclusões muito parecidas. No caso da Espanha, os percentuais eram um pouco menores, 12% do PIB. E os autores do trabalho não tiveram dúvida em explicar isso. A economia espanhola é menos sofisticada, demanda menos o tipo de expertise ligada à matemática. Então, se você quer saber se a economia de um país é avançada ou não, calcula quanto a matemática contribui para essa economia, e isso é um parâmetro importante para determinar o grau de desenvolvimento. Em 2022, quando a França fez o segundo estudo dessa natureza, o resultado não só se confirmou, como mostrou que a participação da matemática na economia está crescendo. Nesses dez anos, ela passou de 16% para 18% do PIB francês. Eu escrevi sobre esse estudo na Folha de S. Paulo, e o pessoal da Fundação Itaú mostrou interesse, então nós colaboramos a partir daí. É um estudo da Fundação Itaú, ao qual o Impa deu uma contribuição para fazer análise desses dados em relação ao Brasil.
E quais foram os resultados do levantamento sobre o Brasil?
O resultado foi não tão surpreendente e, para mim, muito encorajador. O percentual no Brasil é muito menor. Nós estamos, com a matemática, contribuindo com 4,6% do Produto Interno Bruto, gerando 7,8% dos empregos. Então são números acentuadamente menores do que nos outros países, mas há algumas semelhanças. O estudo comprova que profissões intensivas em matemática pagam o dobro da média nacional, o que é comum a todos os países que eu mencionei, e são muito mais resilientes perante crises, [como] foi verificado durante a pandemia. Eu encaro esses 4,6% comparados aos 18% da França como uma oportunidade – por isso digo que o resultado é encorajador –, porque o Brasil tem um potencial de conhecimento matemático instalado nas nossas instituições acadêmicas, nas universidades, nos institutos de pesquisa que é de padrão internacional. Nós pertencemos à primeira divisão da matemática mundial, que é o chamado Grupo 5 da União Matemática Internacional. Somos um de 12 países que pertencem a esse grupo. Então, nós temos o conhecimento. Não há por que não sermos capazes de transmitir esse conhecimento para os processos produtivos e alavancar a passagem de 4,6% para 16%, 17%, 18%. E o que isso significaria na prática? Um aumento do nosso PIB de R$ 1,3 trilhão por ano. É riqueza renovável e vem com outras vantagens de natureza social, como a geração de empregos. Então, esse estudo da Fundação Itaú me deixou muito entusiasmado sobre o potencial que nós temos para, investindo de forma adequada, poder extrair do que eu chamo da mina de ouro renovável de conhecimento matemático que já existe no nosso país. Desde que a gente seja capaz de realizar diversas tarefas; uma delas é, evidentemente, a transferência dessa expertise de dentro dos muros da academia para o setor produtivo.
Confira o estudo “Contribuições da matemática para a economia”
Outra disparidade mostrada no estudo é que, no Brasil, as áreas de maior contribuição da matemática não são as tecnológicas, como se observa na França, por exemplo. O que isso significa?
Essa é uma das surpresas, [sobre] quais são os setores da economia em que há mais concentração de uso intensivo de matemática. Em todos os países que eu mencionei, com exceção do Brasil, essa concentração é maior na engenharia, na tecnologia. O Brasil é uma peculiaridade nesse aspecto, porque essa concentração é maior na área financeira e da administração. Eu não tenho uma explicação objetiva, acho que requer um estudo para entender essas diferenças. É possível que tenha a ver também com o nosso relativo atraso. Aquilo que eu mencionei sobre a economia espanhola, que é menos desenvolvida e, portanto, demanda menos. Eu acho que isso pode ser dito também em termos estruturais em relação à economia brasileira. É sabido que a nossa engenharia precisa ser reforçada. É sabido também que até nisso a matemática tem um papel fundamental, porque vários estudos apontam que as taxas de evasão nos cursos de engenharia, que são muito altas, podem ser culpabilizadas à matemática em grande medida. Então, a gente aí entra numa questão de raiz, de educação básica, na formação que é dada aos nossos jovens. Eu ontem mesmo estava olhando as estatísticas sobre o percentual de jovens formados no ensino médio que alcançaram a proficiência esperada em matemática e é absolutamente estarrecedor, é 5%, 3%, sobretudo na rede pública, a que forma mais estudantes. Então, há uma base muito frágil no nosso sistema educacional, e isso limita muito a captação de jovens para os cursos de engenharia e depois acaba conduzindo a uma evasão muito grande. A gente soma a isso o processo de desindustrialização que o Brasil sofreu, e temos uma perfeita tempestade. Talvez ajude a explicar um pouco essa peculiaridade constatada, que talvez tenha que ser encarada também como uma oportunidade. Temos que pensar a engenharia em termos estratégicos nacionais. Já houve tentativas de resolver o problema aumentando o número de vagas nos cursos. Isso não é solução, porque a base de captação atualmente é pequena. [É preciso] promover um desenvolvimento que faça com que a indústria, os setores produtivos necessitem de mais engenheiros. Porque só formar não resolve. O que importa é o engenheiro atuando na linha de frente.
Como fazer com que a matemática deixe de ser esse bicho-papão, torne-se atraente e acessível? Faltam professores de matemática capazes de cumprir essa missão?
O professor de matemática é o elo fundamental e é um elo frágil. O problema começa e, de certa forma, termina aí também. Nós estamos devendo muito em termos da formação do professor, que tem diversos tipos de carências e depende de qual escola a gente está falando, das universidades públicas ou das faculdades particulares. Em qualquer desses dois universos, a nossa formação do professor é muito carente. E, de fato, nós colocamos na sala de aula, de um modo geral, professores que não estão devidamente capacitados para a função que vão exercer. Ser professor de matemática, vamos deixar bem claro, não é simples. Eu gosto de dizer que é a profissão mais difícil do mundo, porque ser educador não é simples. Ser capaz de manter a atenção dos jovens, ainda mais nos nossos dias com tantos estímulos em volta, para um assunto que tende a ser abstrato e conseguir obter rendimento não é simples; requer um professor muito bem formado, e nós não estamos fazendo isso. Um problema do Brasil é a escala, este país é um enorme abacaxi, pelo tamanho. Estamos falando de quase um milhão de professores de matemática no País todo, inúmeras escolas de formação, então pensar em resolver tudo de uma vez talvez não seja muito realista, até porque nós temos um sistema federalizado. Para não ser só negativo, tem havido progresso. A BNCC, a Base Nacional Comum Curricular, é um progresso. A reforma do ensino médio é outro progresso. O nosso velho ensino médio estava baseado na falácia de que somos todos iguais e, portanto, temos todos que aprender a mesma coisa, o que não é verdade. Então, flexibilizar para que quem um dia pretende ser engenheiro aprenda mais matemática e talvez menos história ou menos geografia e, por outro lado, quem vai enveredar por áreas mais de humanidades não seja obrigado a aprender a mesma matemática, isso é um pingo de sensatez, e o novo ensino médio traz um pouco disso. Eu digo traz um pouco porque o demônio está nos detalhes, está na implementação, no modo como o novo ensino médio está sendo implementado em diferentes escolas, que está longe de ser ideal. Mas são progressos. Agora, o meu instituto tem algumas iniciativas que, por si só, não resolvem o problema, mas que eu acho que apontam em uma boa direção.
A Olimpíada de Matemática se inclui nesse esforço?
A maior envergadura é a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas, um certame que a gente realiza todo ano, com a participação de 18,5 milhões de crianças e jovens do Brasil inteiro. Embora ela tenha um caráter competitivo para tornar mais instigante a participação, de fato, é um instrumento de promoção do gosto pela matemática, levando-a na forma de desafios, de resolução de problemas, para jovens que muitas vezes nem sequer tinham a percepção de que a matemática era isso. É um exemplo de como a gente, por meio de iniciativas direcionadas, pode começar a levar o gosto pela matemática até os nossos jovens e, ao mesmo tempo, abrir oportunidades, em um país tão injusto, a regiões e grupos humanos da nossa sociedade que estão tão afastados dos centros de poder, levar-lhes essas chances de progresso pessoal e profissional. Nós acabamos de criar um curso de graduação no Impa, o Impatec, desenhado a partir das constatações das quais nós estamos falando aqui, em particular do estudo da Fundação Itaú. Há que formar profissionais para o mercado. Não vamos formar matemáticos, engenheiros, cientistas da nossa cabeça, porque o resultado disso são pessoas com uma boa formação que o mercado não quer receber e, portanto, acabam fazendo outra coisa. O nosso sistema universitário, sabidamente, está formando quantidades enormes de advogados, administradores etc.. Nada contra essas profissões, mas, simplesmente, depois essas pessoas não conseguem colocação no mercado de trabalho porque não há essa demanda toda. Então, nós temos que formar pensando na demanda do mercado, e na demanda do mercado do século XXI. Parar de formar engenheiros, matemáticos, cientistas para o século XX, que é o que muitas das nossas escolas ainda fazem. É uma tarefa hercúlea, porque o país é de dimensão continental, nossos problemas são gigantescos, mas há algumas boas direções, e nós podemos nos inspirar nos exemplos de sucesso em outros países. A matemática é problemática em praticamente todo o mundo, mas há bons exemplos. Basta atentar para a Coreia do Sul, que é um país bem menor que o Brasil, mas com uma proporção que a gente pode aproximar. Embora do ponto de vista da pesquisa estejam atrás da gente no mundo, eles equacionaram essa transição do conhecimento matemático da academia para o setor produtivo de forma exemplar já há algumas décadas.
Outro aspecto demonstrado no estudo é a desigualdade na participação nas áreas intensivas em matemática. Como isso aprofunda a injustiça social no País?
São problemas agudos, realmente bem marcados, e eu vou exemplificar com um dado relativo à Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas, que, como o próprio nome indica, embora possa contar com a participação de outras escolas, foca muito no universo da escola pública, onde se espera encontrar uma diversidade maior, sobretudo em termos raciais, do que na escola privada. Pois bem, a participação direta na Olimpíada, em termos do gênero, para começar, é bastante equilibrada, porque nós alcançamos praticamente a população estudantil brasileira entre o sexto ano do ensino fundamental e o final do ensino médio. Então, temos 50% a 50%, em termos de gênero. A Olimpíada é organizada em duas etapas. A primeira é com a prova [de múltipla escolha]; são selecionados para participar na segunda fase os 5% melhores de cada escola. A distribuição de gênero entre esses 5% melhores é perfeitamente equilibrada. E veja, um em cada 20 é um filtro bastante rigoroso. E aí não há qualquer assimetria em termos de gênero. Mas, no final da segunda fase, tem a correção da prova, que é discursiva, nós selecionamos e atribuímos as medalhas. E, entre os medalhistas, aí sim, o desequilíbrio de gênero aparece de uma forma bastante peculiar. A Olimpíada é dividida em três níveis: sexto e sétimo anos; oitavo e nono; e ensino médio. No nível 1, dos mais novinhos, 25% dos medalhistas são meninas; no nível 2, são 20%; e no 3, 15%. Vai diminuindo. Ano após ano, esse padrão se mantém com pequenas variações. Ou seja, de alguma forma, há fatores que certamente vão além da Olimpíada, que contribuem para que as mulheres, as meninas se afastem do processo ou se tornem, de alguma forma, “menos competitivas”. Eu não tenho um estudo para responder a isso, mas eu pergunto a opinião pessoal de algumas daquelas que persistem até o final, e elas não têm a menor dúvida, a resposta é sempre a mesma: “os garotos são muito mais incentivados do que a gente”. Para uma mulher permanecer na carreira de ciências é um ato de força interior e de coragem, de determinação, porque o mundo conspira contra, não havendo incentivo e com sinalizações de que você não pertence aqui, esse lugar não é para você etc.. Inclusive, um projeto que realizamos no meu instituto com escolas de educação básica da região do Rio de Janeiro e municípios vizinhos, que se chama Meninas Olímpicas do Impa, é voltado a ajudar a abrir horizontes e incentivar que elas permaneçam na área de ciências. Esse projeto já está acontecendo desde 2019, com resultados muito bons. Temos já várias egressas do projeto que estão fazendo graduações na área de ciências. Então, é importante combater todos esses fatores socioculturais que dizem que engenharia, ciências, não é lugar de mulher. Não há nenhuma razão objetiva para achar que mulheres sejam menos capacitadas ou menos capazes em qualquer desses domínios, mas existem, sim, mensagens subliminares, o tempo todo desencorajando as meninas de continuar.
E quanto à questão racial?
As cotas raciais têm ajudado um pouco, mas já está claro, após esses anos, que elas são insuficientes para criar uma verdadeira justiça racial no acesso ao ensino superior. É mais difícil de caracterizar, mas eu acredito que várias das coisas que eu disse [relativas a gênero], em particular em termos das mensagens culturais que são enviadas, são importantes, são reais e desincentivam a participação, a permanência, a resiliência de pessoas negras no mundo STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática). Para encerrar essa minha ponderação, que é um pouquinho apaixonada, porque é uma questão que eu considero importante e grave, eu gostaria de contar um pequeno episódio. Na primeira atividade coletiva que organizamos nesse projeto que eu mencionei, Meninas Olímpicas do Impa, nós visitamos a Casa Sesi, que é a sede da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, que têm oficinas com impressoras 3D, máquinas de laser para cortar etc.. E eu estava observando as meninas fazendo a visita, e vi uma menina com o celular fotografando o tempo todo. Alguém a chamou, e ela disse “não, gente, deixa eu fotografar tudo, porque nunca mais na vida vou entrar num lugar como esse”. Foi como um soco perceber em que nível nós temos que atuar para levar conhecimento sobre como é o mundo, as oportunidades, para uma menina da periferia do Rio de Janeiro, que achava que estava no lugar mais incrível do planeta e que nunca mais teria a chance de estar num lugar como esse. Isso diz muita coisa sobre o trabalho, a tarefa que a gente tem pela frente. O fato de termos poucas mulheres, poucas pessoas negras no mundo de ciências e engenharia não é por acaso, é porque existem todas essas barreiras.
Assista ao vídeo da entrevista