Rita Casaro
O Brasil fechou 2024 e entrou no ano-novo embalado por indicadores dignos de comemoração. Segundo previsões da Fundação Getulio Vargas (FGV) o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) pode ultrapassar os 3,5%. O desemprego no terceiro trimestre recuou a 6,4%, ficando no menor patamar da série histórica medida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Por fim, o mesmo órgão divulgou em dezembro que 8,7 milhões de pessoas saíram, em 2023, da linha pobreza – renda per capita no núcleo familiar abaixo de R$ 665 pelos critérios do Banco Mundial.
Para além dos números, afirma o economista Antonio Corrêa de Lacerda, houve melhoria efetiva nas condições de vida da população. Na avalição do professor-doutor do Programa de Pós-graduação em Economia Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), isso se deu tanto pelo incremento na atividade econômica, que gerou emprego e renda, quanto pela retomada de programas sociais como Minha Casa, Minha Vida e Farmácia Popular. “Entre 2016 e 2022, prevaleceu a ideia da retirada do Estado da proteção social, da articulação das políticas econômicas, como um incentivador da economia. O que mudou com o Governo Lula foi a visão do papel do Estado para acelerar o desenvolvimento”, pontua.
Desempenhando também as funções de membro da Comissão de Estudos Estratégicos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e de assessor da presidência da instituição, ele classifica como crucial a mudança de rumo e aposta em resultados positivos em 2025, com a manutenção da ampliação dos investimentos produtivos, recuperação industrial e avanços nas agendas energéticas e ambientais. Centrais no projeto, afirma ele são os programas estruturantes como Nova Indústria Brasil (NIB), Programa de Transição Ecológica (PTE) e novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), "iniciativas completamente em linha" com o projeto "Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento" da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE).
Importante também será a aguardada mudança de rota na política monetária com a troca do comando do Banco Central, agora presidido por Grabriel Galípolo. A esperança é que, em médio prazo, a taxa de juros, que chegou a 12,25% em dezembro, se reduza, favorecendo o crédito, a produção e o consumo.
Nesta entrevista ao Jornal do Engenheiro, ele alerta também para os desafios representados pelas tensões entre Executivo e Congresso e pelo cenário global de conflitos armados e crise climática. Apesar dos obstáculos, Lacerda acredita que o Brasil pode seguir avançando, mas vê como essencial a participação da sociedade civil nos rumos do País. “Eu acho que as entidades representativas, os sindicatos, nós economistas, engenheiros, demais representantes profissionais, temos que exercer um papel cada vez mais ativo no sentido da exigência de que as medidas que sejam tomadas vão muito mais ao encontro do interesse coletivo do que setorizado ou individual”, enfatiza. Confira a seguir e no vídeo ao final.
O ano passado chegou ao fim com vários indicadores positivos, como queda no desemprego, menos pessoas abaixo da linha da pobreza e crescimento do PIB. Qual o seu balanço dos resultados econômicos do Brasil em 2024? A que se deveram as melhorias?
Eu acho que você pontuou corretamente, a avaliação da economia tem que ser feita, em última instância, como é que ela melhora a vida das pessoas. Para além das grandes aplicações financeiras, do câmbio, dos juros, das taxas de desempenho do mercado financeiro como um todo, tem a vida das pessoas. E a vida dos brasileiros melhorou muito nos últimos dois anos e, particularmente, em 2024, porque a economia cresceu muito mais do que o esperado. Já pelo segundo ano consecutivo, nós temos um desempenho da economia muito melhor do que o inicialmente previsto pelo chamado mercado. Em 2023, no começo do ano, todas as perspectivas apontavam um crescimento inferior a 1%. O resultado final foi de 3,2%. Em 2024, os primeiros prognósticos eram de 1,5%, revistos depois para 2%, 2,5% e tudo indica que o resultado será acima de 3%. Alguém já lembrou com propriedade que a população não come PIB. Isso é verdade. Só que o PIB afeta todos os demais indicadores porque uma economia crescendo representa mais salários, mais renda, mais emprego, mais capacidade de consumo. Especialmente quando esse crescimento é combinado com estabilidade relativa dos preços. Não é que a gente não tenha inflação, mas é uma inflação controlada. E outro ponto relevante é se você combina isso tudo com outras medidas que favorecem a vida da população. Quando se retoma o Minha Casa Minha Vida, que é ligado à habitação, o Farmácia Popular, que garante medicamentos para doenças crônicas... Então, o meu balanço é muito positivo do que ocorreu em 2024.
E não há risco de descontrole inflacionário?
O desempenho da inflação brasileira é muito parecido e melhor, em alguns casos, que a média internacional. Agora, não há dúvida que, para a vida das pessoas, o fato de existir inflação representa um aumento do custo de vida. E isso tem que ser combatido da melhor forma possível, ampliando a oferta de alimentos, reduzindo o poder de formação de preços das empresas, os chamados oligopólios e monopólios.
Que medidas propiciaram essas melhorias nos últimos dois anos?
O que é que mudou, fundamentalmente, do governo Lula 3 em relação aos seus dois antecessores mais próximos? Entre 2016 e 2022, prevaleceu a ideia do chamado Estado mínimo, da retirada do Estado da proteção social, da articulação das políticas econômicas, como um incentivador da economia. O que mudou com o Governo Lula foi a visão do papel do Estado, dos bancos públicos, das políticas públicas para acelerar o desenvolvimento. Então, nos governos anteriores, já mencionados, havia uma fé inabalável de que as forças do mercado se encarregariam de tornar possível o crescimento econômico com melhora da vida das pessoas. Não há precedente na economia mundial de países que só via mercado tenham obtido esse desenvolvimento. O Brasil entrou na rota das melhores práticas internacionais e das boas experiências para que a economia voltasse a gerar emprego e renda, desse um tecido de proteção aos mais vulneráveis e, com isso, também obter algum desempenho favorável de uma forma mais ampla, não restrita só aos mais favorecidos. A economia se recuperando significa também a arrecadação do Estado melhor, então isso dá mais espaço, teoricamente, para a execução de políticas sociais. E em termos práticos, quando o cidadão que usa os serviços públicos vai a um posto de saúde retirar o seu remédio no programa Farmácia Popular, isso não é trivial. Em épocas recentes passadas, isso parou de funcionar, isso é uma melhoria óbvia.
Apesar dos indicadores positivos, o governo tem enfrentado críticas e tem havido dificuldades junto ao Congresso e ao mercado financeiro especialmente.
Às vezes as medidas tomadas pelo governo, embora favoreçam a população, recebem críticas por parte do mercado financeiro ou por parte do Congresso. Porque aí nós entramos no chamado campo da economia política. Existe hoje uma disputa entre o Legislativo e o Executivo na execução de medidas, especialmente as chamadas emendas parlamentares. E isso, evidentemente, reflete essa tensão. Da mesma forma, o mercado financeiro revela o interesse dos chamados rentistas. Só para citar um dado, a rolagem da dívida pública, ou seja, a dívida que o Estado brasileiro tem junto aos agentes econômicos e pela qual todos nós, pessoas que aplicamos no mercado financeiro, somos indiretamente beneficiados, mas que evidentemente a parte mais representativa fica com o setor financeiro, é de R$ 800 bilhões nos últimos 12 meses. Quanto isso é comparativamente? Isso é mais de 20 vezes o que a União investe em infraestrutura. Então, o que está em jogo muitas vezes no posicionamento, tanto do mercado financeiro como o parlamentar, são interesses na disputa por esses recursos.
Ainda sobre a tensão com o mercado financeiro, há a questão da taxa de juros. O Banco Central vem mantendo elevada a Selic e não há sinais de mudança nessa tendência no curto prazo. Qual a sua avaliação dessa situação?
As taxas de juros elevadas causam grandes malefícios à economia. O primeiro deles – a gente acabou de tratar – é o impacto sobre a dívida pública. Segundo é que torna o crédito e o financiamento mais caros, proibitivos, praticamente, isso inibe, portanto, o crescimento dos investimentos. E de uma certa forma você também está estimulando a atividade financeira em detrimento da produção. Então se alguém vai tomar uma decisão entre criar um negócio ou aplicar no mercado financeiro, a concorrência dos títulos públicos e dos títulos privados é muito grande, porque eles oferecem uma taxa de rentabilidade que muitas vezes não é obtida na produção, na atividade que gera PIB. Nós estamos num momento de transição, porque [neste mês de] janeiro muda a presidência e uma parte significativa da diretoria do Banco Central. Algumas mudanças estão ocorrendo. A meta de inflação continua muito rígida – 3% ao ano, com variação de um ponto e meio a mais ou a menos, então de 1,5% a 4,5%. Por outro lado, essa meta que era restrita ao ano em curso é agora contínua, ou seja, a ser alcançada permanentemente, o que dá um pouco mais de flexibilidade. E nós vamos ter uma diretoria do Banco Central, a meu ver, mais comprometida com a economia como um todo, e não apenas com a visão financeira. Até pela formação dos diretores e do futuro presidente, isso deverá mudar. Então, eu diria que no curto prazo não dá para dar um cavalo de pau na política monetária, nas taxas de juros. Mas a minha visão de médio e longo prazos é muito positiva. Tem que haver uma sintonia muito grande entre os ministérios da área econômica e o Banco Central. Então, sim, no curto prazo, nós vamos ter uma elevação da taxa de juros, que já está muito alta e vai continuar crescendo. Mas no médio e longo prazo, acredito, numa redução. Eu entendo que, para além de competências individuais e qualquer outra característica, a diretoria e a presidência que assumem têm uma visão menos dogmática do papel da política monetária, do papel das taxas de juros e como é que se combate a inflação.
Diante dos indicadores atuais e dessa sinalização de mudanças na política monetária o que esperar para 2025? Qual a sua expectativa?
Eu tenho uma visão muito positiva. O resultado do crescimento da economia, do emprego, da renda e também da estabilidade dos preços tem a ver com as medidas que você toma. E o dado sobre o PIB, o último [disponível] é do terceiro trimestre [de 2024], trouxe na sua estrutura fatores muito positivos. Isso porque, além do crescimento do consumo, que é visível, nós estamos tendo também o crescimento do investimento. Ou seja, a capacidade produtiva está aumentando. Estamos produzindo mais máquinas e equipamentos, estamos investindo mais em infraestrutura. Então, isso tende a dar maior sustentabilidade no crescimento.
Quais impactos o cenário internacional pode ter na economia brasileira?
O Brasil não está isolado do mundo, que vive com desafios. É um cenário pós-pandemia que mudou a correlação de forças entre os preços relativos que afetam muito a composição das cadeias internacionais de suprimentos. Nós tivemos e estamos tendo o efeito geopolítico das guerras entre Israel e Hamas, Rússia e Ucrânia, agora [novo] conflito no Oriente Médio [com a queda de Bashir Assad na Síria]. Tudo isso afeta o comportamento dos preços básicos das economias como o todo, o preço do petróleo, taxas de juros internacionais. E também, em termos práticos, o próprio abastecimento. [Afeta] o preço de alimentos, de energia, de matérias-primas, das commodities no mercado internacional. Por um lado, às vezes favorece o Brasil, porque é um grande produtor de commodities, café, soja, carnes, milho, petróleo. Por outro, você tem uma pressão de oferta, que a gente chama um encarecimento de custos, que se reflete no mercado doméstico. Alguém poderia perguntar, somos o maior produtor e exportador de café, como é que o preço internacional afeta o doméstico? Porque tudo isso que a gente está falando, mais a crise climática, afeta o comportamento dos preços internacionais e aí entram os fatores de oferta e demanda, ou seja, de venda e produção, mas não apenas físico, porque isso também tem influência no mercado financeiro futuro. Então há muita especulação, as commodities viraram também ativos financeiros. Assim como as taxas de câmbio, ou seja, por exemplo, a cotação do dólar afeta também o mercado doméstico, por isso que tem tanto impacto. Tudo isso traz pressões inflacionárias, aumento do custo de vida e risco de desabastecimento, que é isso que tem que ser combatido. Então, os desafios são muito grandes. Nós temos uma guerra tecnológica e comercial envolvendo as grandes potências, Estados Unidos e China, mas também a União Europeia. O Brasil não está parado, está se realinhando frente a esse novo quadro geoeconômico. O Brasil voltou a ser um grande player nesse mercado internacional. Tudo é muito desafiador, mas nós temos todas as condições. Quais são as nossas potencialidades? Somos um grande produtor no complexo agropecuário, mineral e petrolífero. Então, fornecedor de alimentos e de energia e com autossuficiência hídrica, todos fatores que são muito importantes para o nosso desenvolvimento. E além disso, também qualitativamente, temos a matriz energética mais limpa do mundo, 50% da nossa energia vem de fontes renováveis, enquanto a média internacional é de 15%. Quando tomamos a matriz elétrica, esse percentual chega a quase 90%. Nós estamos falando da energia hídrica, eólica, solar e da biomassa. Esse é um grande potencial brasileiro. O Brasil, no âmbito do G-20, da COP 29, que foi realizada agora, e a COP 30, que será realizada no País, se destaca. E, na prática, o que isso significa? Novos recursos, o Fundo Clima, o Fundo Amazônia recebem aportes de países porque o Brasil é importante no jogo da descarbonização, no combate à emissão dos gases de efeito estufa, e, portanto, de um mundo que combate o aquecimento global. O Brasil tem essa enorme potencialidade e é isso que nos dá um cenário futuro muito positivo. A gente sabe que nada é automático, mas temos amplas condições de continuar desempenhando muito bem e oferecendo uma qualidade de vida melhor para os brasileiros.
Nesse contexto, será viável promover a recuperação da indústria ou a implantação da neoindustrialização, como o governo vem qualificando? Haverá mais oportunidades para os engenheiros?
Há três programas estruturantes por parte do governo federal que são muito importantes para a retomada dos investimentos e, portanto, para a sustentabilidade desse crescimento em termos econômicos, sociais e ambientais. O primeiro deles é a Nova Indústria Brasil (NIB), o programa de política industrial, da neoindustrialização, que foi lançado no começo [de 2024] e já está em execução. Abarca seis grandes missões, como, por exemplo, o complexo industrial e de serviços da saúde, infraestrutura, digitalização, enfim, todas aquelas áreas que afetam diretamente a nossa capacidade produtiva. O NIB age em consonância com o segundo programa estruturante, que é o Plano de Transição Ecológica (PTE), que é de intensificação da nossa transição energética para um caminho mais sustentável. [E a há] o novo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), de investimentos de R$ 1,8 trilhão em quatro anos. Todos esses programas são de maturação mais de médio prazo, mas afetam o curto prazo. Os indicadores industriais finalmente começam a reagir depois de anos de baixo desempenho. Nós estamos tendo alguns setores com forte intensificação dos investimentos. Isso já começa a se refletir nas contas nacionais, nos números do PIB. A formação bruta de capital, que são os investimentos, está crescendo a 10% ao ano. Com um crescimento econômico geral de 3%, você está tendo um crescimento do investimento de 10%. Esse é um indicador muito importante e que aponta sustentabilidade, porque você elimina gargalos potenciais futuros. Tudo isso, sem dúvida, cria oportunidades para o desempenho da economia e é óbvio que a engenharia exerce um papel fundamental nisso, porque quem estrutura tecnicamente os projetos é o conhecimento da engenharia, e isso retoma o papel dos engenheiros no processo de desenvolvimento brasileiro. E todas essas iniciativas estão completamente em linha com as ideias do “Cresce Brasil”. É muito importante que haja essa consonância, porque, embora a iniciativa do Estado via políticas públicas seja relevante, o maior executor, até pelos recursos disponíveis, é o setor privado. Nesses dois âmbitos, público e privado, a engenharia exerce um papel muito relevante.
Que papel a reforma tributária, cuja regulamentação ainda é aguardada, entra nessa perspectiva positiva para a economia brasileira? Que impacto terá?
Impacto muito positivo, porque uma vez aprovada – e ela não foi ainda detalhada –, foi um avanço expressivo, depois de 30 anos, na reforma dos impostos indiretos, aqueles que incidem sobre produtos e serviços e que têm, no cenário atual, 27 legislações diferentes. Isso causa um grande transtorno para os agentes econômicos, as empresas, as pessoas. Isso sendo uniformizado e simplificado é um grande avanço, que tende a diminuir também as distorções existentes. Qual o passo seguinte? Seria a segunda fase da reforma tributária, que é sobre a renda, o imposto direto. Nós temos hoje uma tributação direta que é regressiva, ou seja, quem ganha mais paga menos, ao contrário da tendência internacional.
Perspectivas positivas, portanto?
Sim, mas é preciso lembrar que muitas das medidas dependem também do engajamento, tanto dos demais poderes, especialmente o Legislativo, e também do nosso comprometimento como sociedade. Eu acho que as entidades representativas da sociedade, os sindicatos, nós economistas, engenheiros, demais representantes profissionais, temos que exercer um papel cada vez mais ativo no sentido da exigência de que as medidas que sejam tomadas vão muito mais ao encontro do interesse coletivo do que setorizado ou individual. Esse é um aspecto relevante. Então, a perspectiva é excelente do ponto de vista do que está sendo feito, mas nós temos que intensificar essa correlação de forças, esse papel que a sociedade deve exercer no apoio ou rejeição daquilo que lhe é ou não favorável. Acho que isso é uma mensagem importante que se diga, porque nada ocorre por acaso. E gostaria de destacar aqui o papel dos bancos públicos, especialmente do BNDES que está de volta ao seu papel histórico, muito relevante em tudo isso que nós estamos falando, na reindustrialização, na retomada da infraestrutura, no aumento dos investimentos, na geração de produção e exportação de qualidade, no financiamento à inovação, das medidas sociais. O BNDES tem 72 anos, um quadro técnico de 2,5 mil colaboradores e uma diretoria alinhada hoje com os interesses coletivos. Na visão que prevaleceu no período a que me referi, de 2016 a 2022, de pretenso estado mínimo, os bancos públicos, de uma forma geral, foram atrofiados. Estão voltando a desempenhar esse papel, mas como sói acontecer destruir é muito mais fácil do que construir. Então, o desafio de todos nós é a reconstrução das instituições, no caso que estamos falando aqui, principalmente as econômicas, para atuar em prol desse desenvolvimento.